domingo, julho 13, 2025

A Vanguarda silenciosa do Expressionismo

 

Embora marginalizado e enquadrado na categoria de "arte degenerada" pelo regime nazi, Karl Schmidt-Rottluff manteve um isolamento passivo perante as atrocidades que sabia estarem a ser infligidas, especialmente aos amigos judeus. Este período sombrio da história alemã comportou a supressão brutal de formas de expressão artística consideradas "não-arianas" ou "subversivas", com Schmidt-Rottluff a ser proibido de pintar e muitas das suas obras confiscadas de museus. A sua natureza reservada e a conhecida inclinação para a solidão podem ter contribuído para esse isolamento face à perseguição. Contudo, essa passividade não deve ser confundida com indiferença. Num tempo tão perigoso essa pode ter sido uma forma de sobrevivência, uma maneira de manter a integridade pessoal e artística num mundo que se desintegrava em torno dele. Em vez de uma voz ativa na resistência, a "rebeldia" de Schmidt-Rottluff sob o nazismo manifestou-se na persistência silenciosa da identidade artística e na recusa em comprometer os princípios estéticos, mesmo quando a sua arte era demonizada. Após o fim da guerra, retomou imediatamente a atividade, lecionando e ajudando a fundar o Museu Die Brücke em Berlim, reafirmando o valor da arte que o regime tentou destruir.

A importância de Schmidt-Rottluff para o Expressionismo é inegável, principalmente pelo papel na fundação do grupo Die Brücke (A Ponte) em 1905, ao lado de Ernst Ludwig Kirchner, Erich Heckel e Fritz Bleyl. Este grupo foi um marco. Os artistas do Die Brücke procuravam criar uma nova forma de arte que se distanciasse do academicismo e do impressionismo, que consideravam superficiais, buscando uma expressão mais direta, emocional e espiritual da realidade, influenciados pela arte tribal africana, pela arte gótica e pelas gravuras em madeira.

A exemplo de outros expressionistas, utilizou cores intensas, puras e muitas vezes não naturais, mas com uma força e vibração que traduziam o que sentia. A cor foi a forma de traduzir emoções, transmitindo paixão, angústia ou vitalidade.

As obras têm formas ousadas, contornos fortes e composições frequentemente simplificadas, que amplificavam o impacto emocional. Embora houvesse um dinamismo nas obras, não era um movimento literal em cada elemento, mas uma energia interna, uma efervescência emocional.

Ele recorreu também à xilogravura, uma técnica que os artistas do Die Brücke reviveram para criar imagens com linhas fortes e contrastes dramáticos, ideais para a intensidade expressiva que procuravam.

O vanguardismo de Karl Schmidt-Rottluff reside na coragem em desafiar as convenções artísticas e sociais da época, contribuindo para uma revolução na forma como a arte era concebida e percebida.

Ao libertar a cor e a forma das suas funções descritivas e ao usá-las como veículos para a expressão interior, Schmidt-Rottluff abriu caminho para futuras experimentações na arte moderna, cruciais para o desenvolvimento do Expressionismo como um dos movimentos mais influentes do século XX.

Num período de profundas mudanças sociais e psicológicas, deu voz às inquietações e sentimentos da condição humana, algo que a arte acadêmica raramente abordava com a mesma franqueza. O seu trabalho permanece como um testemunho poderoso da capacidade da arte comunicar as profundezas da experiência humana através de uma linguagem visual ousada e sem precedentes.

Transportes físicos

 

Acompanho as conferências no Youtube de Étienne Klein e daí o interesse pelo seu título mais recente na Coleção Blanche da Gallimard: "Transports physiques". É quase como se pudéssemos sentar-nos lado a lado numa das suas palestras, mas com a vantagem de podermos pausar, reler e saborear cada ideia com mais profundidade.

