quinta-feira, novembro 29, 2018

(DIM) Enquanto Jean não fez jus ao apelido de Renoir


Quase quarenta anos passados sobre a sua morte, ocorrida em Beverly Hills em fevereiro de 1979, Jean Renoir continua a ser considerado um dos génios maiores da arte cinematográfica, com muitos dos seus filmes consagrados como grandes clássicos, em que protagonistas e personagens secundários eram criados com atenção similar.
O seu nascimento acontecera em 1894, um ano antes da apresentação do cinematógrafo dos irmãos Lumière. O pai era o pintor impressionista Auguste Renoir, conhecido pelas obras de exaltação da beleza e sensualidade feminina. Uma característica que o filho reproduzirá em muitos dos seus 38 filmes. Assim como tornaria à Montmartre da sua infância, quando rodou «French Cancan» em 1954, ali evocando muito do que vira nas ruas parisienses quando ainda vestia calções.
Vivendo num ambiente burguês já que o pai, ainda que oriundo de estrato social inferior, ascendera a outro estatuto graças ao talento justificativo de ter tão abonados clientes, Jean passará esses anos entre a capital francesa e o ensolarado sul, onde a família passava muitas temporadas.
Na adolescência o rendimento escolar era medíocre: assombrado pela celebridade do pai e do próprio irmão, Pierre, já reconhecido como ator de sucesso, Jean pensa orientar-se para uma ocupação operária. Como alternativa decide alistar-se no Exército, conseguindo sobreviver aos combates da Primeira Guerra Mundial. A camaradagem vivida nesse ambiente militar seria por ele vertida, em 1937, para um dos seus melhores filmes: «A Grande Ilusão».
Desmobilizado após o armistício, Jean decide abrir uma loja em Cagnes para comercializar as suas cerâmicas, mas desilude-o vir a compreender que os clientes não lhe compravam as peças por apreciarem a sua arte, mas por vir assinada pelo filho do prestigiado pintor.
Enamora-se, então, de Andrée Heuschling, uma das modelos do progenitor, e que será a sua primeira mulher. Não imaginava que viria a ser ela a encaminhá-lo para uma nova direção profissional: o cinema. De facto ela ansiava tornar-se atriz e o marido decide fazer-lhe a vontade escrevendo-lhe um argumento e produzindo-lhe o filme correspondente. dirigido por Albert Dieudonné:  «Catherine» (1924). Rendida á personagem, Andrée mudaria de nome passando a chamar-se Catherine Hessling.
O fracasso artístico e comercial do filme não dissuade Jean, que decide ser ele próprio a incumbir-se de futuros projetos.
Nesse mesmo ano realizaria  a sua primeira longa-metragem, «La Fille de l’eau», protagonizado por Catherine e Pierre, que voltaria a resultar num rotundo fracasso comercial.  Que importava? Jean descobrira o prazer de filmar e, depois, ser aplaudido, amado pelo seu valor.
Os insucessos comerciais não deixam, porém, de o perseguir: a adaptação de «Nana» (1926), segundo Zola, ou «A Pequena Vendedora de Fósforos»  (1928), segundo o conto de Hans Christian Andersen, obrigam-no a vender diversos quadros do pai para reequilibrar o orçamento, mas consolidam o percurso de Catherine como atriz.
Rejeitado pelos produtores, chega a ponderar não ser na realização, que conseguirá manter-se na indústria. Daí que faça uma experiência de ator numa curta-metragem realizada pelo brasileiro Alberto Cavalcanti em 1927. Esse «La P’tite Lili», em que entrara para ajudar Catherine a firmar-se como vedeta de cinema, tem a particularidade de contar, não só com a esposa de então, mas também com as duas mulheres, que contarão no seu futuro afetivo: a montadora Marguerite e Dido Freire, com quem viria a casar em 1944.
Será verdadeiramente com «La Chienne» em 1931, que Jean virá a ser um Renoir  independente da condição de filho de quem era. Vale-lhe a interpretação daquele que era um dos melhores atores da época, Michel Simon, cuja credibilidade no papel de pequeno-burguês obcecado por uma mulher, que assassina por não se ver retribuído na paixão, que lhe dedica, ainda mais se revelara pelo facto de estar efetivamente tomado de amores por Janie Marèse, que interpretava esse papel.
O filme marca, igualmente, a rutura sentimental de Jean com Catherine, que não lhe perdoaria o ver-se preterida por outra atriz na escolha de quem integraria o elenco em causa.

