quinta-feira, junho 30, 2011

Documentário: MONTY PYTHON: ALMOST THE TRUE (2) de Bill Jones, Alan G. Parker e Benjamin Timblett (2009)

Nos anos 60 a contestação em várias frentes fez o mundo mudar significativamente, pondo-se em causa todas as formas de autoridade.
Para os futuros membros dos Monty Python uma peça de 1962 com Peter Cook - «Beyond the Fringe» - será determinante nas suas escolhas futuras por se atingirem aí dimensões de sátira a todos os poderes constituídos, que abriam perspectivas para tudo quanto se seguiria até ao fim da década. É nessa altura que o governo conservador é substituído pelo dos trabalhistas, liderados por Harold Wilson.


No outro lado do Atlântico, Terry Gilliam ainda sonhava tornar-se missionário enquanto frequentava o austero Occidental College. Mas depressa o prazer pela ilustração o tornam num dos alunos mais irreverentes da instituição.
Quanto aos cinco ingleses com quem compartilharia o lendário grupo de actores de comédia, eles dividiam-se entre Cambridge (Cleese, Chapman e Idle) e Oxford (Palin e Jones).
Chapman tornar-se-ia médico, enquanto Cleese acabaria o curso de advogado mas, tal como os demais, já só pensavam em escrever e interpretar sketches cómicos. A oportunidade surge-lhes quando são convidados a integrar a equipa de criativos contratada para o programa de David Frost.
Não tardaria que criassem o seu próprio projecto autónomo.

Beyond The Fringe: The End of the World

terça-feira, junho 28, 2011

Welcome, a film by Philippe Lioret (2009)

Filme: WELCOME de Philippe Lioret

É uma das grandes tragédias do nosso tempo: esse afluxo clandestino de jovens do Terceiro Mundo a uma Europa aonde sonham encontrar o El Dorado.
Para além das discriminações de que são vítimas e das fortunas que possibilitam a quem trafica com tais ilusões, esses jovens incorrem no sério risco de nem sequer chegarem vivos ao almejado destino.
Irá ser esse o caso de um jovem curdo de 17 anos, Bilal, que percorre 4500 quilómetros e está disposto a tudo para atravessar o Canal da Mancha e chegar á sua desejada Mina, antes que o pai desta a obrigue a casar com um qualquer primo endinheirado.
Na primeira tentativa, Bilal não só falha, como arrasta para o fracasso os compatriotas com quem arrisca a passagem dentro de um camião de mercadorias, já que se sente incapaz de manter por muito tempo a cabeça dentro de um saco plástico, condição imprescindível para não denunciar a sua presença.
Como alternativa ele projecta atravessar o Canal a nado para o que contrata o professor de natação de uma piscina de Calais. Cultivando a indiferença perante o drama humano, que tanto impressiona a ex-mulher, Marion, Simon acaba por render-se ao querer daquele rapaz tão diferente de si, já que nem sequer fora capaz de atravessar uma rua para impedir a sua amada de partir.
Agora, ajudando Bilal ele tem a esperança de reconquistar Marion. E por isso torna-se persona non grata para os vizinhos racistas ou para os polícias, cuja missão é a de desencorajarem a emigração ilegal, dificultando-a tanto quanto possível.
Assumindo riscos impensáveis, Simon continua a apoiar Bilal, que tenta o impossível e quase consegue: é com as arribas de Dover à vista, que se afogará ao pretender escapar à perseguição da guarda costeira.
É um Simon enlutado, que irá a Londres conhecer Mina informando-a do que sucedera. Está consumado o unhappy end: ela casará com o homem, que o pai lhe destinou, e Simon conhecerá provavelmente a prisão por ter ajudado emigrantes ilegais…
Se uma história assim não terá comovido o mais empedernido dos seguidores de Le Pen, não sei mais o que conseguiria...

