terça-feira, fevereiro 28, 2017

(DIM) «Chez Nous», um filme de Lucas Belvaux, contra o fascismo

Algures no noroeste da França, onde outrora floresceu a Revolução Industrial e onde o fecho das fábricas condenou as pessoas à precariedade, ao desemprego e ao isolamento,  a extrema-direita sente a possibilidade de ganhar as eleições locais numa das cidades ali situadas. Philippe Berthier, velho quadro do partido (Rassemblement Nationale Populaire, que era o nome de organização semelhante entre 1941 e 1944 e tinha um logotipo muito semelhante à suástica), aposta numa enfermeira muito popular, que costuma assistir os seus pacientes ao domicílio. Apesar de se tratar da filha de um velho operário metalúrgico,  militante da esquerda, a líder do partido, Agnés Dorgelle (uma réplica de Marine Le Pen) fica entusiasmada com a sugestão e leva-a por diante.
Pauline, que nunca se interessara verdadeiramente pela política, fica lisonjeada com o convite e vai assumi-lo sem pejo. E o sucesso parece-lhe possível até começar a sentir os efeitos desse compromisso: o pai zanga-se, alguns dos seus habituais clientes fecham-lhe a porta na cara e até os jornalistas descrevem-na como instrumentalizada pela agenda fascista.
Se se deixa radicalizar pelo populismo ela fica surpreendida quando é o próprio partido a criticar-lhe a ligação amorosa com o treinador de futebol de um dos seus filhos, apesar do seu militarismo próximo dos valores a que se rendeu.
Estreado na semana passada o filme de Licas Belvaux suscitou a ira da Frente Nacional que contra ele lançou uma campanha muito ativa. E com razão, porque ele denuncia a habilidade oportunista do partido em aproveitar-se da diluição das antigas solidariedades operárias e sindicais para propor o mesmo sentimento de pertença com ideias simples e soluções atrativas, mesmo que falsas. Trata-se de lhes garantir a catarse no ressentimento contra as elites e o cosmopolitismo do século XXI.
Nas entrevistas a que tem comparecido, o realizador segmenta os aderentes à Frente Nacional em três grupos: o primeiro, movido pela ideologia fascista, não é recuperável; o segundo, constituído por oportunistas dispostos a conseguirem carreira política inacessível noutros partidos, perderá peso quanto eles sentirem-se incapazes de, também satisfazerem as ambições. E há enfim, o terceiro grupo, o dos que foram abandonados ao desespero e sentem conforto por verem alguém vir-lhes ao encontro dizendo-se dispostos a devolverem-lhes a esperança em dias menos sombrios. São eles quem as esquerdas deveriam procurar e recuperar para o seu seio. Porque, como se viu nas presidenciais norte-americanas, tanto podem votar nas propostas de esquerda de um Bernie Sanders como nas de um Trump.
O filme de Belvaux não é, pois, uma proposta datada, que perderá sentido logo após as presidenciais de maio, nem especificamente interessante para os franceses. Embora ainda não tenhamos tido em Portugal populismos deste tipo com suficientemente sucesso - mas Marinho Pinto, Tino de Rans ou Paulo Morais indiciaram essa probabilidade - «Chez Nous» vale, sobretudo, por lembrar às esquerdas que, mais do que digladiarem-se entre si, mais ganharão em irem ao encontro de quem deverão representar e defender. Porque se o não fizerem, abrem-se espaços para estas sinistras ameaças. 

(DL) A quotidiana leitura do mais recente romance de Paul Auster (IV)

