quinta-feira, dezembro 28, 2006

A MORTE NA ESCRITA

Em «O Ano do Pensamento Mágico», Joan Didion exorciza a sua dor depois de ter perdido o companheiro de quarenta anos de vida, John Gregory Dunne. Tudo se passou há três anos, no dia 30 de Dezembro, quando ambos tinham acabado de chegar a casa, vindos do hospital aonde a filha adoptiva, Quintana estava em coma na sequência de um choque séptico relacionado com uma pneumonia.
O que sucedeu leva Joan a escrever: «A vida muda num instante. O banal instante»
Ela fez uma salada, acendeu a lareira e preparou um uísque para John. Que logo cai, fulminado por um AVC.
O pensamento mágico de que fala o título do livro é um termo psiquiátrico para designar a atitude mental de negação de um acontecimento, muito frequente em crianças atingidas por um trauma profundo. Um trauma como o que leva Joan a não arrumar os sapatos de John durante meses na expectativa de que ele regresse.
O vazio de que padece é compreensível: depois de se terem conhecido nos inícios dos anos 60, Joan e John constituíam um casal quase mítico da intelectualidade norte-americana fazendo tudo em conjunto: trabalhando em casa, viajando, completando as frases um do outro no convívio social.
A editora do «Público» diz que é uma obra de uma lucidez implacável, brilhante de sensibilidade e de inteligência.
Mas é também um livro, que se enquadra no espírito de um tempo em que a América está condenada a pensar na morte como uma inevitabilidade: porque houve o 11 de Setembro, o Katrina e os muitos soldados vindos encaixotados do Iraque, este é um tempo de luto e de procura de uma explicação para o vazio da ausência.
Já Yann Quéffelec escreve sobre a morte da mãe, trinta e muitos anos depois de a ter vivido. Em «Ma Première Femme», o irmão da pianista que vimos anos a fio na «Festa da Música» recorda esse momento único em que atendeu o telefone e o responsável da clínica aonde a progenitora estava internada o confunde com o pai dizendo-lhe: «A sua mulher não passou a noite».
Ora o rapaz de dezassete anos, que jamais tivera a percepção da gravidade dessa doença, fica aturdido nunca mais conseguindo ser o mesmo.
O livro recentemente publicado é uma homenagem, uma forma de redenção perante o remorso de nem sequer ter conseguido despedir-se dessa mulher corajosa, que sofrera em silenciosa agonia a evolução imparável da sua doença...

domingo, dezembro 24, 2006

SEXO E FILOSOFIA

O realizador é iraniano, Mohsen Makhmalbaf, mas o filme foi rodado no Tadjiquistão em 2005: «Sexo e Filosofia» leva um homem, Jan, a reunir as suas quatro amantes na sua escola de dança no dia em que faz quarenta anos. E num estilo narrativo muito lento, com grande apoio da música e, sobretudo, da dança, ele evoca as circunstâncias em que a todas terá conhecido. Concluindo pela relativização dos sentimentos em favor do acaso ligado a cada um desses encontros.
A Mariam conhecera quando fora o único passageiro num voo em que ela era a hospedeira. Fora um amor celestial, que lhe merecera a oportunidade para esculpir uma árvore em frente à sua escola.
Farzona impressionara-o pela forma de andar, pela cor dos seus sapatos. Embora ela lhe confessasse a sua capacidade de amar os homens, que já lhe eram passado em vez de presente.
A Tamineh conhecera-a no hospital, quando uma incómoda diarreia ali o levara em grande sofrimento. Sendo ela a enfermeira, que lhe serviria de anjo da guarda nessa ocasião.
Enfim Malohat, a última dessas amantes, experimenta algo semelhante ao intento dele: junta os seus quatro amantes na mesma mesa para lhes confessar essa diversificação dos seus afectos. O que não é propriamente bem aceite por alguns deles.
Neste filme pejado de símbolos a questão essencial é descobrir o que alimenta o amor, o que conduz à sua negação.
O Amor acaba por se revelar como o milagre de um momento, quando a solidão se define como incontornável destino...