Monty Python - Almost The Truth (The Lawyer's Cut)

Documentário: MONTY PYTHON: ALMOST THE TRUE (1) de Bill Jones, Alan G. Parker e Benjamin Timblett (2009)

Em 2009 foi produzida uma série de seis documentários sobre os Monty Python’s juntando entrevistas com os seus elementos e os amigos e conhecidos, em paralelo com extractos de muitos episódios, que os influenciaram ou em que intervieram. Em si trata-se de um documento extremamente rico em informações sobre uma das experiências mais irreverentes da segunda metade do século XX, pelo que conteve de subversão dos principais tabus então vigentes na sociedade britânica.
Daí que se justifique uma abordagem aprofundada desses documentários, começando pelo primeiro, dedicado à infância e aos primeiros passos de John Cleese, Eric Idle, Michael Palin, Terry Jones, Terry Gillian e Graham Chapman.

As memórias mais remotas de Idle vão para o pós-guerra, quando Londres ainda estava pejada de ruínas e os bens essenciais sujeitos a racionamento. O que não impedia a felicidade das crianças: Michael Palin recorda quão feliz se sentira nesses tempos, numa família bem humorada, mas aonde o pai viria a encarar muito negativamente a sua futura opção pela carreira de actor.
Diferente é a evocação de Terry Jones, que não vira o pai durante os primeiros anos de vida, por ele estar em missão militar na Ásia. Quando o encontrou na estação de caminho-de-ferro, sentiu o desconforto de um desconhecido de bigode a beijá-lo. Com humor reconhece nunca mais ter-se sentido á vontade para beijar gente com bigode.
Nascido na América, Terry Gillian recorda a infância na paisagem rural do Minnesota aonde era obrigatória a ida dominical à missa.
E, porque já não está entre os vivos, Graham Chapman é evocado pelo companheiro, que recorda o facto de ter tido por pai um polícia, factor relevante para vir a ser essa uma das classes mais satirizadas pelo grupo.
Finalmente John Cleese recorda que o nome de família era «Cheese» (queijo), só tendo sido mudado pelo avô por se sentir constrangido pelos trocadilhos de que se sentiria vítima por tal facto.
Nos primeiros anos todos eles entusiasmavam-se com as comédias radiofónicas ao estilo dos Parodiantes de Lisboa com pilhérias emitidas em vozes distorcidas por actores, que se multiplicavam em diversos papéis. Peter Sellers era um dos mais conhecidos.
Mimetizando esses comediantes, alguns deles enveredavam por comportamentos histriónicos: Michael Palin divertia os colegas imitando os professores ou interpretando todos os papéis numa recriação da cerimónia da coroação da rainha em 1954.
Por seu lado na escola para órfãos, que Eric Idle frequenta, interpreta os seus primeiros desempenhos teatrais.
As recordações de Terry Gillian ou de Terry Jones situam outros acontecimentos marcantes nas vidas de todos eles. Ainda a viver nos EUA, o primeiro vê as escolas dominadas ideologicamente por uma direita radical, que combatia a integração racial e acusava de comunistas todos quantos não alinhassem com ela.
Mas Terry Jones constata o quanto tudo mudou nos anos 60, quando até a própria crença num qualquer Deus se tornou numa espécie de anacronismo.
Era a época em que o actor Peter Cook conhecia o auge da sua carreira em interpretações televisivas, que reduziam a escombros todos os principais resquícios da respeitosa sociedade vitoriana.
Amadureciam as condições para que os Monty Python’s viessem a surgir no final dessa mesma década.

quinta-feira, junho 23, 2011

Filme: UM ANO MAIS de Mike Leigh

Há filmes desconfortáveis, mas que nos atraem pela intensidade dos seus personagens, muito mais próximos do que julgaríamos possível.
Ao abordar a solidão e o envelhecimento de um conjunto de personagens em torno de um casal, que atingiu a serenidade da idade madura, Mike Leigh remete-nos para as nossas próprias ansiedades, quanto ao que viveremos nessa fase crepuscular da vida.
Imitaremos Tom e Gerri na forma cúmplice como pacificaram as suas tensões partilhando trabalho na horta ou os convívios com os amigos que os visitam? Ou seremos confrontados com a solidão de Ronnie, cuja súbita viuvez o deixa apático e sem objectivos para a vida?
Não faltam solitários neste filme de Mike Leigh: desde a patética Mary, incapaz de compreender a improbabilidade de um recomeço, mesmo que compre um carro em segunda mão e volte a conduzir até ao rotundo Ken, que bem gostaria de encontrar alguém com quem vencesse o tédio dos dias, mas cuja boçalidade impede de ser sequer considerado uma possibilidade pela mais desesperada das descomprometidas.