Com o calhamaço quase todo lido já  me é possível dar uma opinião mais consolidada sobre «4, 3, 2, 1»: não será a obra que do autor mais me tenha fascinado, mas é decerto a mais ambiciosa. Para além dos quatro personagens principais, que são variações possíveis do mesmo Archie Ferguson, existem dezenas de outros, ora só aparecendo numa dessas possibilidades, ora desmultiplicando-se nelas todas e com características diferentes.
Existe, igualmente, uma abordagem colateral dos grandes acontecimentos históricos, que passam pela vida dos protagonistas desde a disputa eleitoral entre Kennedy e Nixon até à guerra do Vietname, das lutas do Movimento dos Direitos Civis à revolta dos campus universitários em 1968.
Mas vale a pena retomar o romance onde o deixara em texto anterior, mais precisamente em 1962:
“O tempo andava em duas direções porque cada passo para o futuro carregava uma memória do passado, e embora Ferguson ainda não tivesse feito quinze anos, tinha acumulado memórias suficientes para saber que o mundo à sua volta estava continuamente a ser moldado pelo mundo dentro de si, tal como a experiência do mundo de todas as outras pessoas era moldado pelas suas próprias memórias, e embora toda a gente estivesse ligada pelo espaço comum que partilhava, as suas viagens através do tempo eram diferentes, o que queria dizer que cada pessoa vivia num mundo um pouco diferente do de todas as outras.” (pág. 352)
Na versão de Archie em que os pais se haviam separado e a mãe voltara a casar com Dan Schneiderman depois deste ter enviuvado, ele vive o entusiasmo da participação em campeonatos escolares de basquetebol.
Um dia, em Newark, tinha participado num jogo sucessivamente empatado após dois prolongamentos. E como num lance único a sua equipa ganha o jogo, ele e os colegas fugiram apressadamente para fora do ginásio, porque sendo todos brancos, haviam vencido outra completamente constituída de jovens negros, apoiados pelas bancadas ululantes.
Na fuga, que o treinador impusera na derradeira paragem, Archie sofreu um violento soco de um desconhecido compreendendo como o fim da segregação racial seria objetivo político mais difícil de concretizar do que se julgaria.
Auster confidencia-nos, entretanto, que esta versão de Archie Ferguson acabará mal porque, pretendendo ser escritor, nunca conseguira ver nenhum dos seus romances publicados, acabando por se tornar num vagabundo bêbedo na Bowery. Mas, por enquanto, essa vocação literária acontece-lhe quando lê «O Crime e Castigo» e fica completamente rendido à maestria de Dostoievski.

(S) As Gymnopédies 1, 2 e 3 de Erik Satie por Pascal Rogé

domingo, fevereiro 26, 2017

(DL) A quotidiana leitura do mais recente romance de Paul Auster (III)

À medida que o romance vai avançando, Paul Auster multiplica-se em diversas variações sobre o que poderia ter sido a vida de Archie Ferguson na primeira metade da década de 60, nunca deixando de referenciar os acontecimentos, que lhe iam servindo de contexto: a eleição de Kennedy, a fracasso da Baía dos Porcos, o assassinato em Dallas, a luta do Movimento dos Direitos Civis, a escalada no conflito do Vietname.
Numa dessas versões de Archie acompanhamos a primeira experiência sexual dele e da namorada, Amy Schneiderman:
“Alegria para começar, a sensação extática de estarem completamente nus um com o outro desde a sua há muito esquecida brincadeira no colchão em crianças.” (pág. 282)
Apesar de partilharem a descoberta no mesmo fim-de-semana em que Johnson toma posse, Kennedy é sepultado em Arlington e Oswald é despachado em direto pela arma assassina de Ruby, eles pressentem ser esse o momento culminante das suas jovens vidas.
Repetirem tão gratas sensações torna-se-lhes tão urgente que Archie aceita um convite da prima Francie, para que acompanhe a família a uma pista de ski no Vermont, conseguindo dela a aceitação para que Amy também os acompanhe.
Logo na primeira noite o êxtase dessa nova cópula revela-se tão barulhenta na casa de férias onde as madeiras rangem ao mínimo toque, que um dos bébés de Francie acorda num berreiro.
Na manhã seguinte, para o repreender pelo abuso da confiança, que nele depositara, ela força-o a acompanhá-la ás compras na loja mais próxima. Mas nunca lá chegarão, porque, enquanto discutem, ela acaba por ir embater numa árvore.
Hospitalizados, Francie com um traumatismo craniano e um esgotamento nervoso, Archie com dois dedos decepados na mão esquerda, é a amizade de há muitos anos, que se desvanece:
“e mesmo enquanto a boca dele dizia todas as palavras certas, garantindo-lhe que não guardava rancor e que tudo estava perdoado, ele sabia que estava a mentir e que lhe guardaria sempre rancor, que o acidente seria uma barreira entre eles para o resto das suas vidas.” (pág. 306)
Dois meses depois do acidente os pais oferecem-lhe um carro pelo aniversário e a recuperação acelera-se com a liberdade de conduzir para onde lhe desse a vontade, sobretudo para junto de Amy, que conseguira, felizmente, matricular-se numa universidade nova-iorquina, excluindo-se assim a possibilidade de se afastarem um dos outro. E a falta de dedos revela-se providencial na altura em que todos os rapazes da sua idade começam a ser chamados para os teatros de guerra na Indochina.
Numa outra versão o tempo regressa a 1961 e encontra-o prostrado pela rutura com Amy, que o acusara de egocêntrico, agressivo nos afetos e passivo nas questões sociais. Para vencer a solidão vê filmes europeus no cinema Thalia e envolve-se a contragosto com breve episódio homossexual com um rapaz três anos mais velho.