LUANDINO VIEIRA: O REGRESSO AOS LIVROS

Acabei de ler uma interessante entrevista com o escritor angolano Luandino Vieira no suplemento «Mil Folhas» do «Público», a pretexto do lançamento do seu mais recente título: «O Livro dos Rios». Que é o primeiro de uma trilogia intitulada «De Rios Velhos e Guerrilheiros».
O tema é, segundo o autor, o da «relação entre o homem angolano com a natureza angolana, no contexto da luta de libertação nacional». Para tal recorre a um grupo de guerrilheiros, que se deslocam em direcção a alguém da frente interna, que lhes traz medicamentos.
Voltando ao autor: «Estava com a ideia de escrever sobre árvores, peixes, pássaros, céu, água, rio, e não percebia bem como é que o homem havia de estar no meio disso.» A solução passa por, dentro desse grupo de guerrilheiros, inserir um sonhador atento à novidade da paisagem, já que viera da costa aonde só conhecia as areias da praia.
O livro vem confirmar quão exageradas tinham sido as notícias sobre a «morte criativa» de um escritor celebrado pelo seu «Luuanda» - que, em 1965, suscitou a acção terrorista da PIDE à sede da Sociedade Portuguesa de Autores - mas perdido durante anos nas tarefas políticas a ele confiadas após a independência, e depois, no seu voluntário exílio de treze anos nas terras minhotas.
Ainda assim ele diz que nunca parou de escrever apesar de não publicar nenhum livro novo desde 1972.
Agora, aos 71 anos, vive austeramente na casa do porteiro do Convento de Sampaio, em Vila Nova de Cerveira, tendo por anfitrião o escultor José Rodrigues.
Na sapiência conferida pela idade, ele diz: «Eu gosto muito de viver. Se estiver sol já não escrevo, saio para a rua. Se está a chover também visto o impermeável e vou andando. Só em último caso, quando já não posso fazer mais nada» é que escreve.
Bens tem muito poucos. Cabem todos numa mochila. «Se compro uma camisa, tenho de deitar outra fora».
Mas a solidão não é propriamente um estado natural em si: «Sempre tive que me virar sozinho. Acabei por ficar mais solitário do que gosto de ser… Não percebe pela conversa que não gosto de ser solitário? Acabo por conversar muito, mas depois retraio-me, meto-me na minha concha».
Ao contrário do que quem o entrevista pretende, Luandino Vieira não está desiludido com o rumo dos acontecimentos no seu país: «Se tivéssemos a capacidade de só nos construirmos, mas, eu, pelo menos, não tinha percebido que isso só se faz com os outros todos, e os outros todos não eram só os meus colegas… Eram os americanos, eram os russos, eram os sul-africanos». Acaba, assim, por reconhecer a evidência de não se sentir desiludido, porque nunca alimentara ilusões.
«Um regime é uma coisa perfeitamente transitória. Os homens desenvolvem formas de se auto-governarem conforme as necessidades. São sempre circunstancialismos que determinam isso. Hoje o mundo tem esse modelo, a democracia. E viu-se por exemplo o que deu tentarem impor a democracia no Iraque.»

domingo, dezembro 10, 2006

RECORDAR PHILLIPE NOIRET

Na televisão francesa passa um filme quase desconhecido com o actor Philippe Noiret, que acaba de morrer.
Não era daqueles actores, que motivassem a imprescindibilidade da deslocação ao cinema para ver o que interpretava, mas sabia-se de antemão a agradabilidade de tais títulos e a superlatividade da sua interpretação.
Ele começou por nos chamar a atenção n’«A Grande Farra» do Marco Ferreri, que tanto escândalo causou nos meses subsequentes ao 25 de Abril.
Depois era ele um dos divertidíssimos foliões, que iam dar chapadas nos passageiros de comboios distraídos nos seus acenos de despedida em «Meus Caros Amigos». E, já na sua idade mais provecta, seria ele o projeccionista do comovente «Cinema Paraíso» ou o poeta Neruda a quem o carteiro ia levando a sua correspondência.
Poderia aqui evocar outros títulos, mas bastam estes para comprovar a previsão de se tratar de um daqueles nomes da sétima arte, que perdurarão nas nossas memórias por uns bons e largos anos…

segunda-feira, dezembro 04, 2006

CIDADANIA PRECISA-SE (NOS JORNALISTAS)

Num dos telejornais de ontem eram entrevistadas pessoas, que rejeitavam a possibilidade de «salas de chuto» serem instaladas na vizinhança das suas casas.
Como de costume - e aliás na linha do que esta nova geração de «jornalistas» vem difundindo nos nossos media - dava-se só voz a um dos lados da questão sem a oportunidade cívica de fazer prevalecer os argumentos pertinentes de quem defende nessa medida uma forma racional de ajudar a resolver um grave problema social.
Demonstrava essa reportagem que o populismo não é exclusivo do discurso político. Este crescerá sim a partir da divulgação acrítica deste tipo de mensagens, que só contribuem para a prevalência do que de pior existe no comportamento colectivo. Neste caso em concreto a segregação de um número significativo de nossos concidadãos a quem as circunstâncias infelizes da vida empurraram para a via da toxicodependência.
E, no entanto, nos bairros em causa - e em qualquer um deste país - quantos casos de toxicodependência se albergam por detrás das insuspeitas fachadas dos seus prédios?
O discurso desses entrevistados lembra os que empurram a sujidade para debaixo dos tapetes ou quem prefere esconder a cabeça na areia.
Porque é um assunto de tal gravidade, que exige ser tratado com frontalidade, todos deveriam ser comprometidos na sua resolução. Colaborando nas soluções em vez de lhes atravessarem obstáculos. Ou porque são de esquerda e se confrontam com uma iníqua situação de injustiça social, que urge resolver. Ou porque são cristãos e devem por natureza revelar a sua quotidiana generosidade. Ou porque são de direita e devem ter a consciência dos danos à sua sagrada propriedade privada, que o problema colateralmente cria.
Mas os primeiros responsáveis pela criação de uma tal postura devem ser os editores de notícias dos jornais, das rádios e das televisões, ao contribuírem para um discurso de cidadania em tudo quanto é publicado sobre assuntos desta relevância…