E, no entanto, todos os personagens mais velhos já foram jovens, que tinham dançado ao som de Elvis ou dos Beatles e haviam experimentado erva em tempos de enormes ilusões quanto ao que fariam. Parecer-lhes-ia então tão distante essa derradeira fase da existência, quando só sobra amargura e silêncio!
Quanto aos mais novos também sobram incertezas: Joe, o filho de Tom e de Gerri, bem encontra uma animada Katie, mas será ela a candidata ao mimetismo do tipo de relação conjugal, que testemunhara nos pais? E quanto a Carl, filho de Ronnie, as dúvidas convertem-se em certezas: há algo de psicótico na forma como se apresenta no funeral da mãe e como se despede do velório subsequente.
Sucedem-se quatro estações, e Mary parece em vias de perder completamente o juízo, afundada nas suas depressões.
Mas não é esse o estado mais óbvio da maioria das pessoas que nos rodeiam e vivem sujeitas aos mesmos tipos de frustrações e de medos perante um futuro aonde só a morte é certa, mas aterrador o caminho que até ela leva?

segunda-feira, junho 20, 2011

Filme: THE LAST SUPPER de Cynthia Roberts (1995)

Chris é um bailarino a viver as suas últimas horas de vida. Remetido á sua cama, muito enfraquecido, só os medicamentos o vão aliviando das dores.
Val, o amante, cuida dele e recebe a incumbência de ir a Amesterdão visitar o irmão, Luther, e contar-lhe esse transe. Pelo meio as conversas entre os dois evocam as viagens partilhadas e o que ainda poderiam ter vivido se a sida não se tivesse intrometido.
Passado apenas no quarto do moribundo e em planos muito aproximados, o filme de Cynthia Roberts insere-se na corrente do cinema underground americano em que vigora o hiper-realismo.
Era o tempo em que a sida causava uma verdadeira sangria nos meios artísticos norte-americanos. E, no caso de Chris existe a decisão de coreografar a sua própria morte, já que viverá essa derradeira refeição com Val e contará depois com a ajuda de um amigo médico para abreviar definitivamente o sofrimento.
Mas antes de entrar na última cena do seu espectáculo pessoal, ainda dança, deitado, um último bailado com a música do «Lamento de Dido», que Val fotografará para uma sua exposição futura.
Está, pois, também em causa o tema da eutanásia, abordado de forma compassiva para o que contribui a iluminação apenas conferida pela lâmpada da mesa de cabeceira.
Fica, igualmente, a curiosidade do actor principal, Ken McDougall, ter interpretado a sua própria tragédia pessoal com completa veracidade, já que morreria dessa doença quatro dias passados sobre o final das filmagens.

sábado, junho 18, 2011

Debussy: La Mer (Valery Gergiev, London Symphony Orchestra)

Documentário: VALERY GERGIEV: O MAESTRO DO MARINSKI de Alan Miller

Teatro Kirov em Leninegrado.
Em 1977, estava a União Soviética ainda exuberante no seu poderio imperial, quando um jovem osseta, chegado anos antes do seu Cáucaso natal para aí aprender piano, ascende à condição de maestro assistente da prestigiada instituição. Ele tinha 24 anos e chamava-se Valery Gergiev
Hoje, tantos anos volvidos, ele é o maestro principal, o director geral e o director artístico, mesmo que o país tenha mudado de nome e o teatro em si o tivesse igualmente feito, passando a ser o Marinski.