O cerne deste livro, que o torna apelativo, é a habilidade em desconstruir um conceito tão fundamental como o "físico". Ele não se limita a abordá-lo sob a lente da física – a ciência rigorosa das leis do universo – mas também mergulha no "físico" como corporeidade, experiência sensorial do mundo. Esta dualidade entre o que a ciência diz e o que os sentidos transmitem, é pertinente. Quem nunca sentiu-se um pouco "fora de lugar" ao tentar conciliar a vastidão do universo com a pequena escala humana?

Klein guia-nos numa viagem que explora como a física moderna conseguiu transcender as limitações da perceção imediata para desvendar mistérios cósmicos. Ele lembra que a compreensão do universo passa pela lente do cérebro, um órgão que, por si só, é um universo de complexidade.

Mas o que realmente capta a atenção são as reflexões de Klein sobre o futuro. A forma como enquadra a conquista espacial e, sobretudo, a inteligência artificial, não como meros avanços tecnológicos, mas como elementos que desafiam a redefinir a existência e a aventura no conhecimento. A ideia de que a IA pode, de alguma forma, permitir "transportes físicos" para além das limitações biológicas, como a chegada a exoplanetas, é simultaneamente estimulante e inquietante. Questiona sobre o que significa ser humano quando as fronteiras do corpo e do planeta expandem ou dissolvem.

"Transports physiques" convida a uma reflexão sobre a nossa condição. Não é um livro de divulgação científica, nem só filosófico; é a fusão destas áreas, temperada com a perspetiva pessoal de um pensador. Para quem se interessa com a forma como Étienne Klein ilumina os recantos complexos da física e da filosofia, este livro é uma experiência intelectualmente estimulante.

quinta-feira, julho 10, 2025

Carmina Burana de Carl Orff: o legado de uma ambiguidade

 

No dia em que assinalamos os 130 anos do nascimento de Carl Orff, a 10 de julho de 1895, somos confrontados com uma fascinante e perturbadora ambivalência na história da música do século XX: a audição de "Carmina Burana". Para muitos, a obra é uma explosão de vitalidade e ritmos contagiantes; para outros, carrega o pesado fardo da sua ligação ao regime nazi, levantando escrúpulos que persistem até hoje.

Não é que haja uma mensagem ideológica explícita na obra – os textos medievais falam de temas universais como o destino, a natureza e os prazeres, mas a sua estreia e ascensão meteórica à popularidade em 1937, sob o Terceiro Reich, colocam-na num contexto problemático.

O regime de Hitler, na busca por uma "nova" cultura alemã "pura" e não "degenerada" (em oposição à música de compositores judeus ou modernistas), encontrou em "Carmina Burana" um aliado inesperado. A obra de Orff, com a sonoridade robusta, ritmos vigorosos e apelo a uma certa "primitividade" e força, encaixava-se, de forma perigosa, na estética que os nazis tentavam promover.

Embora Orff não fosse membro do partido ou ideólogo, a sua música foi instrumentalizada. A popularidade de "Carmina Burana" serviu como poderosa cortina de fumaça, desviando a atenção da perseguição e supressão de outras formas de arte e artistas. A obra era apresentada como um exemplo da capacidade criativa e da "nova vitalidade" alemã, reforçando a narrativa de um povo forte e profundamente ligado às raízes. Os temas universais, como a inevitabilidade do destino na "O Fortuna", podiam ser perversamente reinterpretados para ressoar com a crença nazi num destino grandioso e inabalável para a Alemanha.

É precisamente essa instrumentalização e a forma como a obra foi acolhida e se interligou com os valores propagandísticos do regime que geram o desconforto. Ouvir "Carmina Burana" não é apenas apreciar uma peça musical, mas também confrontar-se com a sua história de apropriação por um regime hediondo.

