segunda-feira, outubro 30, 2017

(DL) «Ventos da Quaresma» de Leonardo Padura (1994)

Em 1994 Leonardo Padura ainda tinha o seu personagem Mário Conde a exercer a função de tenente da polícia de Havana apesar de o frustrar a perdida vocação de escritor. Admirador confesso das novelas e romances de Salinger só parece ganhar asas para criar algo de estimulante quando se apaixona. O que acontece com frequência. No caso desta novela - «Ventos de Quaresma» - a eleita é uma bela ruiva, que o espanta por nunca ter chamado a sua atenção.
Enquanto vive a paixão assolapada, que indicia a vontade de a tornar mais séria do que qualquer outra até então, ele e Manolo, seu adjunto, investigam a morte de uma professora de química do liceu onde ele próprio estudara quando adolescente, e que fora encontrada morta num apartamento com vista para o Malecón.
A realidade com que Conde contacta é a de uma Havana ameaçada pela profusão das drogas vendidas e consumidas, com a complacência dos escalões mais elevados da administração pública e da polícia.
Não admira que, nas conversas com os amigos, particularmente com Flaco, que ficara paraplégico na guerra de Angola, perpasse a sensação de pertencerem a uma geração perdida, sem a capacidade de se iludirem com a retórica da Revolução, mas sem ilusões quanto às alternativas que contra ela se organizassem.
Aproxima-se a Quaresma e os ventos característicos da quadra varrem as ruas sujas, onde a violência coexiste com formas imaginativas de resiliência. Para Conde a desilusão coincidirá com a descoberta do autor do crime: quando deveria festejar o sucesso com a nova namorada ela dissuade-o, porque o marido de que se dizia separada, estará para chegar no dia seguinte, vindo de uma comissão de serviço no estrangeiro, e a amizade colorida terá de ter um fim. Razão para Conde entregar à aleatoriedade dos ventos do título a dispersão de mais um romance, que fora incapaz de levar até ao fim.

(DL) «A Voz do Violino» de Andrea Camilleri (1997)

Dos escritores italianos, que se têm dedicado ao policial, Andrea Camilleri é o mais interessante pela forma como consegue complexificar uma situação inicial, obrigando o protagonista, o comissário Salvo Montalbano, a dividir a atenção por diversos focos de preocupação.  Ademais, a escolha dos cenários sicilianos constitui motivo maior de atenção, ou não seja ele território de eleição das atividades mafiosas, por muito que vão passando relativamente ao largo dos casos de homicídio normalmente congeminados pela imaginação do autor.
No quarto volume da série (que já vai em mais de duas dúzias de títulos) ele investiga o crime de uma belíssima mulher encontrada assassinada em casa, com vestígios de ter feito sexo consenual antes de se ver asfixiada no próprio colchão da cama onde fora encontrada.  Mas Montalbano também conta com a pressão do novo Comandante, que não esconde a antipatia, que lhe dedica a ponto de retirar-lhe o caso, quando parece tardar na sua resolução. Há também o relacionamento complicado com a namorada, sobretudo porque o miúdo que ambos iriam adotar, decidiu ficar, entretanto, com a família junto de quem estivera hospedado nos últimos meses.
A Máfia aparece a oferecer ajuda a Montalbano, já então afastado do caso, numa altura em que Panzacchi, o chefe da Brigada Móvel para quem fora transferido o caso, depressa lhe dá rumo aparentemente definitivo: mata Maurizio De Biasi, um retardado mental obcecado pela morta, e que se escondera numa gruta, a quem se imputa ter levado a atração até à violação assassina como confessara antes de quase ser cortado ao meio pela rajada de metralhadora dos polícias, que o cercavam.
Claro que Montalbano não se conforma com um tão oportuno bode expiatório para que o Comandante e o seu dileto subordinado ficassem bem nos telejornais.
A resolução só acontece nas últimas páginas trazendo até nós um violinista especialmente talentoso, mas a quem uma forma incurável de lupus, escondera definitivamente dentro de casa, um antiquário de Bolonha, viciado no jogo clandestino, e o marido da vítima, um médico conceituado, mas impotente, e como tal complacente com as alternativas amorosas encontradas pela mulher.
Há também uma velha senhora com quem Montalbano gosta de discutir os seus casos, e uma outra bem mais jovem, e amiga da assassinada, com quem ele vive breve idílio amoroso.
Quando tudo se esclarece dá para concluir que Camilleri encontrou explicação engenhosa para não se ter dela suspeitado precocemente.  O que só revela a maestria de um escritor para quem, a exemplo de um Simenon, este tipo de estórias constituem a oportunidade para denunciar os disfuncionamentos das instituições e fazer estudo de caso de algumas camadas sociais italianas.