(DIM) Transferência de afetos

Todos os anos os estúdios norte-americanos invadem-nos com dezenas, senão mesmo centenas de filmes medianos, se não mesmo muito maus, que vêm servir de pretexto para o consumo de pipocas e de coca-colas nas salas de cinema, passando depois para as televisões por cabo em cujos horários aleatórios justificam a existência, quanto mais não seja para o preenchimento dos horários de emissão.
Este «The Girl in the Park» é um desses exemplos: apesar de ter Sigourney Weaver e Kate Bosworth nos papéis principais, limita-se a tratar, melodramaticamente, a perturbação de uma mulher de meia-idade a quem, dezasseis anos antes, tinham raptado a filha ainda bebé, quando a levara a brincar num parque infantil.
Nesse hiato a carreira profissional transferira-a para Toronto, que lhe permitira algum distanciamento emocional, mas agora, de regresso a Nova Iorque, todos esses acontecimentos voltaram a aflorar-lhe dolorosamente à consciência. Daí que acolha no apartamento uma jovem prostituta, que livrara de apuros em encontro casual numa loja donde ela acabara de roubar uns óculos. E começa a dedicar-lhe o afeto, que ficara por transmitir à desaparecida, mesmo que isso signifique o sofrimento do outro filho, Chris, que está prestes a ser pai e fora por ela abandonado nesses últimos anos.
Habilidosamente o realizador, David Auburn, começa a criar no espectador a dúvida: será que estaremos perante um daqueles mais do que improváveis casos de coincidências estapafúrdias, e Louise é mesmo a miúda cujo rasto se perdera? É que o irmão adotivo com quem partilhara família de acolhimento trata-a por Maggie, o nome efetivo da filha de Julia Sandburg…
É essa ambiguidade, que se cria até ao epílogo, onde se dá a escolher a hipótese mais conveniente para quem dedicou duas horas a este entretenimento sem pretensões a obra-prima.

sábado, fevereiro 25, 2017

(DL) O Sol brilhou realmente ao meio-dia?