Os escrúpulos são uma manifestação da nossa consciência histórica. Eles lembram-nos que a arte não existe num vácuo e que a sua receção e utilização podem carregar um peso moral significativo. Embora não retire o brilho musical da composição, compreender esse contexto é crucial para uma audição informada e crítica de "Carmina Burana", especialmente neste dia que marca o aniversário de seu criador. 


terça-feira, julho 08, 2025

"Rutger Hauer: Like Tears in Rain" de Sanna Fabery de Jong: uma vida e memórias perdidas

 

O documentário "Rutger Hauer: Like Tears in Rain" tocou-me de uma forma inesperada, mais do que a simples apreciação pela vida de um ator. A revelação de que Rutger Hauer tinha a obsessão por filmar cada momento da sua vida ressoou comigo por reconhecer-me nessa mesma pulsão – a necessidade visceral de cobrir em fotografia e em filme tudo o que eu e a Elza vivemos. Era a forma de tentar fixar a felicidade, os desafios, a simples beleza do quotidiano partilhado.

Contudo, a ironia do tempo e da vida manifesta-se cruelmente: boa parte desses testemunhos preciosos perderam-se na confusão da montanha de caixotes guardados na cave, para os quais, honestamente, nunca encontro tempo suficiente para organizar.

Essa perda física complementa a fragilidade da memória, que encaro de forma tão trágica, especialmente no que diz respeito à Elza. O documentário de Hauer, com a reflexão sobre o "não se perderem" os momentos – uma alusão direta à sua inesquecível fala em "Blade Runner" – faz-me questionar se regressar a essas fotografias e fotogramas não será, por vezes, um paliativo ilusório. As lágrimas na chuva que se perdem no tempo são um eco potente da incapacidade em reter tudo, de fazer o passado permanecer intacto.

Há ainda uma curiosa similitude de percurso com Rutger Hauer que o filme trouxe à mente: a sua juventude na marinha mercante. Enquanto ele passou apenas um ano nesse ambiente que foi, ainda assim, determinante na formação no fim da adolescência, também eu, ao longo de 24 anos, fiz vida no mar, numa jornada que moldou muito do que sou. São essas ligações inesperadas que nos mostram como as experiências humanas, por vezes, se entrelaçam de formas que nunca imaginaríamos.

E, por fim, a constância do amor de Rutger por Ineke ao longo da vida. Essa dedicação espelha a minha própria experiência, pois o amor pela Elza foi, e é, a força mais constante e significativa da minha existência.

A perspetiva de Rutger Hauer sobre si próprio – o sentir-se subestimado enquanto ator – contrasta com a minha visão do passado. Não me sinto subestimado, nem sobrestimado no que fiz. Limitei-me a desempenhar o melhor possível o que foi aparecendo, profissionalmente, academicamente, e em qualquer outro  desafio que a vida me apresentou. Porque verdadeiramente, o que mais interessava, e onde sinto que fiz o meu melhor, foi amar a Elza. Essa é a verdadeira medida de um legado: a memória que verdadeiramente importa e que, essa nunca se perca. 

sábado, julho 05, 2025

"Os Diários de Thomaz de Mello Breyner" de Manuel Mozos e Luis Correia: abordagem unilateral com impacto na narrativa histórica

 

O documentário "Os Diários de Thomaz de Mello Breyner" desafia a forma como a história é apresentada, particularmente quando o protagonista detém uma visão do mundo notoriamente enviesada.

Thomaz de Mello Breyner era, sem dúvida, um monárquico fervoroso, um sidonista convicto e um crítico acérrimo dos líderes republicanos da sua época. Depois, com naturalidade, seria confesso salazarista. A sua perspetiva, fielmente registada nos diários, é inegavelmente reacionária, contrastando fortemente com os valores e as ideologias que moldariam a sociedade portuguesa de hoje.

A questão central que se coloca é como esta "apologia" a uma figura com tal pendor ideológico pode ser o trabalho de entidades como a Lx Filmes, e de realizadores como Manuel Mozos e Luís Correia cuja reputação imporia o contributo para uma narrativa mais diversa.

O documentário falha precisamente no que seria crucial para equilibrar a balança: a ausência de contraponto. Ao dar primazia exclusiva à voz de Thomaz de Mello Breyner, com fortes convicções monárquicas e observações depreciativas sobre os republicanos, a produção opta por uma abordagem unilateral. Em vez de confrontar ou contextualizar criticamente essas posições com perspetivas contrárias, ou análises históricas alternativas, o documentário limita-se a reproduzi-las.