(DL) As primeiras páginas de «O Homem que gostava de cães» de Leonardo Padura


Da atual literatura cubana retenho o nome de Leonardo Padura como o autor mais interessante. Se o comecei a conhecer através dos romances policiais, tendo Mário Conde como protagonista, venho-o lendo noutros romances onde a lógica de género se dilui e fica a narrativa ficcional liberta dos espartilhos anteriores.
Datado de 2011, ‘O Homem que gostava de Cães» vai desenvolver-se em dois percursos paralelos destinados a cruzarem-se num momento decisivo, em agosto de 1940: o de Leon Trotski e o de Ramon Mercader.
De início temos um narrador, Ivan, que sai do cemitério depois de acompanhar o funeral de Ana com quem vivera nos anos mais recentes.  Conhecera-a na Escola de Veterinária onde trabalhava, quando lhe aparecera com um poodle carecido de urgente operação. Porque nenhum clínico estava presente, ele próprio se incumbira da cirurgia, que poupara a vida ao animal de estimação da rapariga. Dias depois já ele e ela partilhavam as dificuldades de sobreviverem nas difíceis condições da crise dos anos noventa, quando estancara o contínuo apoio económico da União Soviética antes da sua implosão. As muitas carências básicas não lhes haviam condicionado os êxtases propiciados pela arrebatada paixão.
É para entreter a companheira nas dificuldades das derradeiras semanas de vida, que Ivan começa a contar-lhe a história do homem que gostava de cães, com quem privara catorze anos antes. Não a vertera para versão escrita por assumido receio das consequências se lha viessem a encontrar. O relato recua até 20 de janeiro de 1929 quando, deportado para Alma-Ata, Liev Davidovitch confirma os receios de se ter visto definitivamente proscrito do país, que ajudara a revolucionar.  Qualquer controle, que quisesse deter sobre a vida e a morte, quer sua, quer dos familiares mais próximos, deixara de lhe pertencer. A ordem de expulsão do país no prazo de vinte e quatro horas surgira-lhe ao fim de várias semanas a viajar de comboio para longe de Moscovo, com muitas paragens, algumas delas suscitadas pelas maiores tempestades de neve a que jamais assistira.
As escassas notícias sobre os acontecimentos na capital só acrescentavam desespero ao que começara por se assemelhar a um forte desânimo: os amigos estavam a ser presos e condenados, sonegando esperanças a uma qualquer inflexão.  A preocupação imediata tinha a ver com o sítio para onde o queriam mandar: a Turquia contava com muitos dos russos brancos, que o continuavam a eleger como inimigo a abater. Talvez fosse essa a esperança de Estaline: não querendo ser acusado da sua morte, propiciava condições a quem a almejava, possibilitando-lhe a recuperação do cadáver, novamente restituído à condição de herói da Revolução, por ela tombado em ignóbil martírio.

quarta-feira, novembro 28, 2018

(DIM) «Uma História de Violência» de David Cronenberg (2005)