(S) O muito jovem Evgeny Kissin a intepretar «La Campanella» de Liszt

domingo, outubro 29, 2017

(AV) Gauguin, aquele que se pretendia selvagem

Nesta última tarde dominical de outubro o canal Arte apresenta pelas 16.35 um documentário dedicado a Paul Gauguin, um artista a que vale sempre a pena regressar pela riqueza da sua vida e obra. Para os possíveis interessados aqui fica a tradução livre de alguns dos materiais de apoio distribuídos pelo canal em causa para estimular a sua apreciação.

“Amo a Bretanha. Encontro aí o selvagem, o primitivo.”, escreveu Gauguin. Esse “selvagem” e “primitivo” que procurará, igualmente, no outro lado do mundo, na Polinésia.
Foi em tão distantes territórios, que o tempestivo artista maldito forjaria o estilo muito próprio e precursor de movimentos estéticos, que se lhe seguiriam. De um e de outro recolherá temas e motivos, que contrastavam o ocidental e o exótico, o real e o imaginário.
Gauguin, que chegou tardiamente à pintura como autodidata, depois de viver anos como marinheiro, e outros tantos como chefe de família e corretor na Bolsa, procurou-se a si mesmo na arte, a que conferiu dimensão mística e onírica. Os quadros simbolistas inspiram-se na arte sagrada da Bretanha, conhecida pela dimensão espiritual rústica, presente no «Autorretrato com Cristo amarelo» ou na «Visão depois do sermão», também conhecido como «A luta de Jacob contra o anjo», obra-manifesto da Escola de Pont-Aven, de que era o líder.
Asperamente criticada, esta tela de 1888, apresentava cores contrastadas e coabitava o natural com o sobrenatural, integrando em simultâneo as influências japonesas, medievais e exóticas.
Acontecia o mesmo no retrato de uma bretã com o seu toucado tradicional («La belle Angèle») onde, ao estilo japonês, acrescenta a figura de terracota oriunda da infância peruana de Gauguin, que servira de matriz para a vocação para demandar terras distantes.
Paradoxalmente os símbolos religiosos ocidentais incrustam-se nos quadros do período taitiano, focalizados no desejo da pureza original e na rejeição da civilização moderna.
Em «Orana Maria»  (1891) há a transposição polinésia de um tema cristão ao lembrar o anjo das asas douradas do referido «Visão depois do sermão». Dececionado pela realidade colonial cria sumptuosos retratos de mulheres polinésias com as cores solares do mundo primitivo por que aspira.
A arte do escandaloso e contumaz Gauguin - que morreu miseravelmente nas ilhas Marquesas em 1903 - é também o fantasma de uma inocência perdida.
***
Até morrer em 1903, Paul Gauguin pretendeu alcançar um mundo original e ideal através da arte.
Nascido em Paris em 1848, vive uma infância feliz em Lima (Perú) de que sempre guardará recordação encantatória, que lhe influenciará a vida e a obra.
Na juventude embarca como marinheiro e percorre os oceanos até se sedentarizar em Paris para aí assumir um período burguês com a esposa, a dinamarquesa Mette, de quem terá cinco filhos.
Artista autodidata encontra Camille Pissarro em 1874, tomando-o como mentor. O crash financeiro de 1882 fá-lo abandonar a Bolsa de Valores, onde ganhava o sustento da família, decidindo-se a levar a sério o talento de pintor.
A mudança para a Bretanha justifica-se por aí buscar um mundo selvagem com a pureza primitiva das tradições camponesas. Acontece depois o episódio desastroso do convívio com Van Gogh em Arles no final de 1888, altura em que se instala em Pont-Aven, liderando uma pequena comunidade de artistas marginais como era o caso de Paul Sérusier, que será um dos nomes cimeiros do movimento nabi.
Sentindo esgotada a inspiração, procura-a do outro lado do mundo, no Taiti, onde residirá entre 1891 e 1893, totalmente à margem da sociedade colonial e tendo as três mulheres a servirem-lhe de modelos para os coloridos quadros evocativos de um mundo arcaico desaparecido.
Doente, regressa a Paris, onde a exposição dos seus quadros motivam escândalo.
Afetado pela incompreensão de que se vê alvo e totalmente falido volta ao Taiti em 1895 para se suicidar. Acaba, porém, por procurar reinventar-se nas ilhas Marquesas onde morre no mês anterior a completar 55 anos.
Graças a sequencias de animação baseadas no universo onírico de Gauguin, a realizadora Marie Christine Courtès retrata o doloroso percurso artístico deste pintor com sonhos obsessivos e também revela o trabalho de escultor e de ceramista.
No ecrã as obras misturam-se com os arquivos para evocar os seus conceitos tão sonhadores quanto melancólicos.