A presença de Manuel Wiborg e, crucialmente, de Maria João Avillez na narração só fundamenta esta discussão. Enquanto a voz de Manuel Wiborg, ator reconhecido, poderia ser vista como uma escolha artística, a participação de Maria João Avillez, de conhecidas posições políticas, reforça a apreensão. Esta escolha de narradores pode, inadvertidamente ou não, validar e amplificar a perspetiva já unilateral do protagonista monárquico.

Para quem valoriza a pluralidade de vozes na construção da narrativa histórica e espera uma abordagem que estimule o pensamento crítico, a ausência de perspetivas contrárias é lacuna significativa. Comprometer-se com uma história rica e multifacetada exige a coragem de apresentar e debater as várias facetas de um período, incluindo aquelas que desafiam as narrativas dominantes.

Em suma, embora os diários de Thomaz de Mello Breyner sejam uma fonte histórica valiosa, apresentá-los sem vozes e ideologias que lhes eram opostas representa uma oportunidade perdida para um documentário verdadeiramente abrangente e crítico que escape a esta glorificação de uma visão reacionária.

 

sexta-feira, julho 04, 2025

Um viajante com causas

 

Há pessoas que nascem vocacionadas para a ação. Enquanto uns dão-se mais ao estilo meditativo, quiçá melancólico, pretexto para a passividade, há quem não se compadeça com a realidade, a queira aprofundar e, se possível, transformar.

Patrick Leigh Fermor foi uma força da natureza que personificou a aventura, o intelecto e uma sede insaciável por desvendar os mistérios do mundo. A sua vida não foi um mero percurso, mas uma série ininterrupta de explorações, geográficas, culturais e humanas, que o distinguiram como um dos mais interessantes viajantes e prosadores do século XX.

Desde cedo, Leigh Fermor evitou a estagnação: aos 18 anos decidiu caminhar de Roterdão até Constantinopla. Não foi apenas uma viagem física, mas uma odisseia de autodescoberta e imersão cultural. Cada palmo percorrido era um convite ao encontro com o desconhecido, à absorção das paisagens, línguas e costumes que moldariam a sua visão de mundo. Essa "Grande Caminhada" foi o prelúdio para a vida de aventura que se seguiria, e mais tarde transformaria em literatura de viagens como "Tempo de Dádivas" e "Entre os Bosques e a Água".

A sede de ação encontrou o auge durante a Segunda Guerra Mundial quando mergulhou no coração do conflito, alistando-se na Special Operations Executive (SOE) britânica.

As ações em Creta, onde viveu disfarçado e colaborou ativamente com a resistência grega contra a ocupação nazi, são dignas dos mais arrojados romances de espionagem. O rapto do General alemão Heinrich Kreipe em 1944, proeza audaciosa de planeamento e execução, cimentou-lhe a reputação de homem de ação ao estilo de um "James Bond da vida real".

A guerra não foi um período de espera, mas um palco para a intervenção direta, para a tentativa de moldar a realidade através de atos corajosos e decisivos.

Mas a ação de Leigh Fermor não se limitou aos feitos militares. As viagens e a escrita revelaram-no como observador e participante ativo na tapeçaria das vidas que encontrava. Ao explorar o Peloponeso na obra "Mani", não se limitou a descrever paisagens. Mergulhou na história, nas lendas e nas vidas dos habitantes locais, procurando compreender e capturar a essência de uma cultura.

A prosa vívida e erudita foi a ferramenta com que dissecou e apresentou a realidade aos leitores, tornando-os cúmplices na jornada de descoberta. Cada frase, cada descrição significou o ato deliberado de comunicar, de partilhar o que via e sentia, num esforço ativo para enriquecer o mundo através do conhecimento e da beleza.