Naquele que o filósofo Ollivier Pourriol considera o melhor filme de David Cronenberg, um pacato chefe de família de uma pequena cidade do Indiana vê-se confrontado com um passado erradamente julgado como tal. Basta um par de assassinos irromper pelo restaurante familiar, ameaçando massacrar toda a gente, para ele recuperar competências antigas e matá-los num ápice.
Sabe-se bem como a imprensa americana gosta de heróis, sobretudo se os puder promover como parecendo improváveis e tendo uma família convencional a servir-lhe de suporte. Daí que Tom Spall seja idolatrado nas televisões locais, e até nas nacionais.  É como pôr mel para atrair ursos: não tarda a aparecer-lhe Fogerty, em tempos rival do bando de Filadélfia, donde ele se exilara. E apostado em saldar contas antigas, que nunca chegaremos a saber quais foram.  Uma vez mais Tom é lesto a livrar-se das ameaças, mas já não pode esconder à mulher e aos filhos as pretéritas ações, que o obrigavam a revelar-se numa face até então desconhecida.
Se em «O Padrinho» de Coppola a violência era uma espiral de que os protagonistas não se conseguiam livrar, neste filme de Cronenberg sugere-se a mesma alternativa que, em tempos, levava um grande líder político a proclamar que, contra a brutalidade inimiga só restaria combatê-la com o ímpeto revolucionário. Razão para vermos Tom Spall despedir-se da família, cuja segurança já não consegue assegurar, e voltar à cidade de origem para quebrar de vez todos os elos com ela relacionados. Nem que para tal seja obrigado a matar o próprio irmão e todo o gangue por ele chefiado.
No final, coberto de sangue, Tom Spall lava-se num lago e tem a esperança de poder voltar para casa retomando a personalidade tranquila, que conseguira mascarar tão bem antes de ser inesperadamente posto à prova.
Cronenberg aborda a violência mediante a questão: donde vem o Mal? Pode-se cometer um crime, tendo-se sido virtuoso até então, ou ele explica-se por um tipo de contágio transmitido de geração em geração? Embora abundantemente explicita, a violência não é aqui estetizada, mas escalpelizada. Até porque, não havendo vidas para além da morte, todas elas valem por si mesmas sem compensações que as possam vir ulteriormente a redimir.

(DIM) A morte de um conformista


Estranhei o destaque dado pela à notícia da morte de Bernardo Bertolucci. Se muito apreciei os seus filmes nos anos setenta, o encontro com «Tragédia de um Homem Ridículo» representou uma definitiva reapreciação da importância do seu cinema, depois confirmada na subsequente internacionalização, que houve quem considerasse como a fase da substituição da Revolução pela decoração. Vi muitos desses filmes assinados nos anos oitenta, noventa e na primeira década deste século, mas nenhum deles me suscitou mais do que um irremediável enfado por neles nada encontrar do que fundamentara o prazer cinéfilo dos anteriores.
Houvera «O Último Tango em Paris», que perdurou na memória pela cena que todos dele se recordam. Bastante melhor o «1900», que era épico na ilustração da luta antifascista dos parigiani contra os apaniguados de Mussolini. Acima de ambos «O Conformista», que levava Trintignant a incumbir-se da morte de um antigo professor exilado em Paris. Mas, sobretudo - e esse é o meu título de particular estima na filmografia do realizador -, «A Estratégia da Aranha» em que um jovem ia à procura da verdadeira natureza do pai, esse Athos Magnani, simultaneamente traidor e herói, mas só nesta última vertente consagrado.
Não era surpreendente essa forma de voltar a matar o pai, que o filho Athos empreendia, tendo em conta que, além de marxista, Bertolucci confessava-se um devoto de Freud, cujas teses voltaria a revisitar no seu »La Luna» em que o incesto entre mãe e filho passava de latente para consumado.
Se a morte física lhe aconteceu agora, já há muito que se convertera num cadáver adiado.

