terça-feira, março 08, 2016

LEITURAS AVULSAS: Não é uma busca, mas uma criação do passado perdido

O protagonista de «Em Busca do Tempo Perdido» vive a experiência de mortes sucessivas, que contribuirão para a sua maturação: a de Swann, modelo fascinante mas ilusório; a da avó que, pelos seus princípios morais e pela fé nas virtudes da inteligência, arriscava-se a ficar distante do neto; a de Bergotte, escritor académico que tinha pretendido imitar. Mas esse percurso iniciático ocorrerá de forma bem mais positiva durante a estadia à beira-mar com o pintor Elstir.
Pintando as coisas tal qual as vê, ou seja sem o recurso à racionalização, este ensina-lhe a arte da metáfora: embora pareçam esmiuçar o real, detalhando-lhe os elementos, os quadros compõem afinal o universo íntimo do artista. E existirá, igualmente, o músico Vinteuil, cuja sonata decorava o mundo sentimental de Swann e coloria-o de nostalgia. Graças à revelação do seu septeto, é ele quem oferece ao protagonista um testemunho da pátria ideal onde o criador se vê exilado.
A degustação de uma pequena madalena mergulhada no chá ressuscitou na mente do protagonista a infância passada em Combray, que é aquela com que se abre o romance. Meses depois é convidado a visitar a princesa de Guermantes, afinal a ex-senhora Verdurin em cuja casa Swann costumava encontrar-se com Odette.
Temos, pois, dois mundos outrora antagonistas do mesmo bairro de Saint-Germain e da sua riquíssima boémia cultural, a encontrarem-se numa única personagem.
Essa «matinée», que serve de cena final, revela as fabulosas mutações sociais entretanto operadas em cerca de meio-século e que surgem aos olhos do protagonista como o espetáculo vertiginoso do envelhecimento que afeta todos os convidados ali presentes.
É, igualmente, a oportunidade para trazer à colação outras reminiscências (a desigualdade da calçada, o barulho de uma colher), que dão consistência ao fugidio passado. Por elas «o tempo reencontrado» volta a ser momentaneamente possível. Caberá então à inteligência a edificação do eu mais profundo que só parecia debilmente percetível pelo fluxo das sensações.
As longas frases de Proust comportam a multiplicidade dos acontecimentos, que surgiam simultaneamente na consciência, mas também as ideias sobrepostas dentro do escritor, desejoso de ilustrar comparativamente as leis comuns aos microcosmos e aos macrocosmos: os fenómenos verificados na botânica ou nos insetos apresentam os mesmos sintomas dos que governam os grupos sociais. Dentro da mesma lógica a cena de ciúmes entre dois amantes equivalem à discussão entre a França e a Alemanha a propósito da posse da Alsácia e da Lorena.
A dimensão do romance está igualmente relacionada com o sentido de que ele se reveste: o protagonista necessita de um longo percurso para ultrapassar uma enormidade de obstáculos e alcançar o seu Graal particular: o lado obscuro e mais genuíno de si próprio. Não se trata de uma procura, mas de uma criação.

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