quinta-feira, março 31, 2011

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (3)

Explicará porventura o apego de Orhan Pamuk à sua cidade-natal o facto de ainda viver no prédio aonde passara a infância. Ficarmos presos aos mesmos locais cria um tipo de identificação com o espaço em si, que nada o poderá substituir.
Cinquenta anos depois ainda vivo no mesmo prédio. A casa, para mim, é menos importante pela beleza das suas salas, quartos, mobílias e objectos do que por ser efectivamente um centro do meu universo espiritual. Mas por trás da minha tristeza há a percepção indirecta, confusa e infantil das discussões entre os meus pais, o empobrecimento gradual e  imparável do meu pai e do meu tio devido às falências sucessivas, assim como os grandes conflitos no seio da família por causa da partilha da propriedade. Em vez de assumir o meu desgosto na sua totalidade e de lhe fazer frente, transformara-o num misterioso sentimento, por meio de jogos de ilusão, esquecimentos e mudanças do ponto de vista do meu pensamento. (pág. 95)
E há, ao mesmo tempo, a estranheza de se viver num sítio à medida das diferentes fases da nossa vida, mas marcada por uma história rica, mas reduzida na memória a ruínas:
Mas os vestígios arruinados dos grandes impérios não são, em Istambul, como monumentos históricos num museu à semelhança das grandes cidades ocidentais, não são como objectos que se protegem, de que as cidades se orgulham e que expõem com honra. Em Istambul, as pessoas  limitam-se a viver no meio desses vestígios históricos. Isso é algo que muitos visitantes ocidentais perceberam e muito apreciaram. No entanto, para os habitantes da cidade mais sensíveis, isso lembra-lhes que a força e a riqueza passadas desapareceram, levando com elas toda uma cultura, e que o presente é incomparavelmente mais pobre e mais baço do que o passado. Esses edifícios «adaptados ao ambiente» por falta de manutenção, no meio da porcaria, do pó e da lama - à semelhança dos konak que ardiam um após outro no tempo da minha infância - não nos deixarão por herança o prazer de nos orgulharmos de nós. (pág. 107)
Para o jovem Pamuk só algo de determinante para os anos vindouros viria a sobrepor-se à atenção com que via os movimentos de pessoas e de veículos na cidade: a voracidade pela leitura. Seria essa a ferramenta, que abriria asas à sua imaginação e talento até o tornar no celebrado autor turco galardoado com um Prémio Nobel...



quarta-feira, março 30, 2011

Livro: LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, «O CLUBE DOS ANJOS»

Imaginemo-nos na pele de um escritor a quem é confiada a tarefa de escrever um romance subordinado ao tema «Plenos Pecados». O da gula, por exemplo.
Como o faríamos? Que personagens escolheríamos? Em que circunstâncias as levaríamos até ao desiderato natural de todos os plenos pecados, que é, segundo a mitologia católica, a morte?
Eis o que deverá ter pensado o escritor Luís Fernando Veríssimo, quando se viu a contas com a encomenda. E, se escritor existe, que não se deixa intimidar com tal tipo de desafio é ele. Senão tenhamos em conta as saborosas crónicas publicadas semanalmente no «Expresso» durante anos. Ou a série brasileira «Comédia da Vida Privada» em que o argumento era da sua autoria.
Nesta série figurava um episódio com a grande actriz Fernanda Montenegro, que jamais esquecerei: aquele em que um homem de meia idade faz uma viagem nostálgica à sua cidade natal e ali se aloja em casa da sua tia preferida, que o trata com o maior dos desvelos, aproveitando ambos para evocar gratas recordações dos anos da sua meninice. Até ele vir a descobrir na despedida, que se enganara na estação de comboios em que descera e estivera noutra cidadezinha, que lhe era perfeitamente desconhecida.
No caso deste romance temos um grupo de homens também já maduros, que terão crescido juntos desde crianças e se encontram mensalmente para uma experiência gastronómica, que sirva para realimentar aquela mística de grupo, que tanto prometera mudar o mundo à sua volta, mas deixara este mudá-los para pior, até ao tédio. Até à irrelevância.
É então que lhes aparece Lucídio, um cozinheiro excepcional, que volta a suscitar o maior dos entusiasmos aos convivas. Com um custo elevado: em cada uma das refeições, e por ordem (quase) alfabética, cada um deles vai morrendo envenenado. É assim que morrem Abel, André, João, Marcos, Pedro, Paulo, Saulo e Tiago - todos eles com nomes bíblicos e cada qual com direito a um epitáfio retirado do «Rei Lear» de Shakespeare.
Restarão Samuel (sobre quem Lucídio cumpriria a sua vingança pessoal por ter sido o autor do envenenamento do seu amante, Ramos) e Daniel, a quem lhe são dadas as semanas necessárias para reproduzir em livro aquela estranha história.
Livro ligeiro, sem grandes motivos de celebração, mas capaz de gerar prazer (não mortal, espera-se!) de leitura, «O Clube dos Anjos» constitui exercício curioso para constatar como se poderá pegar em qualquer tema e tratá-lo com imaginação...