sexta-feira, outubro 27, 2017

(DL) Coisas de livros (IV): Mega Ferreira e Jonathan Franzen

(1) Das vezes que fomos a Itália nunca tivemos a sorte de visitar San Gimignano, que um amigo considera ser uma das mais belas cidades que ali conheceu. Olhando para o mapa dá para perceber que passámos-lhe nos arrabaldes, quando fizemos o percurso entre Siena e Florença mas, nessa altura, nunca dela ouvíramos falar. Agora reencontramo-la citada no livro do Mega Ferreira sobre as suas viagens por terras transalpinas («Itália - Práticas de Viagem»), e em que faculta uma informação singular: as torres enormes de muitas cidades italianas surgiram quase todas no período medieval porque, perante os riscos de guerra, as cidades tenderam a fortificar-se e o espaço no seu interior era muito restrito. Não podendo crescer horizontalmente, a solução era fazerem-no no sentido vertical. Sobretudo para servirem os senhores mais abastados, habituados a espaço ilimitado nas casas das redondezas, mas ali  submetidos às contingências de não as poderem replicar.
No capítulo seguinte o autor aborda a personalidade de Dante Alighieri e lá veio a evocação de uma memória já algo diluída da passagem por Florença. Nessa altura tivemos por guia uma sujeitinha horrorosa que, nos comentários, denunciava a evidente simpatia por Berlusconi, então no auge como primeiro-ministro. Precisamente junto à igreja de Santa Margherita, onde o poeta da «Divina Comédia» se tomara de amores assolapados por Beatrice Portinari, esses ditos e reditos extravasaram-nos a paciência e abandonámos os basbaques do nosso grupo, que pareciam de queixo caído perante a «erudição» da detestável criatura.
Foi quanto ganhámos porque dali cirandámos até à Galeria dos Ofícios e passámos um resto de tarde muito mais agradável e proveitoso. Desde então, quando o poeta florentino se cruza connosco lá voltamos a ser assombrados por aquela mostrenga.
(2) Na entrevista que a Revista do «Expresso» da semana passada, trouxe com o norte-americano Jonathan Franzen ele propõe uma interpretação pertinente sobre a vitória de Trump nas últimas eleições presidenciaisconsiderando-a fruto de trinta anos de alienação televisiva e de alguns menos de intoxicação das redes sociais. Terão sido elas a, segundo constata, alimentarem a “obsessão pela personalidade e a ausência de conteúdo no debate político”.
Nós próprios podemos vir a sofrer idêntico efeito graças ao lixo televisivo de que a SIC e a TVI se têm incumbido com assinalável esforço, nomeadamente através daquele tipo de reality shows, que nos levam a espantarmo-nos com a falta de algum comedimento autocrítico por quem ali se expõe muito para além do que a sensatez lhe deveria ditar. Importa, pois, criar um ataque incessante, por todos os meios ao nosso alcance, ao tipo de televisão que estupidifica, aliena, exigindo, pelo contrário, que retenha algo do projeto original de se constituir em ferramenta formativa das massas de espectadores. E nas redes sociais importa vencer pelo número os que delas se servem para disseminar fake news  e conceitos inerentes aos seus preconceitos xenófobos, sexistas e, quantas vezes, abertamente fascistas.
A cidadania também se reveste dessa componente militante: se há quem use a web para dilatar a influência das ideologias de direita, que sejamos mais, muitos mais, a propor as conotadas com as esquerdas. Só assim poderemos vencer o combate por uma civilização mais decente...