Por ser ano de centenário vamo-nos fartar de Fátima nos próximos meses. Saem livros, saem revistas, recuperar-se-á o filme tenebroso pelo qual Catarina Furtado, se lhe não faltassem outros pecados, merecia definitiva condenação às profundezas do Inferno. E, porque negócio é negócio, conhaque é conhaque, até o Papa Francisco virá abrilhantar a festa, porque acredite ou não na consistência do relato dos pastorinhos, os milhões embolsados pelas igrejas católicas por conta do culto da Virgem local não são rendimentos de que possa prescindir. A máquina de acorrentar as consciências aos dogmas de tão inepta transcendência é demasiado cara para reconhecer que a ignorância dos videntes os tornara presa fácil de prelados decididos a reverter tudo quanto a República contra eles legislara e nada melhor do que inventar milagres onde camponeses idiotas predominassem sobre quem, pelas letras e pensamento, se mostrassem urbanamente mais esclarecidos.
O fenómeno sociológico de Ourém é-me bem conhecido: em miúdo a devoção materna obrigava a aí ir todos os anos. Às vezes duas, se não três. Pouco a pouco fui comprovando o que ali se passava: não era a crença que mobilizava os milhares de peregrinos, mas o interesse egoísta de verem resolvidos os problemas com que se confrontavam. Doenças, perigos das guerras em África, sucessos conjugais, escolares ou profissionais, entre tantos outros.
Davam-se voltas ao redondel, de joelhos ou em passo lento, com círios ou sem eles, debitavam-se as ladainhas convencionadas e lá se regressava a casa consolado na esperança de ter sido ouvido. Se o pedido fora coisa fácil de garantir, proclamava-se o milagre, se se tratava de algo mais difícil lá se repetia a visita, tantas vezes quantas as necessárias, na esperança de comover a invisível divindade com desejos, que se ambicionavam ver transformados em realidades. Não era deus, que procuravam, mas a satisfação das ambições pessoais.
Seria coisa trivial se não implicasse tudo o resto: o agrilhoamento luso ao que de mais retrógrado subsiste a nível de valores. Basta a sociedade movimentar-se no sentido de dar mais direitos a quem ainda os não tem e lá temos os padres a homiliar nas igrejas e grupos serôdios a invadirem redes sociais e espaços públicos com investidas totalitárias. A mais recente é a do direito em se pretender morrer sem dor no momento mais adequado e sem dar explicações a quem quer que seja. Esse desejo vê-se coartado por quem se considera legitimado a obrigar quem nem sequer conhece a viver até que o corpo decida, mesmo implicando dores terríveis ou desmemoriamentos senis. 
Tal como combatendo o aborto clandestino assassinou inúmeras mulheres, o fanatismo religioso, por ele responsável, obriga desesperados a darem-se à morte com sofrimentos desnecessários.
Vem esta reflexão a propósito do lançamento de «O Sol Bailou ao Meio-Dia» da autoria do Professor Luís Filipe Torgal, que ontem no-lo apresentou na Associação Gandaia da Costa da Caparica. Obviamente que, tratando-se de obra de Historiador (com H grande para distinguir dos ruíramisismos que por aí pretendem aquilatar-se a tal estatuto) não tem a carga emotiva do meu testemunho. Trata-se, sim, de obra científica, fundamentada em tantas fontes documentais quantas as possibilitadas pela sua morosa investigação.
É essa a sua importância! Quem acredita no carácter milagroso do fenómeno encontrará porventura argumentos para neles consolidar a crença. Mas, para mim, ateu impenitente, o que fica é a validação do que concluíra através das contradições evidentes nos materiais de origem religiosa. Depressa concluo que o milagre do sol terá sido mera singularidade meteorológica, nem sequer constatada pela maioria dos presentes e que os três segredos de Fátima começaram por ser só um, e evoluíram em número e substância de acordo com as conveniências de quem lhe ia formatando a lenda:  a Igreja e o regime, que a usaria e abusaria sem pudor.
O fenómeno sociológico de Fátima poderá ainda viver ilusórios sucessos como o rio, que antes de definhar tenta ressurgir com os afluxos prodigalizados aqui e além pelas secas nascentes. Mas no tipo de sociedade para que evoluímos está, mais tarde ou mais cedo, condenado a tornar-se mera curiosidade histórica.
Após esta fase de trumps apostados em fazer a História da Humanidade rodar para trás, como se conseguissem devolver-nos a épocas ultrapassadas pelos meios de produção e valores a eles associados, a revolução tecnológica comportará novas lendas, que condenarão os atuais deuses à irrevogável obsolescência.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

(DL) Recordar Gabo: «A Revoada»