domingo, março 27, 2011

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (2)

Um dos aspectos mais curiosos do livro do Nobel turco dedicado á sua cidade natal é a memória grata de uma infância verdadeiramente ensolarada: nos meus instantes de felicidade  - e a minha infância foi preenchida deles  -, não era a minha própria existência que eu sentia, mas o facto de que o mundo era bom, bonito, agradável e ensolarado. (pág. 26)
E, no entanto, era perceptível a decadência de uma cidade, que já vira passadas as suas maiores horas de glória, quando o império otomano aí pulsava no esplendor do seu poderio inquestionável. O jovem Orhan irá crescer num caldo de cultura bem diferente em que o apelo à ocidentalização tem a urgência de se procurar a adequação a um futuro marcado por outros valores:
A tristeza dessa cultura agonizante e desse Império morto e enterrado sentia-se por todo o lado. E parecia-me que o esforço de ocidentalização não provinha tanto da vontade de modernização quanto da angústia da perda desses ornamentos carregados de memórias  dolorosas herdadas do império desmoronado: tal como, para nos livrarmos da lembrança destrutiva de um grande amor subitamente morto, nos desembaraçamos com angústia das suas roupas, das suas jóias, objectos e fotografias. (pág.37)
Mas, mesmo agora, em adulto já envelhecido, o escritor sente essa dicotomia entre o passado mítico e a miséria escondida na escuridão das noites invernosas:
No Inverno, na penumbra da noite precoce, os tons de preto e branco das pessoas que voltam para casa em passo estugado reforçam-me o sentimento de que pertenço a esta cidade e de que partilho qualquer coisa com elas. E tenho a impressão de que o escuro da noite irá cobrir a miséria da vida, das ruas e dos objectos e que, inspirando e expirando no interior das casas, nos quartos e nas camas, todos ficaremos perante os sonhos e as ilusões provindas da antiga riqueza de Istambul, agora tão longínqua, e perante os seus monumentos e lendas perdidos. Gosto também da escuridão das noites de Inverno que desce como um poema sobre os desertos bairros mais afastados apesar dos candeeiros de rua mortiços, porque nos sentimos longe dos olhares estranhos e ocidentais, e porque cobrem como um manto a miséria da cidade de que temos vergonha e que queremos esconder. (pág.43)
E, no entanto, a infância nem sempre era pontuada por momentos de alegria. Com frequência crescente, quer o pai, quer a mãe desapareciam de casa, na sequência dos seus desentendimentos domésticos e Orhan ficava confiado a tios ou a avós:
Na verdade, não derramei muitas lágrimas por causa desses momentos de «desaparecimento» - que me faziam sentir ainda mais vivamente a minha própria existência e a minha solidão, que eu queria esquecer: era por isso que cultivava a parte sombria da minha alma e me divertia - , nem por causa das catástrofes domésticas e das discussões que aconteciam.  (pág. 88)

Inside Job Trailer 2010 HD

Filme: CHARLES FERGUSON, «INSIDE JOB»