(AV) A Roma de Caravaggio

A Praça Navona é a que se considera mais barroca de entre as que se contam em Roma. Daí que seja etapa obrigatória em qualquer visita turística à Cidade Eterna, devido à estatutária gigantesca e exuberante na expressão dramática das figuras ali representadas. Era também por ali que Caravaggio deambulava dia e noite no final do século XVI, quando já era um dos artistas mais conceituados graças aos contrastes claro-escuro, que inventou como estilo inimitável da sua arte. As elites, os comerciantes e os artistas ali radicados conheciam-no, apreciavam-no quase sempre, embora o carácter belicoso também lhe suscitasse alguns azougados inimigos.
Embora milanês, ele instalara-se na cidade papal em 1594, quando contava 23 anos, depois de quase ter perdido toda a família durante a terrível peste negra. As obras mais importantes, que se lhe conhecem, foram concretizadas nos doze anos que ali viveu, algumas encomendadas pelo poderoso clero local, ansioso por responder às ideias da Reforma luterana com uma nova linguagem artística: o estilo barroco tem precisamente essa razão de ser.
A primeira encomenda importante foi feita em 1599 para a capela de S. Luís dos Franceses e deveria ter por tema a vocação de São Mateus. Os modelos que serviram para que o pintor compusesse os personagens, eram seus amigos ou conhecidos, prática que ele aplicaria ao resto da sua obra. Assim como a opção naturalista, que não distingue o belo do feio, também constituirá o seu modo de criar arte.
Igualmente próxima da praça Navona fica a Basílica de Sant’Agostino onde se pode apreciar outra das suas mais celebradas obras-primas: a Madona dos Peregrinos, datada de 1604-1606. Nessa época ele não tinha mãos a medir com os trabalhos que lhe propunham, embora nunca deixasse de ocupar parte da noite a passear-se nas tabernas onde encontrava os rostos mais expressivos para que pudessem vir a ser por ele representados na tela..
Terá sido numa dessas incursões noturnas que se envolveu numa rixa de que acabou morto o filho de uma das mais influentes famílias romanas. Obrigado a fugir para não ser condenado por homicídio, Caravaggio passará o resto da vida exilado. Quando, quatro anos depois, conseguiu o perdão, que lhe permitiria o regresso, morreria em circunstâncias até hoje desconhecidas sem chegar a voltar aonde fora artisticamente mais feliz.