Ao instalar-se em Cartagena, o jovem Gabriel Garcia Marquez  estava decidido a fazer Direito na Universidade local. Mas o encontro com Manuel Orivella, que acabara de fundar o jornal «El Universal», revelou-se determinante, porque foi contratado para nele publicar crónicas regulares: em menos de dois anos saem quarenta artigos da sua autoria.
Uma reportagem em Barranquilla deu-lhe o ensejo de conhecer um grupo de escritores, entre os quais se contava Alfonso Fuenmayor, que chefiava a redação do «El Heraldo». Não tarda que aí se radique em busca de maior liberdade e melhor salário. Estava-se em 1949 e andava afadigado na escrita do primeiro romance a que começou por intitular provisoriamente «La Casa».
Trabalhando à peça, assina  uma coluna humorística diária entre 1950 e 1952 e alguns artigos e editoriais nesse jornal barranquenho . No entretanto, e dentro do próprio jornal, dirigirá um efémero semanário - «La Cronica» - que dura pouco mais de um ano.
Ainda solteiro, Gabo vive boémia intensa em tertúlias, que não se cingem às preocupações literárias. Ramon Vinyes, o decano do «grupo de Barranquilla», será a sua inspiração para o velho catalão que, em «Cem Anos de Solidão», possuía uma admirável livraria. Mas outras influências o inebriam: Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Faulkner. Deste último os autores latino-americanos dessa geração captam o apego à terra, as técnicas narrativas, os temas históricos, a dimensão misteriosa, simbólica, irracional. E, no entanto, é a cultura caribenha, tão embebida no quotidiano da cidade, que mais deslumbra o futuro escritor.
Alvaro Mutis, outro grande autor quatro anos mais velho,  incita-o a concluir o romance «A Revoada», que há muito andava a escrever e a reescrever.  A publicação acontecerá em 1955 e é nele que nos deteremos nesta etapa de abordagem de toda a carreira literária do autor.
Em «La hojarasca», seu título original, aparece Macondo pela primeira vez.
Numa noite de setembro de 1928 três pessoas reúnem-se para velar um morto, que se enforcara nessa mesma manhã. É o avô, a filha Isabel e a sobrinha de onze anos, que observam a preparação do enterro e sofrem com a ausência do padre e da própria autorização do presidente da câmara, que alimentara o ódio coletivo contra o falecido. Com alguma razão, porque ninguém esquecera como, sendo médico, recusara  cuidar dos feridos, que lhe tinham ido bater à porta numa noite de eleições, que se concluíra em confrontos entre vencedores e vencidos.
Doravante seria amaldiçoado pelos conterrâneos que, com ódio e júbilo assistem ao que se irá passar.
Mas quem é esse homem cujo nome nunca conheceremos?
Sabe-se que viera instalar-se em casa do avô, um antigo coronel, e aí vivera oito anos, engravidando uma criada e partindo com ela. Tê-la-ia matado, já que mais ninguém a voltara a ver? E porque será que o avô desafia toda a aldeia a facultar-lhe a sepultura, apesar de se destinar a quem lhe traíra a confiança? Que elo unia os dois homens?
Gabo dá-nos a conhecer que o doutor salvara um dia o coronel e obrigara-o a prometer que, no futuro, quando morresse, não deixasse de lhe atirar um punhado de terra por cima do caixão.
É neste mistério que Gabriel Garcia Marquez consegue envolver-nos, com o título em espanhol a referir-se à alcunha dada a quem, em tempos, vinha procurar fortuna em Macondo e se associavam a folhas mortas.

(DIM) Lembrar Frida Kahlo

O filme já tem quinze anos, mas quem o viu dificilmente o esquecerá, de tal forma a realizadora, Julie Taymor, conseguiu transformar Salma Hayek numa sósia quase perfeita de Frida Kahlo.
A história começa, quando ela tinha 18 anos e sofreu o terrível acidente de autocarro, que lhe danificou irreversivelmente os ossos e entranhas, deixando-lhe sequelas, que a farão sofrer durante toda a vida.
A iniciação à pintura acontece-lhe nesse período de convalescença, quando esteve acamada durante longos meses. Quando pede ao célebre pintor muralista Diego Rivera a opinião sobre os quadros então criados, ele sucumbe-lhe quer aos encantos físicos, quer ao surpreendente talento.
Começa então uma relação amorosa tumultuosa, feita de muitas deslocações ao estrangeiro, de traições repetitivas e de regressos frequentes ao hospital.
Se Julie Taymor opta pelo cânone de cuidar da biografia cronologicamente, vai-a enriquecendo com sucessivos artifícios visuais: imagens animadas e encadeamentos com os quadros mais conhecidos de Frida Kahlo, reflexos exaltados das suas paixões e tormentos interiores, a associarem-se aos momentos mais significativos do que ela ia vivendo.
Salma Hayek tem o papel da sua vida ao interpretar essa mulher extraordinária, livre e sarcástica, que assumiu a ligação ao Partido Comunista e foi breve amante de Trotski, assim como de algumas mulheres numa época em que o lesbianismo era quase demonizado.
Hayek consegue credibilizar, quer o lado solar, quer o mais sombrio da sua personagem, representando o primeiro a sua alegria de vida, enquanto ao segundo estavam reservados os sofrimentos físicos e psíquicos.
Um filme memorável  onde ainda se encontram Alfredo Molina, Antonio Banderas, Edward Norton entre tantos outros intérpretes relevantes de então.