Responsável pelas centenas de músicos, bailarinos, técnicos e demais trabalhadores, o quotidiano de Gergiev é frenético. Até por ser chamado a resolver questões manifestamente desajustadas à relevância das suas responsabilidades como é o caso da afinação de um piano ou o local aonde o instalar.
Mas esse labor é assumido com entusiasmo, porque é fruto de uma completa devoção à instituição. até porque, de vez em quando, há algo a surpreendê-lo e a ter a sensação de contribuir para algo de único. Como sucedeu em 1994, quando descobriu o talento da cantora Anna Netrebko.
O documentário acompanha os seus passos, que não se limitam à sala de espectáculos da antiga cidade de Leninegrado, mas também nas suas frequentes viagens ao estrangeiro, ora enquanto maestro convidado de outras orquestras, ora para sensibilizar os seus mecenas quanto às vantagens de se associarem à preservação da grande ópera russa, tanto mais que o fim do comunismo implicou um desinvestimento progressivo na cultura...

SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS, by Leonor Noivo

Documentário: SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS de Leonor Noivo

Eles são jovens de aspecto irrepreensível, e andam aos pares, de porta em porta, a divulgar a sua crença em Jesus Cristo tal qual a pregou o seu profeta, Joseph Smith, a partir de 1820.
As concepções por si defendidas sobre a família são do que de mais conservador existem, defendendo a abstinência até ao casamento e diabolizando o divórcio.
Quanto à sua cosmogonia nada tem a ver com o que a Ciência já demonstrou, prendendo-se em irredutíveis conceitos enviesados, cuja credibilidade assenta na sua descrição pelos livros sagrados mormons.
E, no entanto, eles são milhões nos EUA, controlando inclusivamente o que se passa no Estado do Utah. E querem expandir essa influência para todo o mundo, para o que enviam os seus elders e sisters em missões de dois anos para países apontados como alvos pelas suas agressivas campanhas de marketing. Que implicam aprender a língua local e suscitar admiração pelo tipo de jovens modelo que aspiram a ser…
No entanto o documentário de Leonor Noivo não aborda o lado sombrio de tal seita, já que dependeu da sua aceitação para os acompanhar nas suas acções proselitistas.
De qualquer forma não elucidando, também não evitam a formulação de algumas dúvidas: porque é que jovens aparentemente inteligentes e talentosos se deixam iludir por tão absurdas teses religiosas? Porque é que os seus interlocutores acabam por ser pessoas de estratos sociais muito desfavorecidos aonde a iliteracia e a falta de auto-estima os colocam num terreno fértil para este tipo de mensagens? Como é que estes jovens mal saídos da adolescência catalisam as suas frustrações sexuais e evitam o disparo das suas válvulas de segurança mentais? E, finalmente, que interesses se escondem para lá das aparências desta seita, já que haverá quem financie estas missões e delas pretenda colher dividendos.
Uma coisa é certa: qualquer guru do marketing poderia pegar nesta seita em concreto e adaptar as suas estratégias à venda de qualquer outro produto ou serviço...

