sexta-feira, agosto 30, 2019

(C) Os gatos-tigres da Guiana


Julia Engels e Marion Pöllmann estiveram recentemente na Guiana para rodarem um documentário com três quartos de hora de duração, que o canal ARTE apresenta no sábado à tarde. O tema é o raríssimo margay ou gato-tigre, que convive com as comunidades indígenas nas florestas tropicais do pequeno país da América do Sul.
Tendo em conta a devastação, que por ali lavra com foco particular na Amazónia, só se pode temer pela sobrevivência desta espécie arborícola apesar do meritório trabalho empreendido pela clínica Yacumbi nos cuidados às crias órfãs, preparadas para virem a ser reintroduzidas na Natureza tão-só sejam capazes de mostrarem-se autónomas.
Ocilla, uma pequena cria, que o jovem Falton se incumbe de readaptar ao meio natural, vai passar por todo esse processo, que radica nos conhecimentos ancestrais dos Wapishanas.

(DIM) Pawel Pawlikowski, um realizador sobrevalorizado


Se há realizadores, que vêm sendo sobrevalorizados nos últimos anos, por conta dos prémios com que foram distinguidos, é o polaco Pawel Pawlikowski, que viu os Óscares e o Festival de Cannes incensarem-no como valor seguro do cinema contemporâneo.
«Ida» surpreendera-nos, não tanto pelo tema - o da procura das verdadeiras origens pela noviça de um convento - mas pela fotografia a preto-e branco, que justificava só por si a atenção sem nada de mais substancial a exigir-lhe. Essa mesma qualidade repete-se em «Guerra Fria», mas já sem o argumento da surpresa. Daí que nos focalizemos na narrativa, melodrama pouco original sobre o tema «nem contigo, nem sem ti». Ora, se houve um filme definitivo sobre tal pressuposto, chamou-se «A Mulher do Lado», porventura a melhor das últimas obras assinadas por François Truffaut antes de morrer.
Abordando o relacionamento entre Wictor e Zula durante quinze anos e em diversas cidades europeias, «Guerra Fria» repete os estereótipos ideológicos sobre a Polónia da era comunista (a corrupção da nomenklatura, a omnipresença da polícia política) ao mesmo tempo que enfatiza o pendor religioso do seu povo. A obsessão amorosa do casal é incompreensível ao fracassarem nas sucessivas tentativas para ajustarem a qualidade da relação impedindo que o ciúme, a tristeza, a ambição não se sobrepusessem ao desejo, ao enamoramento. Há deserções unilaterais, delações contrariadas, aventureirismos impensados, regressos insensatos e outras turbulências, que justificam a aposta no pacto suicida final, que pressupõe possibilidade de transferir para o Além a busca da felicidade, que a vida terrena não possibilita.
O maior interesse de «Guerra Fria» reside na primeira parte, quando reconstitui-se a tradição musical transmitida oralmente pelas sucessivas gerações e que o regime de procurou incentivar nos anos 50. Ao contrário do que acontece atualmente quando vemos o governo de extrema-direita a sujeitar a Cultura a tratos de polé. Mas essa é uma realidade, que Pawlkowski se tem eximido de denunciar, preferindo a comodidade dos filmes históricos, que dão às marionetas de Jaroslaw Kaczynski a caução para que prossigam impunemente os atentados às regras da democracia burguesa ao estilo ocidental.

quinta-feira, agosto 29, 2019

(C) Achados arqueológicos e espécies em perigo


O Australopitecus Anamensis, que terá vivido há cerca de 3,8 milhões de anos, é considerado o mais antigo dos hominídeos conhecidos. Na Etiópia descobriu-se recentemente um crânio desse remoto antepassado de que foi dado conhecimento à comunidade científica internacional, confrontada com mais um elo a explorar para aprofundar o conhecimento da origem da nossa espécie.
Ainda no domínio da arqueologia ocorreu uma descoberta macabra no norte do Peru: os restos de 227 crianças sacrificadas de acordo com um ritual Chimu para aplacar as cóleras dos deuses e evitarem catástrofes naturais. A civilização pré-colombiana em causa terá recorrido a tão cruel cerimónia até meados do século XV.
Outro tipo de selvajaria foi discutida nos últimos dias na Convenção sobre o comércio internacional das espécies ameaçadas de extinção. Entre elas as girafas africanas cujo número declinou 40% por conta da procura da sua pele, dos cormos e dos cascos por clientes sem escrúpulos. A não serem tomadas medidas eficazes será mais um animal de que só poderemos lembrar-nos através dos exemplares salvaguardados nos jardins zoológicos e nalguns parques naturais.