quinta-feira, outubro 26, 2017

(S) Fats Domino a cantar «Blueberry Hill» no ano em que nasci

(DL) Afinal o Big Brother não estava onde Orwell julgava

Em 1945 George Orwell sentia-se tão interiormente devastado quanto a cidade de Londres, enfim liberta dos efeitos da guerra ganha pela coligação internacional antifascista. Desejando afastar-se da atividade jornalística e disposto a dedicar-se a tempo inteiro à ideia de romance, que lhe germinara na cabeça, vai radicar-se na ilha de Jura no arquipélago das Hébridas interiores ao norte da Escócia.
Era local com poucas centenas de habitantes para uma superfície de 400 km2 com quase toda a população concentrada na única aldeia, Craighouse, situada na ponta sul da ilha. Mas não é no convívio com os calorosos ilhéus, que Orwell aposta: vai para a ponta contrária, instalando-se numa casa isolada sem água canalizada, nem luz elétrica, em sítio apenas alcançável por estreitas azinhagas.
Nos quatro anos seguintes, Orwell dedica-se por inteiro à escrita, apenas tendo por distração a caça de cervídeos em que baseia a alimentação. Se tinha de dali sair para tratar de assuntos administrativos ou relacionados com a edição dos seus livros anteriores, cuidava de os despachar tão rapidamente quanto possível para voltar à quietude do espaço que tornara seu.
É pois um misantropo - com todos os defeitos inerentes a esse traço de carácter - que se ocupa da criação de «1984», o romance que resultará dessa estadia.
A crítica incensá-lo-ia como sua obra maior, mas, homem de esquerda, teria Orwell a noção de estar a criar um romance, que beneficiaria, sobretudo, os anticomunistas primários apostados em utilizá-lo como poderosa arma de arremesso contra quem defendia ideais comunistas?
Lido à distância de setenta anos compreende-se que a caricatura do estalinismo acaba por se ajustar bem mais às sociedades capitalistas avançadas dos nossos dias do que ao tipo de regime então prevalecente em Moscovo. Ou pretendemos esquecer o significado dos alertas denunciados por Edward Snowden a propósito das atividades da NSA ou de outros whistleblowers a propósito de agências igualmente implicadas em vasculhar os mais recônditos pormenores das atividades de cada um de nós?
Por o sentir idiota útil dos que tinham ganho a guerra em aliança com a URSS e depois logo contra ela investiram agressiva guerra fria, andei anos a detestar Orwell. Afinal o Big Brother tinha-se tornado uma realidade para muitas das vítimas da sanha macarthista dos finais dos anos 40 e dos anos 50 nos Estados Unidos demonstrando que, mais do que a caricatura de comunismo sob a forma estalinista, era o fascismo a merecer atenção particular para que não voltasse a emergir do ovo logo posto a chocar por Truman, Adenauer ou pelos discípulos de Churchill.
Orwell não teria tempo para constatar a utilização perversa do romance: a longa estadia em Jura, com as friúras e humidades inerentes, causar-lhe-iam danos irreparáveis nos já fragilizados pulmões. Quando a tuberculose ganhou dimensão incurável viu-se obrigado a despedir-se da ilha para nunca mais voltar.
A morte viria ao seu encontro pouco mais de seis meses depois da publicação do romance, levando-o em plena glória de uma obra, que estava a ganhar relevo junto daqueles que a sabiam útil aos seus ínvios propósitos.

(S) O Concerto para violino, piano e cordas de Felix Mendelssohn

quarta-feira, outubro 25, 2017

(DIM) Amanhã no Cineclube Gandaia: «Reds» como evocação da Revolução de cem anos atrás