(DIM) A quotidiana leitura do mais recente romance de Paul Auster (II)

Numa das possíveis vidas de Archie Ferguson, enquanto adolescente, descobrimo-lo enfadado com a quotidiana  convivência familiar, que o leva a desejar a integração num colégio interno longe de casa. Infelizmente, apesar de cada vez mais abastado, Stanley não lhe autoriza o devaneio: se paga impostos para que o filho tenha uma boa escola  pública à beira de casa, é nela que prosseguirá os estudos.
A mãe poderia suscitar-lhe alguma simpatia, mas pressente-lhe a infelicidade desde que se forçara a abandonar o estúdio de fotografia, compensando-a agora com as duas ou três noites por semana dedicadas ao bridge fora de casa.
“Ele pressentia que ela era tão infeliz como ele, mas não podia falar com ela sobre isso, era demasiado novo para se meter em assuntos privados, e no entanto era óbvio para Ferguson que o casamento dos pais, que sempre lhe fizera lembrar uma banheira cheia de água morna, tinha agora resfriado, degenerando numa coabitação aborrecida e sem amor” (pág. 239).
Em alternativa ao recusado colégio, Archie volta ao Campo Paradise para se distanciar nos dois meses de verão. Reencontra o primo Noah, que voltara a merecer esse laço familiar desde que o pai voltara de Paris e retomara a relação amorosa com a tia Mildred, mesmo vivendo em apartamentos distintos. Mas quem se tornará no seu melhor amigo é Artie Foreman, um outro miúdo judeu com quem a empatia fora imediata. No entanto, nesse verão, ele morre-lhe quase ao lado, quando acometido de súbita e inimaginável aneurisma cerebral.
Regressado às rotinas escolares, Archie escreve, então, uma novela, que muito deverá a essa efémera amizade. Nessa história descreve a vida de um par de sapatos, Hank e Frank, desde a fábrica até à loja, da sua compra por um polícia e sua intensa utilização pelas ruas da cidade até esse dono casar, deixando-se convencer pela mulher a abandoná-los num armário. O desenlace será fatal: já endurecidos pelo tempo e pela falta de graxa, acabam no incinerador do prédio.
Quando termina essa sua primeira criação literária, Archie submete-a ao veredito de uma professora particularmente conservadora nos gostos e nos valores. Obviamente Mrs. Baldwin detesta-a pelo uso intensivo do vernáculo e pela sexualidade libertina do polícia e das numerosas amantes até, enfim, se render aos laços do matrimónio. Dá-lhe, porém, o mesmo conselho um dia transmitido por Edgar Poe a um jovem candidato a escritor: “Sê ousado - lê muito - escreve muito - publica pouco - mantém-te longe dos espíritos pequenos - e não temas nada”. (pág. 273)
Mrs. Baldwin não consegue compreender a metáfora contida na novela: a fábrica dos sapatos era África, os dois protagonistas representavam os escravos trazidos para serem intensivamente utilizados nos campos de algodão, o armário onde acabavam abandonados equivalia aos campos de concentração, e o incinerador que os volatilizava, evocava as câmaras de gás.
Evidentemente que os tios Don e Mildred apercebem-se dessa simbologia, Noah devora-a com entusiasmo, quase comparável à reação de Amy Schneiderman, que ocupara o quarto e dormia na antiga cama dele na casa onde a família antes habitara.
Esta versão de Archie estará destinada à carreira das letras - é o que podemos pressupor.

quarta-feira, fevereiro 22, 2017

(I) Será que o poder poderá ser ilusório?