segunda-feira, junho 13, 2011

Documentário: A CADA UM O SEU BAILE de Barbara Necek

O baile vienense é uma tradição, que se cola á identidade cultural da capital austríaca. Entre Novembro e o Carnaval há dezenas de bailes para todos os gostos, desde o prestigiadíssimo Baile da Ópera, que é transmitido em directo pela televisão e tem a presença do próprio Presidente da República até aos mais alternativos, como o dos porteiros, o dos refugiados ou o da comunidade homossexual, passando pelos que procuram conciliar o classicismo de uns com a irreverência de outros, como é o caso do dos pasteleiros.
As câmaras de Barbara Necek vão seguir a preparação de alguns desses bailes, fixando-se em alguns dos que neles participam. Por exemplo há a debutante, aluna do Liceu Francês, que irá abrir o Baile da Ópera tal qual sucedera com a própria mãe, quando tinha a sua idade. Há Renate, a antiga artista gráfica, que concorre à indigitação do melhor pasteleiro da cidade. Há a estrela travestizada do Baile das Rosas, que não poderia ser mais kitsch. Ou o grupo de porteiros, que se esfalfam a preparar os seus números pimba.
Pelo meio surgem os escândalos, como o de um dos principais donos de centros comerciais de Viena e que convida para o seu camarote gente do estilo do J.R. da série Dallas ou a jovem amante marroquina de Berlusconi.
Essa truculência escandaliza obviamente a classe abastada, que vê no Baile da Ópera uma forma de reviver o saudoso espírito do velho Império.
E há também a vagabunda, que lamenta não haver nesse ano dinheiro para o baile desse grupo social e se entretém a dançar pelos cafés enquanto não chega a hora de se colocar frente à televisão a ver a transmissão em directo do Baile da alta burguesia.
Ou os refugiados georgianos, que conseguem finalmente a disponibilidade para se irem divertir na companhia dos amigos e de quem está na sua condição de exilados.
O filme acaba por ser bastante revelador em relação ao espírito de um lugar em que a estratificação social continua bastante arreigada na classe dominante, mas em que as mais desfavorecidas acabam por recorrer aos mesmos conceitos para os sabotar e exercer o seu direito de expressão por uma forma subversiva.
Não parecendo nada está-se a cuidar da velha luta de classes...