terça-feira, novembro 27, 2018

(DIM) O que torna possível o Cinema


Se fizermos um questionário em que perguntemos quem inventou o Cinema a maioria das respostas coincidirá no nome dos irmãos Lumière. Mas talvez devêssemos recuar um pouco dessa data inaugural de 1895 para encontrarmos a resposta mais correta. Para aí uns trinta mil anos, quando criativos, sem consciência de o serem, utilizaram as paredes das cavernas pré-históricas, e as sombras das fogueiras, para inventarem histórias, depois fixadas nas primeiras pinturas rupestres.
Podemos, porém, ser mais exigentes, considerando acontecer Cinema apenas quando se capta movimento com um dispositivo e depois se o pode reproduzir para diversos observadores. Essa captação é feita em duas etapas, começando-se por decompor o movimento decorrente de uma sequência de imagens fixas, depois projetadas tão rapidamente quanto o necessário para suscitarem a ilusão do movimento.
Nasceu assim o paradigma de fazer do Cinema uma exibição de imagens fixas, porque é isso que ele é: os fotogramas não são mais do que momentos registados por uma câmara a que o projetor confere a ilusão de se sucederem umas às outras no cérebro do espetador.
Essa consciência da necessidade de traduzir uma qualquer realidade numa dinâmica sequencial talvez tenha surgido muito mais cedo do que o imaginemos, justificando-se o recuo até às já referidas populações pré-históricas. Há investigadores, que estudaram as pinturas da gruta de Chauvet e viram nos animais representados na imagem ao lado uma fixação do mesmo animal em sucessivos instantes do seu movimento e não propriamente a manada inicialmente considerada. E que, no bruxulear das chamas das fogueiras, o animal ganharia a aparência de estar vivo.
É tese controversa, de improvável reiteração, mas não contradiz a ilação de datar de há muito a intenção artística de decompor um movimento num conjunto de instantâneos como se vê numa taça de 2500 anos a.C. conservada no Museu Nacional do Irão.
A própria pintura procurou guiar o olhar do espetador nessa lógica do movimento como se vê no exemplo do quadro pintado por Théodore Gericault em 1819 sobre os náufragos da balsa Medusa em que quatro dos seus personagens sugerem a forma como pode ser vislumbrado com maior eficácia emocional.
Conclui-se o conhecimento sobre decompor o movimento vem de passados imemoriais. Era, então, necessário criar a forma de ser visto como tal por quem se lhe viesse a constituir observador. E as primeiras tentativas lavraram de um equívoco inicial, quando, em 1830, se considerou existir a persistência retiniana. Era um fenómeno conhecido desde o disco de Newton, que demonstrava como a sobreposição de imagens, a desfilarem muito rapidamente nos olhos, possibilitavam a sua retenção na memória durante um brevíssimo momento. Esse princípio estivera na origem do brinquedo ótico conhecido por taumatrópio, muito popular no início do século XIX, quando parecia aprisionar um pássaro dentro de uma gaiola.
Surgiu, então, o físico belga Joseph Plateau, que inventou o fenacistoscópio, um dispositivo só exequível por ser capaz de bloquear a persistência retiniana. Era constituído por dois discos, um com as imagens destinadas a ganharem movimento e o outro, inteiramente negro, com aberturas para ver o que o outro ia revelando no seu movimento circular. O olho do observador via desfilar uma imagem desenhada, seguida de um instante totalmente negro, e logo outra reiniciaria o mesmo ciclo. Sem esse corte intermédio as imagens sobrepor-se-iam e tornar-se-iam numa incompreensível charada.
Plateau acabava de descobrir um fenómeno ótico a que se viria a designar efeito phi (j) a partir de 1912. É ele que permite sugerir o deslocamento de uma luz por quatro quadrantes distintos.
Essa confusão, entre o cinema como consequência da persistência retiniana e o efeito j,  persistiu até hoje, não faltando manuais sobre a História do Cinema, que atribuem ao primeiro o que só ao segundo compete.

segunda-feira, novembro 26, 2018

(S) Pete Seeger a cantar a canção de homenagem a Joe Hill

(DIM) Guru Dutt e Joe Hill na Cinemateca


Um grande clássico do cinema indiano passa esta tarde na Cinemateca: «Pyaasa» de Guru Dutt. Protagonizado pelo próprio realizador é a história de um poeta explorado pelo seu editor e ajudado por uma prostituta apreciadora dos seus versos, com todo o melodrama a fundamentar-se numa sucessão quase ininterrupta de belíssimas canções.
Mas o grande filme desta segunda-feira na sala da Barata Salgueiro é o que passa à noite e recorda a personalidade lutadora de Joe Hill, um operário sueco apostado em defender os direitos dos trabalhadores nos Estados Unidos para onde emigrara como forma de escapar à pobreza no país natal. As suas lutas e, sobretudo, o martírio deram origem a canções, que grandes nomes como Paul Robeson ou Pete Seeger cantaram. Os defensores do capitalismo selvagem conseguiram a condenação à morte do líder de quem se lhes opunha, mas a História tenderá a conservar dele a memória do heroísmo, enquanto dos seus carrascos, quem os irá evocar?
Realizado pelo sueco Bo Widerberg em 1971, vale pela importância de não se deixar cair no esquecimento aquele que foi um verdadeiro ícone da esquerda norte-americana.