Um dos mais óbvios resultados da visão de um filme como «Inside Job» é a ambiguidade ideológica em que ele mergulha ao condenar a Administração Obama pelo seu conluio com a alta finança e ao dar argumentos aos anarquistas de direita, que dão força ao tenebroso «Tea Party».
Quase tudo no documentário tem relevância para a compreensão da forma como se chegou a este estado de coisas, mormente à crise de Setembro de 2008, quando o Lehman Brothers abriu falência e pressupôs o fim de um tempo de desregulamentação total das operações especulativas de Wall Street e da City.
Uma sucessão de acontecimentos iniciados com Ronald Reagan, sob inspiração das teorias ultra-liberais da escola de Chicago, que acreditava piamente nas virtudes auto-reguladoras do mercado, e nas vantagens da redução ao mínimo da margem de actuação das entidades reguladores.
O que sai desmascarado à partida é o capitalismo financeiro, ao arranjar produtos derivados, que lhe propiciarão sempre lucros obscenos, quer eles se revelem lucrativos, quer ruinosos. E o facto de serem sempre os mesmos a pagarem os custos da avidez gananciosa dos banqueiros não lhes pesa na consciência: milhões de gente desabonada, que perde empregos, casas, pensões de reforma. Ou ainda a forma como esses interesses financeiros se souberam insinuar no poder político de forma a transformar este numa mera ferramenta de facilitação dos seus planos estratégicos.
Gente como Alan Greenspan ou Larry Summers serviram republicanos e democratas sem neles se divisar outra intenção, que não fosse a de sabotar qualquer iniciativa capaz de tolher os movimentos à banca.
Hoje são maiores as desigualdades entre o 1% de ricos e a grande maioria de pobres. Que deveriam revoltar-se contra este estado de coisas, mas são inibidos pelos professores universitários, que pregam as virtudes dessa desregulamentação e pregam incessantemente contra os riscos de «socialismo», que os insatisfeitos com este modelo de funcionamento do sistema pretenderiam implementar
É precisamente o medo de chamar os bois pelos nomes, que faz o filme de Ferguson cair na tal ambiguidade. Porque serve às maravilhas para os discursos das Palins e dos Gringrichs, segundo os quais tudo não passaria de um conluio de Wall Street com os políticos federais, pelo que a solução residiria em apoiar os demagogos locais cujos discursos inflamados exigem a redução dos impostos e das estruturas federais à mínima expressão. Abrindo-se, assim, o caminho para uma direita cada vez mais radical e não menos subserviente para com os poderes financeiros, que, em palavras, assumiria combater.
No olho da tempestade podemos olhar para toda esta realidade e acreditar, que só mediante os bons métodos leninistas, será possível combater e derrotar este sistema de organização económica, que está a dar provas de acelerado esgotamento...

domingo, março 20, 2011

Livro: ALVARO MUTIS, «CHEGA COM A CHUVA» (4)

Larissa traz com ela uma história singular, que  faz relacionar o escritor Álvaro Mutis com o realismo mágico, que tanto caracterizou a literatura latino-americana da segunda metade do século XX. Porque ela terá conseguido comunicar e até relacionar-se amorosamente com dois mortos por ela encontrados a bordo do «Lepanto», a carcaça flutuante, que a trouxera também até ao istmo panamiano.
O primeiro desses mortos fora um militar do império napoleónico e o segundo um dos membros do Conselho dos Dez veneziano, qualquer deles lhe despertando os sentidos como nunca ninguém conseguira. Mas à medida que nos afastávamos do Mediterrâneo, depois de termos atravessado o estreito de Gibraltar, as visitas dos meus dois amantes foram-se espaçando. Mas o que mais me intrigava e produzia uma pungente ansiedade era a mudança, apenas perceptível de início, do seu procedimento.
Ilona sente-se tão impressionada com a má sorte calhada à rapariga, que Maqroll avisa-a: em vez de seres tu a arrancá-la do pântano que a devora, é ela que te está a arrastar com uma força que nem tu mesma estás a avaliar.
Daí que Maqroll sinta urgência em livrar ambos dali passando o negócio a um dos seus colaboradores e afastando-os da nefasta influência daquela estranha mulher. Sossegava-o a fidelidade à vida de Ilona, que a impediria de se deixar arrastar para a destruição. Mas enganava-se, porquanto Larissa atrai-a a uma armadilha e leva-a consigo para a morte sacrificial.
Quando Maqroll volta à beira do «Lepanto» só encontra um monte de cinzas, de cujo fogo os bombeiros tratavam do rescaldo.
Sozinho, o protagonista sente uma perda absoluta: O que a morte leva para sempre é a sua recordação, a imagem que se vai apagando, diluindo, até se perder e é então que nós começamos a morrer também. A ausência de Ilona, estando ela viva, era algo que conhecia muito bem e com o qual estava familiarizado. Tentar imaginar a sua ausência definitiva era algo que me custava tanto esforço, tanta dor que preferia regressar de novo às recordações.