Livro: O HOMEM DO TURBANTE VERDE de Mário de Carvalho

Começa-se sempre a ler uma obra de Mário de Carvalho com a curiosidade de descobrir em qual das distintas vertentes da sua criatividade ela se revelará.
Já o tivemos como narrador de contos mágicos em ambientes de exotismo oriental.
Rimos com gosto das vicissitudes bairristas de personagens urbanos empurrados para autênticos becos.
Comovemo-nos com personagens comuns sujeitos a situações trágicas, muitas delas passadas na Guerra Colonial.
Acompanhámos as ilusões de quem muito acreditou nas utopias revolucionárias e sofreu depois com as inevitáveis ressacas.
Embora revisitando muitas vezes as mesmas personagens ou os seus estereótipos, Mário de Carvalho consegue ser quase sempre imaginativo e dá bom trato à língua.
O seu livro mais recente, «O Homem do Turbante Verde», tem dez contos distribuídos por quatro partes distintas, todas elas prefaciadas por uma citação.
Na primeira temos a de um padre aventureiro quinhentista: por ventos e cansados areais. Consta de dois contos, o primeiro dos quais dá o título ao livro e é passado no Afeganistão com uma equipa de arqueólogos apostados na descoberta de inscrições rupestres milenares. O pior são os talibãs, que os raptam e ameaçam matar, valendo-lhes então a argúcia dos comandos militares da região. por precaução decididos a assegurarem-lhes a segurança através do rapto do filho do chefe inimigo, o tal homem do turbante verde. Que constituirá a imprescindível moeda de troca.
Conclui o coronel para o arqueólogo: O que lhe valeu é que os tipos daquele lado também têm amor aos miúdos.
«Na Terra dos Makalueles» é o segundo conto desta primeira parte do livro e mostra como uma frágil Dama é a mais esperta dos aventureiros, que se embrenham na África profunda para se apossarem de meia dúzia de estátuas iluminadas de uma tribo particularmente aguerrida.
Utilizando os seus encantos, ela vai conseguindo a eliminação dos seus companheiros de viagem até a acabar como dona exclusiva do tesouro roubado.
A segunda parte tem como inspiração a pergunta poética de José Gomes Ferreira: quem te pôs na orelha essas cerejas, pastor? E contém três contos, todos passados na época da ditadura fascista.
«Rua dos Remolares» faz-nos cruzar um jovem, quando decide desertar do Exército, não só por causa da Guerra Colonial, mas também pelo desagrado suscitado pelo novo capitão do quartel aonde faz a instrução.
Os seus modos prussianos de disciplina fazem-no decidir-se a dar o passo decisivo. E não é que afinal o seu contacto clandestino para dar o salto, acaba por ser esse mesmo capitão?
«A Secção de campo» mostra como um grupo de jovens cineclubistas quase são linchados na aldeia aonde propõem mostrar «Couraçado Potemkine» chegando assim à conclusão da enorme distância entre a realidade e a ideia utópica, que dela faziam.
Um pouco na mesma linha do conto anterior, aonde dois dos jovens viam a rapariga do grupo mostrar-se indiferente a eles optando pelo que os dirigiam, este conto mostra um estudante a militar numa célula clandestina não só pela luta em si, mas porque nela colabora a bela Marília, que um dia se exila para outro país e o deixa mergulhado numa sensação de vazio.
Para a terceira parte do livro, a citação inspiradora é de Eça de Queirós: O nosso mote, como a nossa vida, todo se encerrava naqueles dois belos versos: A galope, a galope, oh fantasia,/ plantemos uma tenda em cada estrela.
E fantasia é o que não falta ao conto «O Celacanto», em que o narrador ajuda a amiga Jacinta na sua instalação numa das galerias da Rua da Escola Politécnica. Figura maior dessa exposição é um desses peixes pré-históricos ainda existentes no mar de Moçambique e que ganha em Lisboa uma característica insuspeitada: voa pelos ares e escapule-se da galeria para encontrar abrigo numa casa pobre para a qual a tal amiga convoca a polícia.
Caberá ao narrador arranjar arrevesada explicação para que os atordoados polícias saiam dali sem mais delongas, enquanto o peixe, após essa aventura, regressa prudentemente para a exposição.
Em «A Contaminação», o narrador acaba a perguntar-se se estará possuído da mesma maldição, que acabara de conhecer num episódico interlocutor conhecido no cais da estação de Campanhã aonde se preparava para apanhar o comboio de saída do Porto. É que, poucos metros terão decorrido desde a partida e um desmoronamento obrigara a composição a travar a fundo, obrigando os passageiros a regressar a pé ao cais.
O lisboeta maltrapilho, que conhecera, dera-lhe uma noção do que era a armadilha terrível em que ficara enleado: um ano atrás fora incumbido de ali ir assinar uns papéis e regressar rapidamente a Lisboa. Desde então, nem de comboio, de avião, de carro ou a pé, conseguira sair da invisível fronteira em que estava aprisionado. E, no entanto, tudo começara na aparentemente inofensiva tertúlia literária de uma tal marquesa de Valdonor, aonde bebera um licor que o deixara inconsciente. Desde então perdera emprego e casamento, chegando a um estado de conformada aceitação da sua sina…
«O Chochman» é o antepenúltimo conto do livro de Mário de Carvalho e o primeiro subordinado à influência de Kafka.
Mergulhamos, pois, numa ambiência absurda em que o indivíduo passa a ser um peão desprotegido no meio de uma engrenagem contra a qual nada pode.
O narrador consegue entrar no edifício onde trabalha, mas logo a ex-namorada Marcela ou o colega Antero notam o facto de ele não trazer consigo esse tal «chochman», que nunca chegaremos a saber o que é.
Numa primeira fase escondem-no e alimentam-no clandestinamente na cave. Mas, depois, são eles a denunciá-lo e a condená-lo…
Penúltimo conto da vertente kafkiana do autor, «A Longa Marcha» tem por protagonista um delinquente envolvido numa quadrilha dedicada ao tráfico de crianças. Sujeito a uma emboscada no comboio aonde viaja com a sua mais recente vítima, ele é violentamente agredido e atirado para a linha. Muito ferido ele escapa à vontade de um rapaz em lhe esmagar a cabeça com uma pedra e passa pelo café de uma aldeia sem que os assistentes de uma transmissão televisiva de futebol se dignem perder tempo com as suas dores. Se alguma solidariedade lhe é ainda prestada, deve-o a um cão rafeiro, que momentaneamente o acompanha.
O difícil rastejar dele acaba numa praça aonde uma grua o irá atropelar sob o olhar de uma rapariga, que nada faz para lhe evitar tal desenlace.
Estamos, pois, perante mais um exemplo da desumanização desta sociedade em que ninguém ajuda quem está em dificuldades.
No último conto do livro, «O Reduto», Mário de Carvalho coloca-nos na cabeça de um paranóico, que já se separou da mulher e do filho, bem como do emprego, para criar o seu reduto inexpugnável relativamente à imaginária