Ele não esperou que a vida lhe acontecesse: foi ao seu encontro, desafiou-a, compreendeu-a e, através da escrita, transformou-a em algo acessível e inspirador. 

terça-feira, julho 01, 2025

"O Mal Amado" de Fernando Matos Silva: A Autoridade Paterna como Extensão do Regime

 

"O Mal Amado", de Fernando Matos Silva, tal como outras obras do Cinema Novo Português da mesma época, oferece uma perspetiva crucial sobre o papel do pai de família e a intrínseca ligação ao culto do chefe imposto pelo Estado Novo. Nestes filmes, a figura paterna transcende o âmbito doméstico, tornando-se uma representação microcósmica da autoridade e dos valores propagados pelo regime de Salazar e, mais tarde, de Marcelo Caetano.

No contexto do Estado Novo, o pai de família era o pilar da estrutura social e moral, espelhando a hierarquia e o autoritarismo que o próprio regime incutia. Este era um modelo patriarcal reforçado pela propaganda oficial, que promovia a ordem, a disciplina e a obediência cega – valores que se esperava fossem replicados no seio familiar.

Em "O Mal Amado", o personagem de Soares, pai de João, é um exemplo paradigmático. Sendo um funcionário público zeloso e com influências, ele não só encarna a pequena burguesia que se conformava com o sistema, como também utiliza a posição e contactos para tentar controlar o percurso do filho. A preocupação em arranjar um emprego para João antes da tropa, e a tentativa de o direcionar para um caminho "seguro", demonstram a sua autoridade enquanto chefe de família, mas também como agente da ordem e da estabilidade preconizadas pelo regime. Ele representa a figura que procura manter o status quo e, de certa forma, impede a autonomia e o espírito crítico da geração mais jovem, características que a censura tentava suprimir.

O Cinema Novo Português dissecava muitas vezes esta figura de autoridade, expondo-a nas suas contradições e limitações. Explorava-se o desencanto, a frustração e a asfixia social provocadas por um sistema que se estendia desde o topo da hierarquia política até ao interior dos lares.

Através de personagens como o pai de João, estes filmes revelavam a pequena burguesia aprisionada em que muitos destes pais de família, embora detentores de alguma autoridade, eram também vítimas de um sistema que lhes limitava as perspetivas e os forçava a uma conformidade sufocante. A autoridade era, muitas vezes, mais uma imposição de um modelo de vida do que uma escolha genuína.

A rigidez paterna entrava em choque com as aspirações de liberdade e as inquietações de uma juventude que questionava a Guerra Colonial, a falta de oportunidades e a ausência de liberdade. O pai tornava-se, assim, o guardião de um sistema que os mais novos ansiavam derrubar.

Ao mostrar as fissuras na autoridade paterna e as reações dos filhos, estes filmes, de forma subtil, abriam caminho para a ideia de que a ordem estabelecida podia ser questionada e, eventualmente, subvertida.

"O Mal Amado" e outros filmes do Cinema Novo Português, ao abordarem este e outros temas, não só espelhavam o culto do chefe do Estado Novo, mas também revelavam as suas fissuras e as sementes da contestação que iriam florescer com a Revolução de Abril. Eram filmes que, com coragem e sensibilidade, davam voz às tensões de uma sociedade à beira da transformação. 

segunda-feira, junho 30, 2025

A Sinfonia n.º 4 em Mi menor, Op. 98, de Johannes Brahms: perante as mudanças conjunturais

 

Esta foi a última das sinfonias do compositor e há quem a considere uma das obras canónicas do repertório  romântico.

Brahms compô-la no verão de 1884 e 1885, quando passava férias em Mürzzuschlag, uma cidade montanhosa na Áustria. Um ano antes ele concluíra a Sinfonia nº 3, mas quis que esta fosse muito diferente dessa obra anterior, mais sombria, se não mesmo acentuadamente trágica.

Autocrítico e ansioso quanto à receção das novas obras, Brahms tocou uma versão desta para dois pianos tendo por seleto público um pequeno grupo de amigos, entre os quais o crítico Eduard Hanslick e o cirurgião Theodor Billroth.

A reação inicial de alguns desses amigos foi de perplexidade, mas Hanslick acabou por elogiá-la efusivamente. A estreia oficial, com Brahms a dirigir a Orquestra da Corte de Meiningen, ocorreu a 25 de outubro de 1885 e foi um grande sucesso.