Green Zone Movie Trailer

Filme: PAUL GREENGRASS, «GREEN ZONE»

Para a generalidade do público europeu, um filme como «Green Zone» é desnecessário: poucos duvidarão, que a Administração Bush quis uma guerra com o Iraque de Saddam Hussein para aí impor uma marionete ao seu gosto. Que lhe facilitasse nomeadamente o domínio do mercado internacional do petróleo. Por isso nunca o Pentágono aceitaria as provas em como Saddam já encerrara o seu programa de armas de destruição maciça desde 1991. E forjaria as que fossem necessárias para convencer Blair, Aznar e Barroso da genuinidade das suas teses.
Para os norte-americanos, que aprendem a sua história através dos filmes de Hollywood, já o filme assume outra dimensão. Porque desmente o facto de a realidade ser muito diferente da apresentada pelos seus líderes políticos, não se explicando na visão primária, maniqueísta, desses líderes.
A par de George Clooney, Matt Damon vai participando no esforço determinado a incrementar a consciência política dos seus concidadãos. Mostrando que os maiores inimigos dos norte-americanos ainda serão os compatriotas designados para os lugares cimeiros do poder militar ou político e que tudo farão para esmagar os focos de irreverência daqueles para quem as perguntas devem ter respostas consistentes.
Nesta história, passada em 2003, a CIA e o Pentágono têm visões opostas sobre as armas apocalípticas de Saddam e sobre o papel dos militares no pós-guerra e um sargento encarregado de descobrir as primeiras vai perder, pouco a pouco, as ilusões sobre a honestidade de quem lidera a condução dos acontecimentos… E o final é suficientemente aberto para aventar a possibilidade de o poder informativo da imprensa se deixar corromper facilmente pelo que o poder político lhe quer transmitir!

Livro: ALVARO MUTIS, «CHEGA COM A CHUVA» (3)

O reencontro de Maqroll com Ilona  na capital panamiana apanha ambos em urgência de solução quanto à sobrevivência mais imediata. E, como conta ele na sua condição de narrador, antes que a situação atingisse um grau crítico que nos tivesse colocado ante a necessidade de uma solução radical, Ilona teve uma das suas iluminações. A ideia era a criação de um bordel para clientes endinheirados, aonde pudessem satisfazer os seus fantasmas eróticos com supostas hospedeiras do ar.
Recorreriam para tal a prostitutas, que vestiriam como profissionais do outro ofício e capacitadas para conversarem sobre essas suas supostas actividades.
Já conhecedor do desenlace, que ao leitor só será revelado no final, Maqroll confessa alguma amnésia afectiva por muito do que se passara nesse bordel: devo confessar que muitas das coisas que ali sucederam se apagaram da minha memória, talvez devido ao catastrófico fim, de cujas consequências nunca recuperarei totalmente.
A mistificação correra bem, com os clientes pouco interessados em irem muito além na credibilidade daquela encenação. Bastara que as raparigas sugerissem algumas poses cosmopolitas, mesmo que superficiais.
Passam-se os meses e o bordel factura incessantemente. Os dois sócios e amantes não tardam a imaginarem-se noutras paragens, dotados do pecúlio bastante para um novo recomeço em país mais aliciante. Até que surge Larissa.
A exemplo de Ilona também ela merece do autor abundante descrição:  Tinha a voz rouca e a palavra fácil mais do que inteligente, dava a impressão de ter essa faculdade, muito rara, de se orientar para o essencial, para o duradouro e certo e prescindir de tudo o resto. Muito em breve nos demos conta dessa impressão. (…) A sua voz rouca saía da sombra com um toque de sensualidade que me fez pensar numa ávida pitonisa interrogando o futuro de transeuntes indefesos.
Para Maqroll ela surge como uma espécie de mensageira dos antigos deuses, que lhes vinham recordar o quanto aos humanos está vedada a possibilidade de alterarem a mais leve parcela do seu destino. Bem teria gostado de a afastar de Ilona, mas esta sentira, de imediato, uma espécie de atracção inexplicável por essa rapariga...

quinta-feira, março 17, 2011

Livro: ALVARO MUTIS, «CHEGA COM A CHUVA» (2)