Mas que belo livro é «Os Dez Dias que Abalaram o Mundo» de John Reed! Mais do que uma excelente reportagem por quem testemunhou ao vivo a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, o livro revela quão frágil foi o novo regime nas primeiras semanas, quando os ataques vindos de todas as direções - incluindo as interiores! - justificaram a emergência de uma espécie de paranoia conducente àquilo que alguns quiseram depreciar com a designação de «poder totalitário».
A História ensinava aí - como viria a suceder com Cuba ou com a Venezuela atual - que as boas intenções dos líderes acabam sempre por ceder aos seus piores fantasmas, tão só logo comece a sabotagem intensiva dos novos modelos de organização política e social. Daí o interesse do livro e do filme dele adaptado por Warren Beatty.
O conhecido ator e realizador leu o livro em 1960 e logo o pensou transpor para o ecrã, o que, numa América ainda há pouco libertada dos piores efeitos do macarthismo não deixava de constituir assinalável audácia.
Nos anos seguintes ele foi trabalhando no argumento com alguns escritores da sua confiança e tinha uma primeira versão pronta para filmar em 1969. Daí que os testemunhos de diversas personalidade, que viveram in loco a Revolução Russa, conheceram John Reed ou a esposa, Louise Bryant, ou procuraram criar e consolidar o Partido Comunista norte-americano, tenham sido rodados em 1971, quando já estavam em idade avançada. Alguns deles já tinham falecido, quando essas colaborações foram inseridas no filme que só se estrearia dez anos depois.
Em 1981, quando «Reds» chegou aos ecrãs de todo o mundo, a vertente política vinha adoçada com o envelope romântico da estória de amor vivida por Jack e por Louise, com um relativo triângulo personificado pelo dramaturgo Eugene O’Neill com quem ela vivera momentâneo idílio antes de partir para Petrogrado. Estava-se então no início do primeiro mandato de Ronald Reagan na Casa Branca e a retórica em torno do «Império do Mal» prometia devolver o planeta aos piores receios dos tempos da Guerra Fria. Por isso mesmo uma saga épica sobre a Revolução Russa tinha de conter dois ingredientes inseridos por Beatty: a tal estória amorosa, que parece ganhar excessiva relevância, e sobretudo a enfatização nas divergências entre a liderança bolchevique, sobretudo entre Zinoviev e Lenine.
Beatty não pretendia interpretar qualquer papel, preferindo dedicar-se apenas à realização do filme, mas o recurso a John Lithgow não se revelou exequível. Para o papel de Louise começou por imaginá-la interpretada por Julie Christie, com quem vivia nos anos 60, mas tendo-a trocado sentimentalmente por Diane Keaton foi esta quem agarrou, excelentemente!, essa personagem. Mas se há surpresa quanto às interpretações ela justifica-se, sobretudo, com Jack Nicholson, cujo registo contido é totalmente oposto ao habitual histrionismo das suas prestações noutros filmes.
A rodagem deveria durar 15 a 16 semanas, mas prolongou-se durante um ano, muito por culpa do excessivo perfeccionismo de Beatty, que não se contentou em certas cenas com menos de sessenta, setenta, e até cem takes, levando muitos dos atores e atrizes à beira de um ataque de nervos. Terá sido essa uma das razões para a deterioração no relacionamento com Diane Keaton, em breve descartada em proveito de Annette Benning.
Quando a equipa incumbida da montagem do filme pegou no material proveniente da rodagem tinha 130 horas de filme para encurtar para uma duração mais consentânea com uma sessão de cinema. Ainda assim ele tem mais do que três horas  e um quarto de duração, o que justifica a opção do Cineclube Gandaia em apresenta-lo em duas partes, interrompidas a meio para o jantar.
«Reds» é, assim, a melhor das versões possíveis do livro de John Reed tendo em conta as circunstâncias políticas e os condicionamentos de produção em que foi rodado, mas para quem pretenda ter uma ideia relativamente próxima das circunstâncias em que o regime czarista deu lugar à grande Revolução do século XX, ele cumpre essa função. Sem deixar de, simultaneamente, dar conta de como a emancipação das mulheres deu saltos de gigante por essa altura, graças a mulheres notáveis como foi a própria Louise Bryant, por muito que, um século depois, ainda sobrem juízes desembargadores a absolverem energúmenos em nome da suposta condenação bíblica e social das mulheres adúlteras.