Acredita-se que Brahms estava a refletir sobre a sua própria mortalidade e o futuro da música no final do século XIX, dadas as grandes mudanças então em curso. O uso da passacaglia no último andamento sugere uma ligação ao passado e um profundo respeito pelas tradições musicais, em particular Bach, cujo tema de uma cantata serviu de base para esse movimento. 

domingo, junho 29, 2025

"O Mal Amado" de Fernando Matos Silva: a última proibição

 

"O Mal Amado” foi o último filme integralmente proibido pela censura fascista em Portugal. Uma obra que explorava o desencanto da juventude e as tensões sociais do pré-25 de Abril de 1974 não poderia ser aceite por quem procurava controlar as narrativas e a perceção da realidade.

O filme foi apresentado à censura em fevereiro de 1974, e a decisão não foi surpresa. As autoridades consideraram-no "negativo" e "imoral", termos que a censura frequentemente usava para descartar qualquer obra que ousasse questionar as fissuras da sociedade. O retrato das inquietações estudantis, da frustração pequeno-burguesa e, implicitamente, das consequências da Guerra Colonial (através da personagem de Inês), eram temas demasiado "sensíveis" para um regime que se desmoronava, mas ainda resistia através da repressão. A proibição de "O Mal Amado" testemunhou  a paranoia e o controlo férreo que o Estado Novo exercia sobre a cultura e a liberdade de expressão até aos seus últimos dias.

A Revolução dos Cravos mudou radicalmente o destino do filme. De um momento para o outro, "O Mal Amado" passou de obra proscrita a um símbolo da recém-conquistada liberdade. A estreia, apenas um mês depois, em maio, foi um marco cultural e político inesquecível.

Lembro-me perfeitamente de o ter visto no verão em que fazia tropa no Alfeite. Naquele contexto "O Mal Amado" foi um sopro de ar fresco, uma epifania. O filme, que finalmente podia ser exibido sem os cortes da censura, trazia ao grande ecrã as angústias que tão bem compreendia – o desencanto, as pressões familiares, a sombra da guerra colonial, e a busca por um sentido num país asfixiado.

O que realmente me marcou foi a sensação de que, na nova realidade todos aqueles constrangimentos, que o personagem principal do filme sentia, pareciam ter solução. A asfixia dava lugar à esperança, a opressão à possibilidade. A liberdade de expressão, espelhada naquele filme finalmente sem cortes, era um prelúdio da liberdade que sentíamos estar a ganhar na nossa própria vida. "O Mal Amado" não era só um filme; era um espelho, e ao mesmo tempo, uma janela para um futuro onde as nossas próprias inquietações poderiam encontrar um caminho.

"O Mal Amado" transcendeu, pois, o estatuto de mero filme para se tornar um ícone. A sua trajetória espelha a própria história de Portugal naqueles dias decisivos, marcando a transição de uma era de opressão para uma de liberdade e abertura cultural. 

sexta-feira, junho 27, 2025

"Twin Peaks: Fire Walk With Me - The Missing Pieces" de David Lynch: um deleite caótico

 

"Twin Peaks: Fire Walk With Me - The Missing Pieces" não é para qualquer um. É uma daquelas obras que só fazem sentido para quem já mergulhou de cabeça no universo peculiar de David Lynch, especialmente na saga de "Twin Peaks". Para um novato, seria como tentar decifrar um sonho febril sem o dicionário dos símbolos. Mas para os iniciados, é um verdadeiro presente.

Este não é um filme no sentido tradicional; é uma janela extra, um suplemento vital para quem já se deixou envolver pela história trágica de Laura Palmer e pelos mistérios de Twin Peaks. As cenas que foram resgatadas aqui, e não viram a luz do dia na versão original de "Fire Walk With Me", são peças que se encaixam e aprofundam a compreensão de um mundo já de si complexo. Vemos mais do FBI, mais das vidas marginais que orbitam Laura, e até mais daquele lado onírico e perturbador que Lynch domina tão bem.