A morte do comandante Wito  obriga Maqroll a procurar a subsistência na capital panamiana, que alcança em curta viagem de comboio.
Desconheço se a referência, que Mutis faz à reminiscência das paisagens asiáticas terá algo a ver com os romances de Joseph Conrad, mas o romance segue por esta altura essa notória influência literária: A paisagem tropical da zona com a sua vegetação de folhas reluzentes de um escuro verde metálico, o calor que entrava pelas janelas abertas em busca de um improvável ar refrescante, a gritaria da passagem, transferiram-me para uma qualquer colónia europeia da Ásia.
A falta de dinheiro e a completa indefinição quanto ao dia seguinte convence-o de imediato quanto à probabilidade de ficar a vegetar por muitos meses naquele istmo de aguaceiros intermináveis e pausadas ondas de temperatura de banho turco.
Até porque desconhecedor dos mais comezinhos aspectos da vida ali ele sabia de ciência certa - feita da sua experiência -  que enquanto uma pessoa não se familiariza com esse secreto ritmo próprio de cada cidade, é inútil empenhar-se a procurar um ofício que valha a pena.
Mas a depressão acaba por vencê-lo: a chuva permanente enclausura-o no quarto da pensão miserável, dilatando-lhe cada vez mais no tempo as esporádicas visitas a um bar a que se habituara.
É nele, que acaba por lhe acontecer o milagre redentor. Fora numa tarde de sol deslumbrante, que parecera afastar de vez a irritante chuva. E surge-lhe vinda do passado a adorada Ilona: Vi-a de costas, manipulando uma das máquinas que produzia toda a espécie de ruídos e campainhas anunciadoras de um acerto de figuras. Hesitei um instante. Era quase impossível estar no Panamá, se me guiasse pelas últimas notícias que tinha dela.
Mutis, pela voz de Maqroll, não nos poupa então as informações, que melhor caracterizam essa personagem determinante para o desenvolvimento da sua história: Nunca se lhe conheceu um homem por muito tempo. Mas conservava para com os amigos, alguns dos quais tinham sido amantes ocasionais, uma lealdade a toda a prova e uma preocupação pelo que pudesse suceder-lhes que, com frequência, chegava até ao sacrifício.
E acrescenta: Tinha essa capacidade de esquecimento absoluto em relação àqueles que tinham violado as leis não escritas que ela impunha à amizade e que se estendiam, em boa parte, a toda a relação de negócios  ou de qualquer ordem que lhe surgisse na vida. Bem como a especialidade de aparecer e desaparecer das nossas vidas. Ao partir, fazia-o sem que pesasse sobre nós qualquer culpa, nem houvesse, da nossa parte, motivo para nos considerarmos enganados. Ao chegar, trazia uma espécie de renovada provisão de entusiasmo e essa capacidade tão sua  de dissipar, num instante, todas as nuvens que se tivessem acumulado sobre nós.

domingo, março 13, 2011

Livro: ALVARO MUTIS, «CHEGA COM A CHUVA» (1)