(DIM) Arqueologia cinéfila

Foi um dos filmes mais singulares de quantos foram apresentados no DocLisboa deste ano: «Dawson City: Frozen Time»  de Bill Morrison.
À partida temos de recordar como o cinema nasceu de uma combinação altamente explosiva, que deu origem ao celuloide. Nos primeiros anos da História do Cinema a película de nitrato era extremamente inflamável pelo que se perdeu a maior parte dos filmes então rodados e distribuídos. Por outro lado as empresas que exploravam a sua exibição ia utilizando essas bobinas de terra em terra e, quando chegavam ao final da linha - normalmente recônditos lugares donde seria dispendioso fazê-los retornar à origem! -, mandava-os destruir.
Em Dawson City, na zona das primeiras corridas ao ouro, a opção para o cumprimento de tal ordem foi a de se enterrarem essas bobinas, deixando que apodrecessem em definitiva sepultura. Só que essa terra manteve uma temperatura suficientemente baixa, ou não fosse tipicamente característica do permafrost!, para que os danos não fossem totais.
Em 1973 durante obras de remoção de terras para novas construções encontraram-se quinhentas bobinas com imagens, que se julgavam definitivamente perdidas. Foi a partir delas que Bill Morrison assegurou a respetiva montagem criando um filme delicioso, não só sobre a região onde ocorrera o inesperado achado, mas também de como ali se vivia momento decisivo dos primórdios do capitalismo americano e como germinara a ideia de um suposto sonho, que acabou por significar autêntico pesadelo para quem nele se iludira...

terça-feira, outubro 24, 2017

(EdH) Quando Marx se tornou comunista

Em outubro de 1843 Karl Marx tinha 25 anos quando chegou a Paris, acompanhado de Jenny com quem casara meses antes. Falhada a possibilidade de ter uma carreira académica na Alemanha, dado que o monarca Frederico Guilherme IV não tolerava irreverências nas universidades, e despedido da «Gazeta Renana» onde trabalhava como jornalista, era-lhe fundamental garantir um salário regular com que sustentasse a família.
O convite de Arnold Ruge, que se preparava para lançar uma nova publicação para dar voz às ideias liberais e republicanas dos exilados - «Les Annales Franco-Allemands» -, constituía uma alternativa aliciante, tanto mais que poderia ali contactar com a fina-flor da intelligentsia germânica, que a autocracia considerava personas non gratas e prosseguir os estudos de economia, mediante o acesso a bibliografia que a censura lhe vedara até então.
Paris eraonde todos podiam exprimir-se  e certa a existência de quem aceitasse as suas ideias. Reinava Luís Filipe e as pequenas fábricas transformavam-se em pujantes indústrias onde ganhava expressão a classe proletária. Ademais a Revolução de 1789 ainda ecoava em quem lá vivia.
A estadia duraráiadezassete meses permitindo-lhe consolidar a amizade com Engels e compreender, em muitas discussões com o próprio, como a sua ideia de política distava anos-luz da de Proudhon. Será nesta estadia, que Marx vai assumir-se como comunista, pondo de lado as teses liberais do movimento a que até então pertencera, a dos Jovens Hegelianos.
Vendo dilatada a sua reputação a diplomacia alemã insta o fragilizado governo francês a expulsá-lo do território e é sem dinheiro no bolso e com Jenny grávida, que ambos se veem obrigados a partir para Bruxelas, escala seguinte do seu atribulado percurso.

segunda-feira, outubro 23, 2017

(DIM) Coisas vistas por estes dias (I): Hillary Clinton, Diamang, Isabel de Castro