E é precisamente aqui que reside o maior charme – e o maior desafio – do filme: o lado absurdo. Há momentos em "The Missing Pieces" que são puro Lynch: diálogos desconexos, personagens com comportamentos inexplicáveis, e situações que desafiam qualquer lógica cartesiana. No entanto, o génio está em como esse absurdo tem a sua gramática interna, a sua lógica lynchiana. Não é um absurdo gratuito; é um espelho distorcido da realidade que reflete as angústias, os medos e a hipocrisia de um modo que a linearidade convencional jamais conseguiria. É como estar num pesadelo lúcido onde tudo é ilógico, mas as sensações e as emoções são intensamente reais.

Para quem conhece os segredos da Loja Negra e da Loja Branca, para quem já se familiarizou com os duplos e os mistérios da floresta, "The Missing Pieces" é um complemento essencial. Ele não apenas preenche lacunas narrativas, mas intensifica a atmosfera de estranheza e melancolia que define "Twin Peaks". É uma experiência visceral, por vezes desconfortável, mas sempre fascinante, que só pode ser plenamente apreciada por aqueles que já estão dispostos a abandonar a lógica e entregar-se ao surreal. E é exatamente por isso que me agrada. 

quarta-feira, junho 25, 2025

"Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" de João Pedro Marnoto: um retrato etnográfico

 

O documentário é um testemunho das gentes de Trás-os-Montes e Douro. A realização, fruto de uma década de convívio e confiança com as comunidades, permitiu captar a intimidade e as particularidades da vida rural, os contrastes entre a inocência e a inevitabilidade da morte, e a relação intrínseca com a terra, a fé e o progresso. A crítica, e crucialmente as próprias comunidades retratadas, sublinharam o respeito e a profundidade com que Marnoto abordou essa realidade, afastando qualquer sombra de miserabilismo. Não se trata de uma exposição sensacionalista da pobreza, mas da observação autêntica da dignidade e da resiliência num contexto rural desafiador.

É aqui que o filme se torna um ponto de partida interessante para uma discussão sobre a etnografia. O olhar do etnógrafo carrega, inevitavelmente, a sua bagagem cultural e pode correr o risco de reproduzir preconceitos se não houver rigor e autocrítica. Uma etnografia que se limita a descrever sem questionar as estruturas subjacentes ou naturaliza as desigualdades pode ser conservadora, despolitizando a realidade e ignorando as dinâmicas da luta de classes.

No entanto, o caso de "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" parece ilustrar o lado mais promissor da etnografia: o de uma lupa crítica. Ao dar voz e visibilidade a comunidades frequentemente marginalizadas ou incompreendidas, e ao fazê-lo com respeito, o documentário desafia perceções preconcebidas permitindo-nos ver além do estereótipo, compreendendo as complexas interações entre a cultura, a fé e as condições socioeconómicas.

A questão do papel das crenças religiosas na preservação das desigualdades socioeconómicas é central nesta análise. O documentário, ao focar-se na vida de uma comunidade onde a fé é um pilar, abre caminho para uma reflexão sobre como a religião pode ser ambivalente. Se, por um lado, as crenças podem ser interpretadas de forma a justificar o status quo, incutindo resignação perante as dificuldades e desviando a atenção das causas estruturais da pobreza, por outro, são também uma fonte de conforto, coesão e até resistência.

A etnografia, ao mergulhar nas minúcias da vida religiosa e nas intersecções com as condições materiais, permite uma compreensão mais nuanceada. Em vez de uma condenação simplista, somos levados a questionar: como são vividas estas crenças no dia a dia? Como se articulam com as lutas pela sobrevivência? Serão meras ferramentas de alienação, ou podem ser um refúgio e uma força mobilizadora?

Em suma, "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" serve como ponto de partida para refletir sobre como um documentário etnográfico, quando bem executado, pode transcender a mera observação tornando-se num veículo para aprofundar a compreensão das complexas relações entre cultura, economia e fé, sem cair em generalizações.