A literatura colombiana não se resume a Gabriel Garcia Marquez como fica demonstrado neste belo romance de Álvaro Mutis. Que mais do que o realismo mágico do seu compatriota, opta por outra corrente de escrita igualmente aliciante: a das viagens, principalmente por mar.
Maqroll, o Gajeiro, narrador de «Chega com a Chuva», insere-se na tradição de uma literatura sobre o mesmo tema, que já tivera no início do século XX o seu grande autor: Joseph Conrad.
E como nesse grande escritor anglo-polaco essas viagens acontecem, amiúde, em navios decrépitos aportados aos mais exóticos dos portos.
Neste caso será Cristobal, o porto do Canal do Panamá na costa atlântica. E logo de início se anuncia o desastre anunciado: Quando vi que a lancha cinzenta da guarda se aproximava com a bandeira do Panamá  agitando-se ufana à popa, soube de imediato que tínhamos chegado ao fim da nossa acidentada travessia.
A primeira pessoa do plural tem a ver, sobretudo, com o comandante do navio, Wito, e com o contramestre, seu mais próximo cúmplice naquela tripulação, o contramestre: Cornelius era um holandês gorducho, de baixa estatura, sempre chupando um cachimbo com tabaco da pior espécie. (…) No começo da nossa viagem, pareceu demonstrar-me uma certa desconfiança nascida dessas susceptibilidades que atacam os homens do mar quando atingem um lugar de comando.
É por este contramestre holandês, que ficamos a saber das razões para a inevitável degenerescência do comandante: o que cagou o destino do pobre Wito foi a fuga da sua filha única com um pastor protestante de Barbados, casado e com seis filhos.
Enviuvado e reduzido a si mesmo, Wito tinha impresso em qualquer lugar do seu ser esse ferrete que distingue os vencidos e acaba por isolá-los irremediavelmente dos seus semelhantes.
Quando a sua luta para manter-se independente de qualquer poder deixa de fazer qualquer sentido e já não sobra qualquer dinheiro para manter a navegar o seu decrépito navio, Wito mata-se: o disparo soou como um seco estalo de madeira. As duas gaivotas que dormitavam na Antena levantavam voo.
Para Maqroll torna-se inevitável a busca de outro sustento, por muito que aquele já há muito fosse incerto. Mas, por agora ele esclarece para os leitores como chegara até ali e começara a trabalhar para esse Wito agora levado num saco de plástico cinzento.
O que distinguira aquele navio, o «Hansa Stern» de todos os demais era a sua cor inusitada: era um cargueiro pintado de um amarelo raivoso, como apenas vi na garganta dos tucanos de Carare.
Encontrara-o em Nova Orleães, quando se estavam a esgotar os irrisórios dólares resultantes da venda do seu miserável negócio de acessórios para a pesca do alto mar.
O transporte marítimo já estava em acelerada crise, como lhe explica Wito: Não há carga e cada vez aparecem mais companhias aéreas, meio piratas, que com três velhos DC-4 transportam carga aérea a uns preços que não sei como lhes chega para a gasolina.
Maqroll aceita a oferta de Wito apesar das dúvidas quanto à viabilidade dos dois fretes que, supostamente, lhes iria permitir a fuga ao atoleiro em que se encontravam. Como suspeitara desde o começo, os negócios, não correram como Wito nos pintara.
Mas Maqroll conhecia Wito de muitas vivências anteriores: Conheci Wito em Chipre, quando Bashur e eu procurávamos um cargueiro para transportar uma mercadoria pouco convencional, como eu e Abdul tínhamos resolvido chamá-la  entre divertidos e cautelosos.
Depois, mais tarde, soubera da morte da esposa do capitão, quando estava a liquidar o infernal negócio da mina de Cocara. Falecera em Willemstad por causa de uma febre tifóide mal curada.
Nos últimos meses, Maqroll pouco fizera a bordo do «Hansa Stern»: As minhas responsabilidades iam-se reduzindo a bem pouca coisa: registo do consumo e pagamento do combustível, a lista de trabalhadores que compreendia quinze marinheiros, o cozinheiro e cinco maquinistas; a provisão e controlo dos víveres e uma ou outra compra ocasional e sem importância.
Supersticioso, Maqroll entende estar sob o sortilégio de uma sorte adversa, conjuntamente com aqueles companheiros de ocasião: uma dessas sombrias fatalidades de cada um de nós em particular, que entrava em conjunção com a força de uma tormenta incontrolável.

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Filme: PHILIPPE LEFEBVRE, «ASSALTO AO PARAÍSO»

Se calhar não somos obrigados a salvar o mundo em todas as nossas horas disponíveis. De vez em quando poderemos dar-nos ao luxo de fazermos algo de frívolo, entretendo-nos durante hora e meia num filme, que nada tem de relevante a não ser uma história sem grande sentido, com actores que vão fazendo os possíveis por a tornarem credível e paisagens do sul da França, que são sempre interessantes de serem vistas, seja neste formato, seja num qualquer documentário de promoção turística.
Neste «Assalto ao Paraíso», título português do «Le Siffleur» francês, temos um actor respeitável como François Borléand a ganhar aquilo com que se compram os melões, a vestir o personagem de Armand, um banana na expressão da sua entediada amante, e que se decide a tomar a pele do seu imaginário gémeo, Maurice, tão oposto quanto possível à sua inata cobardia.
Mete-se para tal com a máfia local, que está inevitavelmente ligada à promoção imobiliária, e consegue salvar o único local aonde consegue ser feliz em cada dia: a sua mesa na esplanada aonde costuma almoçar.
Conta para tal com a estupidez dos guarda-costas do mafioso de serviço e com a competência da magistratura local, que já anda de olho nos seus inimigos e os pretende ver desmascarados numa armadilha policial.
Nada pois de especial, mas que também não faz mal como se tivéssemos tomado o inevitável melhoral.
Passado o momento de descontracção já podemos voltar a pensar em tsunamis no Japão, em revoltas no Norte de África ou na ingenuidade da geração parva, que ainda não entendeu em qual do lado da luta de classes é que deverá lutar. Podemos, enfim, voltar a tentar mudar o mundo...