(1) Não tenho particular simpatia por Hillary Clinton e até lhe atribuo grandes responsabilidades na chegada de Trump à Casa Branca, mas a entrevista de quarenta minutos propiciada a Fareed Zakaria mostrou-a serena, confiante e, sobretudo, com uma argumentação muito estruturada a respeito do sucedido e do que possa vir a suceder. Pena é que o público da Fox News sinta uma particular aversão pela CNN (e vice-versa!) embora haja sempre a esperança de ter os desiludidos com as promessas não cumpridas do pato-bravo a arriscar o embate das convicções com as que, naturalmente, seriam as suas se não tivessem sido alienados anos a fio com o veneno desinformativo do canal de Murdoch.
Ainda que possamos lamentar a aparente abulia, que pareceu tomar conta do Partido Democrático, há a expectativa de ver alguém da linha de Bernie Sanders ou de Elizabeth Warren (que excelente Presidente ela poderá vir a ser!) vir a questionar esse eleitorado branco das zonas industriais devastadas do interior dos EUA se, com a nova Administração, a qualidade de vida melhorou ou piorou? Havendo só duas respostas possíveis, restar-lhes-á chegar às devidas conclusões...
(2) No segundo episódio da série «História a História - África», (https://www.rtp.pt/play/p3951/e311974/historia-a-historia-africa) Fernando Rosas abordou o verdadeiro império, que a Diamang construiu à conta da organização colonial do regime salazarista, atribuindo-lhe três funções principais: a ocupação do interior angolano eliminando ou submetendo as tribos indígenas ali existentes; o financiamento da administração colonial e de divisas para a metrópole; e o apuramento dos valores de segregação racial, que era praticado por todo o território, mas que ali ia sendo testada em condições mais de acordo com o que se esperava da evolução dos tempos. Como o historiador demonstrou eram completamente diferentes as casas dos administradores, dos funcionários brancos ou dos trabalhadores negros ali utilizados, seja através da prática do trabalho forçado - que perduraria até aos anos sessenta - ou como assalariados.
Quando se pretende dar do colonialismo português uma imagem mais benigna do que eram as práticas das outras nações europeias a mentira é óbvia: desde o tráfico de escravos a regulamentos definidores de formas de apartheid como as conhecidas na África do Sul, o «Império» português foi voraz na forma como pretendeu consolidar-se à conta da exploração feroz dos povos africanos.
(3) O documentário já tem doze anos, mas a oportunidade para lembrar uma das grandes atrizes do século XX era imperdível. Isabel de Castro nunca quis ser uma grande senhora do teatro como a presunçosa Eunice ambicionou. Não precisou por isso de imitá-la, fazendo-se simpatizante comunista depois do 25 de abril e ardente cavaquista, quando era o filho do gasolineiro de Boliqueime a alcandorar-se á triste figura de ídolo com pés de barro. A forma como falava da sua vida numa altura em que a doença incurável já lhe tornava iminente o desiderato era de uma mansuetude admirável. Contava os desvarios do passado, mas também o orgulho numa profissão em que se reconhecia dotada e pela qual dispensava os truques a que os realizadores a pretendiam sujeitar.
Tendo tido o privilégio de a ver em cena, fica a perenidade da sua memória através dos filmes em que deu o seu melhor.


(EdH) O contexto em que a Revolução russa se tornou expectável

O futuro Lenine cresceu num Império russo autocrático em que os Romanov entendiam governar legitimados pelo direito divino. Nessa segunda metade do século XIX a fome e a miséria generalizada tornaram a monarquia pouco popular junto da população. O analfabetismo e a alienação religiosa não permitiam que esse descontentamento ganhasse expressão democrática ou revolucionária, mas algumas manifestações nos campos deram a Alexandre II a consciência de ter de mudar alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. Daí a abolição da servidão, que sujeitava a autêntica escravatura a generalidade da população dos campos.
Essa reforma operada a partir de 1860, além de incompleta pouco alterarou as desigualdades existentes entre a aristocracia e o povo, facto praticamente desconhecido da corte, que vivia numa espécie de bolha indiferente ao que se passava para lá das periferias da capital conquanto continuassem a chegar as mercadorias e os impostos com que poderia manter o estatuto e até sonhar com o glamour cosmopolita das novidades parisienses.
As ideias marxistas começam a ganhar terreno na juventude intelectual a partir de 1870 e, dois anos, depois a censura imperial não viu motivos para proibir «O Capital» de Karl Marx, porque considerou-o demasiado indigesto para os leitores russos. Nem lhes passava pela cabeça o sucesso que o livro obteria junto de milhares de leitores, que o adotaram como Bíblia dos seus desejos progressistas. Alguns deles, mais radicais, criaram o movimento «Narodnaia Volia»  («A Vontade do Povo») e ganharam a ousadia bastante para atentarem contra a vida de Alexandre II. Não imaginavam que os dois monarcas seguintes, Alexandre III e Nicolau II iriam reverter muitas das reformas decididas pelo antecessor. Quase um quarto de século depois, quando compreendeu que seria executado, o segundo deve ter-se sentido bastante defraudado com o destino que a História lhe reservara.