ameaça de um duque, em vias de invadir a cidade.
O que está aqui em questão é a forma de ver uma realidade, sendo complicada a distinção entre os seus sinais comuns e os que correspondam a uma qualquer excepcionalidade. Para quem se desvia dos padrões normais essa excepcionalidade é criada no intimo não dando hipóteses aos esforços normalizadores de quem o rodeia.
Chega-se assim à última página de um livro, que continua a confirmar a excelência da escrita do autor, dotando-se de uma riqueza vocabular surpreendente, muito embora a imaginação não tenha chegado aos patamares mais elevados, que lhe conhecemos.
Muito embora, já muitos distantes, e só no que diz respeito a contos, Mário de Carvalho surpreendeu-nos bastante mais em «Contos do Beco das Sardinheiras», «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho» ou «Era uma vez um Alferes».

domingo, junho 12, 2011

Filme: O QUARTO DE HOTEL de Fred Breinersdorfer (2008)

Anouk Maldini cansou-se de ser tradutora de livros alheios e arrisca a publicação do seu primeiro romance junto de um editor de Berlim. Mas a primeira tentativa é um fracasso: o seu interlocutor é chamado de urgência pela filha e a entrevista é cerceada.
É ao sair de tal encontro, que ela trava conhecimento com um arquitecto, Heiner Jordan, que a salva de ser atingida por um obje

cto pesado tombado da lança de uma grua.
Tão agradecida lhe fica, que quase a deixa possui-la no gabinete do estaleiro aonde ele acompanha um prédio em construção.
Dias depois, ela volta de Estugarda para nova tentativa de entrevista e para um encontro com Heiner num quarto de hotel.
É neste limitado cenário, que quase todo o filme decorre, com sucessivos orgasmos partilhados, entrecortados por diálogos, ora tensos, ora cúmplices, em que eles falam sobre tudo (as respectivas famílias, os sonhos de uma ruptura com o presente apostando numa nova vida a dois) e vão sendo interrompidos ora por um alarme de incêndio, ora por um criado demasiado curioso em relação ao que os motiva a estar ali.
Nalguns dos momentos de maior questionamento sobre si mesmos, eles acabam por não compreenderem muito bem a razão de ali estarem. Porque, sobretudo no caso dele, existe uma culpabilização relativamente a Ellen com quem vive há 19 anos...
Claro que, na manhã seguinte, eles saem do limbo provisório em que se tinham encerrado e despedem-se. Cada um de regresso às respectivas cidades e realidades…
Neste filme de estreia, Fred Breinersdorfer sai completamente do género em que ganhou nome como argumentista («Sophie Scholl») ao tentar compreender a psicologia de duas pessoas brevemente tentadas por uma fuga às suas cinzentas existências, sem se deixarem convencer pela colorida expectativa de avançarem para algo de completamente diferente construído a dois.
Está implícita a questão do envelhecimento incontornável («o que seremos daqui a quatro anos?», questiona-a ele) e tudo quanto nunca se fez nem se perspectiva vir a ser possível.
Ou uma mera questão de realização pessoal ou profissional...
Mas, no final, fica a questão: para que serve um filme assim? O que é que com ele ganhamos em conhecimentos?
O vazio existencial dos personagens acaba por ser o do espectador entediado, que vê desfilar à sua frente o genérico final.

sábado, junho 11, 2011

The King's Speech Movie Trailer Official (HD)

Filme: O DISCURSO DO REI de Tom Hooper (2010)