(DIM) "Garden Path" de Stan Brakhage

domingo, novembro 25, 2018

(DL) O Funesto Destino do Doutor Frankenstein


Há precisamente dois séculos surgiu publicada pela primeira vez a novela de Mary Shelley dedicada ao monstro criado pelo doutor Victor Frankenstein. A autora era uma jovem de 21 anos, que saíra da casa paterna dois anos antes para viver com o amante, o poeta Percy Shelley.
Nos Alpes Suíços, onde se tinham refugiado junto de outros intelectuais ingleses, nomeadamente Lord Byron, ela acedera ao desafio feito por este último para que criassem histórias fantásticas, que lhes pudessem animar os serões á lareira. Mary contaria depois ter imaginado o seu protagonista num devaneio entre o sono e a vigília, sem imaginar como ele se tornaria emblemático do que viria a ser a Ficção Científica, enquanto género literário.
Percy, que aliava o talento poético com a curiosidade científica, servira-lhe de modelo para criar o cientista obcecado pela descoberta do segredo da Vida, apostando na criação de um novo ser a partir de pedaços de cadáveres. Embora arrogante no intento, Victor pretextava a possibilidade de solução para o comum sofrimento humano. A criatura acaba por ser uma espécie de alter ego da escritora, que crescera sem mãe (falecida no pós-parto, que lhe permitira nascer) e com um pai sisudo, William Goodwin, fascinado pelos valores da Revolução Francesa, cujas ideias divulgava nos ofícios de escritor e jornalista.
A ideia de se conseguir a ressurreição a partir de um corpo morto fazia todo o sentido para quem sofrera a perda de Clara, a sua primeira filha. A forma como descreve a lenta transição da morte para a vida pela criatura criada em laboratório, teria sido inspirada na narcolepsia paterna, pois vira-o, amiúde, acometido de ataques fulminantes e de não menos inopinados redespertares.
Assustado pelo ato blasfemo, que executara, Victor foge da criatura, demonstrando-lhe o sentimento de rejeição, que viria a explicar o seu posterior comportamento. Se o cinema e o teatro logo cuidaram de a representar como monstruosa, Mary descreve-a com sentimentos e uma complexa personalidade.
Nos primeiros dias, quando se refugiaou na floresta, a criatura descobriu o fogo e deslumbrou-se com as expressões de beleza à sua volta. A surpresa de descobrir a Lua constitui um dos momentos mais memoráveis do romance. Mas quando, qual Narciso, vê o reflexo na água, horroriza-se com a fisionomia criada pelo arrependido progenitor. Tanto mais que se vê surpreendido pela família, que costumava espreitar e com cujo comportamento buscava humanizar-se. Ao incendiar-lhe a casa inicia a deriva assassina, só adiada ao convencer Victor a criar-lhe uma companheira, que o fizesse sentir menos só. Mas até essa possibilidade se lhe gora com o recuo do cientista, por isso mesmo sujeito a vingança com a morte violenta da noiva.
Perseguindo  a sua criação num glaciar, Victor morre numa avalanche, já não a vendo internar-se nas sombras.
Sem o imaginar Mary prenunciou o arrependimento dos cientistas com as suas descobertas (como sucedeu nos que criaram a primeira bomba atómica) e a anunciada robotização da nossa sociedade.

(AV) A fase inicial da obra criativa de Van Gogh


Foi em Brabante, província do sul da Holanda, na fronteira com a Bélgica, que Vincent Van Gogh viu frustrada a possibilidade de ter futuro como pastor protestante e confirmou a vocação alternativa de artista.
A aposta na carreira religiosa tinha-lhe feito todo o sentido, por ser essa a do pai ou do austero avô, em cuja casa de Breda, ensaiara, porém, a expressão criativa.
Foi nas paisagens verdejantes, com moinhos e tradições ancestrais, que se fez pintor e consolidou o amor pela Natureza, preferindo exercitar-se ao ar livre do que enclausurar-se num ateliê.
Essa identificação com a expressão divina através de tudo quanto via nos seus passeios coincidia com o ideário religioso, já que, desde a infância, lhe tinham martelado a mente sobre a presença de Deus em tudo quanto a Natureza prodigalizava. A atenção desviara-se-lhe, porém, para as pessoas sofridas, que trabalhavam arduamente a terra e de pouco mais se alimentavam para além das quotidianas batatas. Uma das obras mais referenciadas do seu período inicial é precisamente a de 1885, em que, à ceia, uma família partilhava esse «manjar».
Dois anos antes, quando vivia em Nuenen, habituara-se a afastar-se o mais possível da aldeia para ir ao encontro de quem estava a trabalhar nos campos e se tornava involuntário modelo dos seus desenhos e quadros.
Ao invés da maioria dos pintores de então, prescindia de tomar como inspiração os cenários burgueses - que poderiam tornar mais comercializáveis os seus quadros - imitando Millet na reprodução da atividade dos camponeses.
Ao partir para Paris já estava ciente do que pretendia fazer daí por diante, porventura sem imaginar os difíceis obstáculos, que o acompanhariam e lhe aprofundariam o desespero de não conseguir a sobrevivência senão á custa do contínuo apoio financeiro do irmão, Theo.