Donde vem o poder? Deter o poder significa ter a legitimidade conferida pelo direito divino, como o reivindicavam os reis, ou ser eleito pela vontade do povo? E se o poder, pelo contrário, depender de cerimónias, dourados, fórmulas e paradas? E se o vestuário, o protocolo e as cimeiras, mais não fossem do que alimentarem uma ilusão (necessária)? E se o poder não fosse senão um efeito realista da nossa imaginação? É esta tese de Pascal que convirá aprofundar…
Hoje em dia existe um abismo entre as opiniões de políticos, ou ex-políticos de diferentes gerações. Nas camadas mais velhas o exercício do poder corresponde a uma certa forma de liturgia com algumas das características detetáveis na de cariz católico.  Nas camadas mais jovens enfatiza-se a questão do poder-cidadão, das sociedades participativas, etc.
Acontece algo de muito singular: olhando para os populistas, os mais tradicionais temem pelo futuro da Democracia, pela facilidade com que ela fica entregue a quem melhor souber manipular as consciências. Pelo contrário os mais jovens entusiasmam-se com movimentos inorgânicos, militando efemeramente por múltiplas causas sem as coordenarem mais eficientemente numa conjunção/síntese das principais de entre elas.
No século XVII Pascal estudou com bastante empenho as questões do poder e da imaginação. Por isso defendia que, sempre que existia o exercício de um qualquer poder, haveria obrigatoriamente uma encenação desse poder. Há, nesse sentido, uma aproximação à abordagem maquiavélica do poder, porque o fazia depender sempre de uma força física. O que suscitava nele esta interrogação: se quem detém o Poder também possui a força necessária para tal, porque se dá ao trabalho de adorná-lo de uma qualquer forma de encenação?
O caso mais extremo desse tipo de espetáculo do Poder foi o da coroação de Bokassa, ditador da República Centro-Africana que, em 1977, se declarou Imperador e se coroou a si próprio, numa imitação de idêntica representação de Napoleão I. Uma festa que terá custado 100 milhões de dólares pagos por Khadafi.
Para Pascal qualquer um poderia tomar as rédeas do poder. E assumi-lo com sucesso se se vestisse de acordo com o que se esperava da imagem desse poder. Católico, o filósofo francês não acreditava que o poder fosse conferido por vontade divina, mas que esta se conformava com quem o exercesse. E, igualmente, acreditava na necessidade de existirem os que mandavam e os que obedecessem. No entanto, e paradoxalmente, ele escrevera que “não podendo fazer com que se tornasse forte o que fosse justo, consagrou-se que é justo o que é forte!”
Há, porém, que levar em conta o facto de Pascal ter vivido numa época em que nunca se colocara a questão da representatividade pelo voto da maioria dos cidadãos. E em que era bem mais fácil encenar o exercício do poder do que exercê-lo de facto...
O que terá suscitado o descrédito de François Hollande à frente da República Francesa, foi ter-se querido apresentar como um «homem normal», quando o Poder exige outra atitude, uma certa forma de gravitas, que o tenderia a elevar aos olhos dos seus contemporâneos. Foi ao querer-se encenação de uma certa forma de banalização do valor de quem exerce o poder, que depressa se veria desrespeitado, deslegitimado.
Por isso mesmo compreender a natureza do poder, constitui a via para melhor o saber combater...  

terça-feira, fevereiro 21, 2017

(C) Quem anda a lucrar com certos discursos "ecologistas"?

O texto sobre dois documentários cujo tema era o desastre de Fukushima e as consequências para quem vivia na sua vizinhança, suscitou do Engº José Manuel Pereira uma resposta fundamentada. Embora polémicas as suas opiniões podem e devem suscitar a discussão, sobretudo em relação à questão de se saber quem verdadeiramente está a lucrar com toda uma narrativa mitológica em torno dos benefícios das energias renováveis? Será o clima ou serão uns quantos «empreendedores», que viram nelas a oportunidade de garantirem lucros substanciais?
E ainda outra questão: quem são os beneficiários das ações demagógicas de alguns movimentos ecologistas? Pretendem elas defender o nosso habitat ou satisfazerem os egos e as carteiras dos seus dirigentes?
Com o devido agradecimento ao autor aqui fica o texto  em causa:

Vivemos atualmente alguns dramas universais, sendo que um deles é o do crescente consumo energético. As pessoas mais afortunadas continuam sem mudar os seus hábitos consumistas, quando por razões óbvias milhões de pessoas começam a despertar para algum conforto inalienável e legítimo.
Neste contexto as centrais nucleares são o futuro, quer queiramos quer não, mas reconheço que Portugal foi complacente ao permitir a construção das centrais nucleares espanholas junto às fronteiras comuns. Ou seja, enquanto tudo correr bem os espanhóis fruem das vantagens, se correr mal, os portugueses, porque a jusante dos rios e canais de refrigeração, sofrerão as consequências.
O problema energético em Portugal decorre de inúmeros erros e opções, que privilegiando a corrupção e as negociatas, enveredaram por maus caminhos, também com a cumplicidade dos ambientalistas que preferem o protagonismo bacoco do que a solução sustentada do problema.
Subitamente a moda das renováveis, nomeadamente as eólicas e as fotovoltaicas, emerge apenas para servir interesses económicos ocultos, em detrimento da cogeração a fuel ou a gás, seja para industrias ou para distrit heating.
Colocam-se ventoinhas em tudo quanto é sítio, para estarem paradas mais de 50% do tempo, (basta olhar Douro acima) e semeiam-se espelhinhos em campos sem fim, que de eficiência também não chega a 30% do tempo num ano. Entretanto o consumidor paga isto tudo, subsidiando na fatura estas aventuras, e temos a energia mais cara da Europa.
Como bem sabes um simples motor da Sulzer RTL ou da Man, ocupando meia dúzia de m2 produz mais energia que as fotovoltaicas todas juntas (que ocupam umas centenas de campos de futebol, e ainda pode aquecer ou refrigerar uma vila com uma eficiência superior a 70%.
Ou que dizer das turbinas a gás com o tamanho de um contentor de 40 pés, que produz em contínuo (dia e noite, com ou sem vento favorável) o equivalente a centenas de ventoinhas. Até a central de ciclo combinado da Tapada do Outeiro, recente, faz um aproveitamento de energia térmica nulo, aquecendo o Douro eventualmente para as lampreias.
Mas isto é só uma pequena imagem do país que temos. As boas escolhas não dão votos, nem eventualmente geram comissões financeiras ocultas. E volto a citar, tudo isto ante a complacência dos ambientalistas que só aparecem como força de bloqueio às soluções evidente.

(DIM) Fukushima entre o acidente e a ressaca

Em 11 de março de 2011 um dos reatores da central nuclear de Fukushima explodiu na sequência de um terramoto, seguido de um tsunami.
Segundo o relato dos técnicos, que estavam na sala de controle na altura dos acontecimentos, ocorrera um black out, logo seguido de outro, que interrompeu a bombagem de água para arrefecimento do reator. Sobreaquecido para além do admissível ele provocaria a violenta explosão de hidrogénio.
Procuram-se, então, respostas para algumas questões técnicas: como foi possível acontecer um tal corte de energia no reator já depois do tsunami se ter verificado? Em que medida os trabalhadores da central tiveram a informação atempada dos danos causados na instalação? Até que ponto estavam preparados para corresponder a tal emergência? Terá sido inevitável a decisão dos responsáveis da central em deixarem libertar para a atmosfera a nuvem de vapor radioativo?
Para responder a tais questões o canal japonês NHK reuniu os testemunhos dos engenheiros que estavam de serviço nesse dia e reconstituiu alguns dos acontecimentos para demonstrar como era deficiente o sistema de segurança de todo o complexo, insuficiente o nível de preparação das suas equipas e vulnerável muitos dos seus sistemas e equipamentos.
Resultou dessa investigação o documentário «Fukushima, Crónica de um Desastre», de cuja realização se encarregaram Steve Burns e Akio Suzuki.
Contemporânea dessa rodagem terá sido a de Kenichi Watanabe para a Kami Productions e de que resultaria o documentário «O Mundo depois de Fukushima». O objetivo é encontrar a resposta para esta questão fundamental: como muda a vida das pessoas depois de uma catástrofe nuclear?
A equipa de filmagens regressou a Fukushima cerca de um ano depois da explosão da central  para constatar a precariedade das medidas tomadas pelos seus habitantes para minimizarem os efeitos da radiação ainda latente, uma espécie de monstro invisível, que procuram conter com a colocação de garrafas de água alinhadas às janelas.  Como se constituíssem filtro credível….
A determinação da maioria do entrevistados é a de prosseguirem com as suas vidas rotineiras de agricultores ou de pescadores, embora indignados com a arrogância criminosa de quem sempre lhes subestimara os riscos de viverem portas meias com uma tão ameaçadora bomba. Agora não escamoteiam o ódio por essa unidade industrial, que lhes ameaça a saúde dos filhos e deles próprios. Ou mesmo das gerações do futuro, razão porque uma das entrevistadas, uma senhora já de alguma idade, pedira às filhas, que não engravidassem pelos riscos de malformações e outras debilidades internas com que viessem essas crianças.
 Numa altura em que temos bem presente a ameaça, bem próxima, da central de Almaraz, ter em conta estes documentários faz todo o sentido.