sábado, março 12, 2011

Livro: MARK TWAIN, «A VIAGEM DOS INOCENTES» (12)


No livro de Mark Twain sobre a sua viagem marítima de 1867 até ao Mediterrâneo Oriental, chegamos por fim às derradeiras cento e cinquenta páginas. Aquelas em que os viajantes chegam ao objectivo primordial do seu périplo: a Terra Santa e, muito particularmente, o sítio aonde Jesus Cristo terá nascido.
Muito embora Twain nunca chegue a roçar a iconoclastia, as suas palavras sobre tais locais, objecto de veneração dos cristãos, manifestam um evidente cepticismo: o mundo deve a sua boa vontade aos católicos, e mesmo à alegre aldrabice destas grutas fingidas no meio das rochas, porque é muito mais agradável contemplar uma gruta onde há séculos se crê que a Virgem viveu, do que ter de imaginar-lhe uma casa seja onde for, em parte nenhuma ou onde calhar por esta cidade de Nazaré. É uma extensão demasiado ampla, e a imaginação assim não trabalha! (pág, 548)
Há de facto uma enorme distância entre o que eram os locais ermos aonde supostamente terão ocorrido episódios místicos e o que deles fizeram a idolatria dos crentes. Daí que Fátima, Lourdes ou Santiago de Compostela serão muito mais supermercados da fé do que sítios aonde essa mística possa ser sequer pressentida na sua autenticidade inicial...

domingo, março 06, 2011

Elogio a Massimo Mazzeo

No concerto de ontem à noite no CCB este terá sido um dos momentos altos do espectáculo. O director musical Kenneth Weiss escondeu-se por trás do cravo e deu plena liberdade para o diálogo de violinos entre Massimo Mazzeo e Luca Giardini.
Só a conhecida timidez do responsável pelos Divino Sospiro o impediu de ser tão agraciado com os aplausos do público quanto a competente execução justificaria.
Fica aqui reproduzido este Allegro, que constitui uma das páginas mais agradáveis de J.S. Bach.

Bach, Brandenburg Concerto #6, Third Movement, Allegro

Concerto: DIVINO SUSPIRO, «BACH - ACTUS TRAGICUS»

Uma das mais enriquecedoras heranças recebidas de J.S. Bach foi a tradução musical da sua crença em Deus. Inspirado pelo luteranismo, para o qual a música deveria ser encorajada como veículo de de glorificação e de comunicação com o divino, Bach surge em contraponto a uma austeridade católica, que associava essa arte às danças, à folia e, portanto, ao pecado.
Passando pela sua obra muitas das vias por onde a música dos séculos subsequentes se exprimiria, Bach continua a ouvir-se com um enorme agrado, mobilizando multidões de espectadores um pouco por todo o lado.
Um programa com obras suas, tal qual foi concebido pelo Divino Suspiro para o seu espectáculo de 5 de Março no CCB, tinha antecipadas razões para constituir um bom espectáculo. Que o foi, apesar das limitações evidentes de uma orquestra ainda demasiado tímida para ambicionar um maior e merecido reconhecimento e de cantores de segunda linha.
Estava em causa a interpretação de quatro peças:  a BWv106,  conhecida precisamente pelo nome que dava ao espectáculo em si («Actus Tragicus»), o BWV150, o BWV1052~1 (Concerto Brandeburguês nº 6) e o BWV18.
A direcção musical foi assegurada pelo competente Kenneth Weiss, que se filia na escola do seu mestre William Christie, e que tocou simultaneamente órgão ou cravo.
As vozes foram as da soprano catalã Maria Hinojosa Montenegro, do contratenor suíço-argentino Martin Oro, do tenor Fernando Guimarães e do baixo Hugo Oliveira. Sobressaindo este último com a sua voz grave e poderosa, impressionante para o seu corpo franzino.
Se as vozes cumpriram o seu papel, foi a orquestra em si a melhor entusiasmar os melómanos presentes com a competência dos seus intérpretes com particular destaque para Massimo Mazzeo e Luca Giardini no Concerto Brandeburguês.
Mais frustrante para os objectivos do compositor, ao conceber as suas obras, foi a incapacidade de elas demoverem um ateu convicto como é o meu caso de se render às evidências de uma fé religiosa aqui enaltecida...