No início do filme estamos em Wembley em 1925, aonde o Duque de York está incumbido pelo pai, o rei Jorge V, de pronunciar o discurso de encerramento da Exposição do Império. Mas a sua gaguez incontrolável transforma a tentativa num embaraçoso incidente. E, no entanto, ele sujeita-se aos mais diversos tratamentos, sempre com resultados frustrantes. O que o leva a anunciar à mulher a sua indisponibilidade para tentar mais o que quer que seja.
Mas a duquesa Isabel não desiste e consegue levá-lo ao decrépito consultório de um australiano conhecido pelas suas práticas heterodoxas, embora bem sucedidas.
A relação entre Lionel Logue e o seu paciente será sempre tensa, porquanto ele exigirá uma igualdade efectiva entre ambos naquele espaço.
No Natal de 1934, adivinhando as dificuldades que adviriam para a Coroa do comportamento problemático do Príncipe de Gales - mormente a sua peculiar tendência para se envolver afectivamente com mulheres casadas - o rei Jorge V tenta convencer o filho mais novo a falar aos súbditos pelo microfone.
Adivinha-se que Bertie anda dividido entre a tentação do trono e a lealdade ao irmão, mas a incapacidade em discursar em público constitui dificuldade maior para se deixar tentar pela primeira dessas alternativas.
A Lionel ele impõe outro limite: aonde aquele buscava em qualquer trauma do passado uma razão para o distúrbio de fala, ele exige a restrita intervenção nos mecanismos mecânicos da voz.
Em 1936 Jorge VI morre e David torna-se o seu sucessor sob o nome de Eduardo VIII. Por agora desviado do seu destino, Bertie reconhece o quanto foi tão castigado em criança por ser canhoto ou por outras situações de desajuste em relação ao austero padrão comportamental tolerado pelo pai.
Mas o escândalo em torno da relação do irmão com uma divorciada norte-americana (Wallis Simpson) vai tornando inexorável a sua coroação. Tanto mais que a Corte fervilha de conspirações em seu favor lideradas por Churchill.
Esse ano de 1936 conclui-se com a abdicação do Príncipe de Gales da sua função real e a nomeação do Duque para a assumir. Com Lionel na tribuna real como se se tratasse de um conhecimento facilmente descartável.
Está, entretanto, iminente a guerra com Hitler e Jorge VI tem de passar pela provação de discursar pela rádio a todos os seus súbditos. Guiado pela direcção de Lionel o resultado é esplêndido sendo visto como um discurso mobilizador capaz de unir todo o povo britânico em torno da sua bandeira e dos seus símbolos mais representativos...

sábado, junho 04, 2011

In Search of Memory - Official trailer

Documentário: À LA RECHERCHE DE LA MÉMOIRE de Petra Seeger (2008)

Eric Kandel ganhou o Prémio Nobel em 2000, graças às suas pesquisas sobre os mecanismos da memória.
O documentário de Petra Seeger irá acompanhá-lo e à família (Denise com quem está casado há cinquenta anos, e os filhos e netos resultantes dessa união) até à Europa a fim de encontrarem as suas origens. É que, segundo as suas palavras, existimos graças ao que aprendemos e recordamos.
Nascido em 1929 em Viena, numa família de comerciantes judeus, ele aproveita a viagem para mostrar os sítios onde viveu e as dificuldades encontradas com a invasão nazi à sua cidade natal. A mudança para a América em 1940 constituirá um ponto de viragem fundamental na sua vida.
Para Kandel é a memória que permite garantir uma certa forma de continuidade na nossa vida: sem ela nada seríamos, nem encontraríamos soluções para os problemas com que nos confrontamos no presente. Por isso procurou desvendar-lhe os segredos desde os inícios dos anos 60 e sobre ela escreveu um verdadeiro best seller: «Em Busca da Memória».
É nesse livro que demonstra quanto influencia a atenção na memória: conservamos mais duradouramente aquilo que verdadeiramente procuramos entender. E a neurobiologia e a psicologia devem associar-se de forma a que a ciência do espírito se funda com a ciência do cérebro...