quarta-feira, agosto 28, 2019

(DIM) «A Árvore da Vida» de Terrence Mallick (2010)


Em 2011 «A Arvore da Vida» ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, mas as reações dos espetadores foram extremadas: houve quem gostasse muito, houve quem detestasse. Indiferença é o que o filme me suscita, por muito que abundem imagens extremamente bonitas potenciadas pelo saber do mestre Douglas Trumbull, uma vez mais desafiado para um projeto à altura do que conseguira com «2001, Odisseia no Espaço».
A indiferença devo-a ao impenitente ateísmo, que me distancia de qualquer explicação transcendental sobre os «mistérios» da existência: se o misticismo bíblico nada me diz, a não ser como curiosidade histórica e sociológica, o panteísmo não justifica melhor acolhimento. Não vejo interligação consistente entre o individual e o universal para além do que qualquer outro pedaço de matéria possa ter com essa suposta entidade divina e infinita. A transcendência é fenómeno, que me passa totalmente ao lado.
Interessa-me mais como representação dos valores e comportamentos de uma família típica da América dos anos 50, com um pai profissionalmente frustrado, incapaz de encontrar o meio termo entre a máscara da severidade, que entende ser a sua de acordo com o que dele se espera enquanto chefe de família, e o afeto pelos filhos, de quem não consegue verdadeiramente aproximar-se. E também a personalidade infantilizada da mãe, que corresponde ao estereotipo vendido pelo poder político quando, acabada a guerra, e regressados os militares destacados para a Europa e o Extremo Oriente, mandou voltar para casa o exército de trabalhadoras, momentaneamente ocupadas nas fábricas, responsáveis por terem mantido a América em funcionamento.
Terrence Mallick, que nasceu numa terra semelhante do Illinois durante a guerra (1943) terá vivido as mesmas circunstâncias, que aqui surgem protagonizadas pelo primogénito dos O’Brien.
Há, igualmente, o tema da perda de um ente querido e o quanto ele põe em causa a tal graça divina a cuja proteção se entregam os mais devotos seguidores de um Deus injusto. Justificam-se então todas as perguntas sobre a sua razão de ser desse ser impotente, inexistente e ignorante de todo o sofrimento por que passam os sobrevivos enlutados. Como aceitar que os caminhos do Senhor sejam insondáveis? O que ganham os crentes com tão manifesta inutilidade?
Outro tema explorado por Mallick é o da passagem da infância para a adolescência com a emergência do sentimento de rebeldia e a descoberta do sexo, essa realidade adulta sobre que se tece a maior das confusões na mente dos miúdos. Jack sofre por não controlar os instintos, que o levam a detestar o pai, a praticar atos gratuitos de vandalismo ou a invadir a casa da vizinha para lhe procurar as peças de lingerie. Uma vez mais esse Deus ausente a quem implora para que o ajude a corrigir-se acaba por não lhe servir de paliativo.
Sobra, enfim, a principal conclusão de Mallick sobre uma América, que em nada coincide com a do mítico sonho de sucesso:  não só Jack, já enquanto homem maduro, tem dificuldades em manter a capa de arquiteto de sucesso, como também o pai encontrara no espectro do desemprego a outra face da moeda da ambição de conseguir ser o músico, que nunca terá conseguido ser, ou o milionário vendedor de duas dúzias de patente, que não encontram comprador.
Há quem incense Mallick como genial e raro criador da cinema americano do último meio século, mas convenhamos que, apesar de algumas obras estimáveis, sucede com ele o que um conhecido provérbio associa: as vozes acabam por ser bem mais numerosas do que as nozes. Desconfio que, a exemplo de tantas obras consagradas na altura da estreia, esta seja mais uma a cair inapelavelmente no esquecimento.