(DIM) «O Abismo» de James Cameron (1989)


Deve-se muito provavelmente a defeito profissional, que os filmes passados no alto mar me mereçam particular atenção, sobretudo se são irrepreensíveis na construção como é o caso deste filme que James Cameron rodou há quase trinta anos. Mas mesmo sem a grata experiência de ter passado muitos dias de anos idos a olhar para o horizonte e só nele vislumbrar céu e água, o fascínio adolescente na leitura das aventuras de Aronnax e seus amigos no submarino do capitão Nemo também funcionaria como estímulo bastante para muito me agradar esta história sobre a operação de salvamento de um submarino nuclear afundado nas Caraíbas após uma colisão, e confrontada com o mais inesperado dos encontros.
Porque um argumento sem o contraponto dos amores e desamores ficaria algo coxo, Cameron arranjou um casal, Bud e Lindsey, já com o divórcio em curso, mas obrigados a cúmplice empenho para melhor cumprirem a missão de que se viram incumbidos. Ed Harris e Mary Elizabeth Mastrantonio terão tido aqui desempenhos dos que de melhor lhes recordamos nas respetivas filmografias.
As quase três horas da versão do «director’s cut» são pura fruição, entre a ficção científica e o filme catástrofe, com efeitos especiais mais do que credíveis e uma fotografia com momentos de sublime poesia.
Não fosse o péssimo costume francês de dobrarem os filmes, seria proposta incontornável na programação desta noite no canal ARTE. Como tal opção se revela quase sempre indigesta fica a evocação de um filme a que, amiúde, gosto de regressar.

sábado, novembro 24, 2018

(DL) A persistência de se querer mudar o mundo


Há um par de dias, quando conversava com quem andava a ler a biografia não autorizada de José Saramago, e reconhecia haver nela pólvora bastante para quantos apostam em denegrir o nosso Nobel, a pretexto do seu feitio femeeiro, lembrei o juízo dele feito por Lídia Jorge, que o considerava um «homem bom». E quem o conheceu, assim o confirma de facto, por muito que haja quem, por estes dias, ande a dizê-lo machista, opressor de mulheres.
Quanto à escritora, que teve a desdita de contar com um conterrâneo tão odioso quanto o foi o filho do gasolineiro local, a qualificação a atribuir-lhe poderia ser similar: existe uma efetiva bondade na sua personalidade, sempre apostada em acreditar na possibilidade de mudar alguma coisa com os seus livros. Ilusão estulta? Talvez! Mas vão lá convencer um jovem da impossibilidade de dobrar o mundo à sua vontade, de o tornar melhor, quando o idealismo o torna precoce militante de causas transformadoras? E é grande virtude reter essa característica, mesmo já passadas algumas décadas sobre os verdes anos!
Edmundo Galiano, o épico protagonista do seu último romance, «Estuário», é um desses jovens. Benjamin de entre os cinco irmãos de uma família lisboeta, vira-se envolvido na atividade humanitária nos campos de refugiados em África, esses esquecidos de uma Humanidade, que deveria priorizar o alívio do seu sofrimento. Regressado a casa sem três dedos, tem de se adaptar a essa circunstância, ao mesmo tempo que constata não ser muito diferente o estoicismo testemunhado alhures daquele que, em Lisboa, era o dos que sofriam os rigores da troika, uns e outros condicionados pelas mesmas causas desumanas, pelo mesmo sistema.