segunda-feira, agosto 26, 2019

(DL) O Leão Africano de Amin Maalouf


É sempre com grande prazer, que volto aos romances e ensaios de Amin Maalouf, por me oferecerem uma perspetiva desviada do habitual eurocentrismo com que costumamos olhar para a História dos séculos idos e das culturas onde a involução religiosa teve o condão de tornar intolerantes quem, anteriormente, se distinguira pela convivência pacífica com quem tivera tez de outros tons e deuses diferentes dos seus. Não podemos esquecer que os judeus encontraram nos sultanatos e califados árabes uma liberdade religiosa e comercial que lhes faltou, amiúde, na Europa tomada pelo fanatismo inquisitorial.
O primeiro livro de Maalouf, que me veio parar às mãos, logo me impressionou por dar das Cruzadas medievais uma noção completamente oposta à até então acreditada: apesar da crueldade dos confrontos militares, os europeus distinguiam-se pela bestialidade analfabeta ao contrário dos árabes, então dotados de valores e cultura muito superiores às dos seus agressores.
Ao ficcionar a vida de Hassan-al-Hazzan que, no Vaticano, viria a ser conhecido como Leão, o Africano, Maalouf faz-nos viajar pelas palavras até ao Reino de Granada, onde ele nasceu, estavam os Reis Católicos quase a conquistá-lo.  No século XVI o protagonista será sucessivamente comerciante, diplomata, escravo e consultor do Papa. Viverá em Tombuctu, no Cairo, em Tunes, brevemente em Constantinopla e em Roma. Amará várias mulheres, que dele terão filhos, raramente reencontrados nos anos seguintes. Conhecerá os grandes acontecimentos do seu tempo, ora nas disputas quase tribais no Magreb, ora nas de dimensão continental com os otomanos a tomarem o Médio Oriente e o Egito ou o Sacro-Império a ameaçar a autonomia papal com a família dos Médicis a, através desta, marcarem a sua influência.
Homem de cultura Hassan é incumbido de embaixadas nas terras onde se vai radicando, umas vezes tornando-se num homem rico, noutras, e quase de um momento para o outro, a cair na mais extrema pobreza. Mas sempre com a preocupação de ir registando as vicissitudes por que vai passando, ciente de estar a construir um legado imprescindível para que os descendentes venham a dele ter a mais criteriosa caracterização. Com ele, como sucederia depois com Gabriel Garcia Marquez, viver tornou-se num imperativo para que pudesse escrever sobre quem fora e, sobretudo, fizera...

domingo, agosto 25, 2019

(DIM) «No Intenso Agora» de João Moreira Salles


A nostalgia de um tempo que foi curto demais é o tema do filme de Salles à partida fundamentado nas imagens amadoras recolhidas pela mãe, quando visitou a China de Mao em 1966 em pleno auge da Revolução Cultural. Embora tudo quanto viu à sua volta lhe estivesse nos antípodas dos valores e cultura, ela não deixou de reconhecer o ingénuo entusiasmo com que os jovens guardas vermelhos entoavam as máximas do Grande Timoneiro.
Antes do sucinto genérico são-nos igualmente oferecidas imagens de operadores anónimos sobre o que era a plácida vida dos checoslovacos no verão de 1968. Ou como os operários franceses estavam em luta contra um poder gaulista, que não imaginava quanto seria em breve posto à prova.
De súbito cresceram movimentos sociais, que reivindicavam o direito à felicidade ou à prioridade em se viver, mais do que meramente existir. Um pequeno episódio ocorrido em Nanterre sobre a proibição da presença de rapazes nas residências estudantis reservadas às universitárias foi a faísca que fez deflagrar toda a pradaria. De repente começaram-se a procurar as praias escondidas debaixo das pedras da calçada e as discussões políticas tornaram-se inesgotáveis, sobretudo porque Marx sempre orientara a atenção para os acontecimentos do passado, sem dar receitas quanto ao que fazer no futuro.
Da revolta até à Revolução pareciam dar-se passos determinados, que só poderiam concluir-se com o fim definitivo da ordem capitalista. Claro que não foi isso que ocorreu: De Gaulle conseguiria uma derradeira vitória política antes de se remeter à pequena aldeia onde viria a morrer. Para alguns dos líderes do movimento o regresso à anterior normalidade seria trágico porque, como assinalaria Romain Goupil num filme hagiográfico - «Mourir à Trente Ans» - o suicídio seria a única porta definitivamente libertadora. A exemplo de Palach que, na Checoslováquia, escolheria a transformação em tocha humana como forma de protesto contra a Ocupação soviética.
O filme quase se conclui com funerais muito participados e utilizados contraditoriamente por diversas forças políticas: onde o do estudante checo revelou o passivo conformismo da população resignada com a aceitação da situação imposta pelo Kremlin, no Brasil, o de um jovem estudante assassinado pela ditadura dos generais, demonstraria uma enorme vontade de lutar por parte dos que o acompanharam à derradeira morada.
Voltando, enfim, às imagens colhidas pela mãe de Salles na visita à China, sobressai a decrepitude física de um grande líder, igualmente poeta, que lamentara em novo a rapidez com que se escoaria o rio do tempo.
«No Intenso Agora» é um filme belíssimo, sobretudo para quem desse tempo, e dessas expetativas utópicas, colheu muito do que de melhor albergou identitariamente dentro de si.