sábado, dezembro 02, 2006

THE OTHER FINAL

Johan Kramer realizou «The Other Final», mas o projecto era do seu amigo Matthijs que, em 2002, ficou extremamente triste pelo facto de não ver a sua Holanda natal apurada para a fase final do Mundial de futebol no Japão. Resultou daí um projecto assaz curioso por permitir a exploração da ideia de exorcizar a derrota a partir da vivência dos mais habituados a com ela lidar. Ou seja, o confronto entre as duas selecções de futebol relegadas nos dois últimos lugares da Classificação oficial da FIFA: as pertencentes ao asiático Butão e à caribenha Montserrat.
O documentário apresenta ambos os países. Montserrat ainda tem bem presente uma irrupção vulcânica, que cobriu de cinzas o antigo estádio e parte significativa dos seus terrenos de cultivo. De entre os seus 150 praticantes de futebol amador o seu treinador deverá escolher os que se deslocarão a Tinfu. Por seu lado o pequeno país dos Himalaias só muito recentemente se abriu ao exterior, mas a sua monarquia continua a explicitar um discurso político algo singular ao preocupar-se com o PIB de felicidade do seu povo. Por agora tem 900 praticantes da modalidade, que estão longe de ombrear com as preferências dos compatriotas pelo críquete.
Embora se tente promover o desporto como a oportunidade de encontro de culturas, vêm ao de cima os piores indícios de quão assim não acontecerá: o treinador de Monserrat acaba por se demitir ao negar ao poder político a decisão de escolher os titulares da selecção, enquanto do outro lado existe a rápida contratação de um treinador profissional holandês tão só morre o antecessor no cargo.
As cautelas dos asiáticos têm alguma razão de ser: em anterior confronto internacional a sua selecção fora cilindrada pela do Koweit por 20-0.
Chega a semana do jogo, quando o campeonato do Japão já vai bastante avançado. As equipas treinam, embora os visitantes padeçam de uma intoxicação alimentar, que lhes prejudica a preparação.
Quem não falta à preparação são os apoiantes das duas equipas, todos butaneses, mas unidos no entusiasmo em gritarem por quem estão incumbidos de suportar.
No dia do jogo a notícia daquele encontro singular já apareceu nos jornais de todo o mundo, que não são muito simpáticos para qualificar as duas equipas. Mas o jogo tem em entusiasmo - às vezes demasiado exagerado - o que lhe falta em técnica futebolística. E o Butão ganha o seu primeiro encontro internacional por 4-0.
No rescaldo recupera-se algo do clima pretendido com a taça em disputa a ser partilhada e com a consagração de todos quantos tinham participado no jogo.
É altura de concluir o filme com as pessoas mais díspares a darem uns toques na bola, um singelo objecto de diversão que, provou-se, é capaz de criar cumplicidades além fronteiras...

domingo, novembro 26, 2006

MARIANNE KAPFER: «PAISAGENS INDUSTRIAIS» (2006)

Bernd Becher começou por pintar e desenhar edifícios e fábricas, que sabia estarem abandonados e em vias de destruição.
Em 1957 passa a recorrer à fotografia por ela implicar uma maior objectividade e precisão ao seu trabalho.
Frequenta a Academia das Belas Artes de Dusseldorf e encontra Hilla Wobeser.
Juntos, encetam um trabalho organizado em séries, recenseando sistematicamente os castelos de água, os silos, os altos fornos, os poços das minas, os gasómetros, etc.
Elaboram um protocolo quanto a captação rigorosa das imagens, que se manteve ao longo das décadas: a construção é colocada no centro da imagem de uma perspectiva ligeiramente elevada e banindo pessoas, nuvens, fumos e sombras. A luz deve ser mais difusa.
A maioria dos locais fotografados na Alemanha, em França, na Bélgica, no Luxemburgo e nos Estados Unidos transformaram-se completamente. Mas fica deles a memória, graças às imagens dos Becher.

ARNOLD FANCK: «A MONTANHA SAGRADA» (1926)

Diotima é bailarina. Apaixonada, ela dança por todo o lado, mormente junto ao mar aonde ela capta a energia da espuma das ondas.
Procurando novas sensações ela parte para a montanha. Numa estação de desportos de Inverno ela trava conhecimento com Karl e Vigo, dois amigos apostados em aproveitar o tempo para esquiar e subir às montanhas em redor.
Ambos apaixonam-se por ela, descobrindo essa coincidência numa escalada a dois, que acaba de forma trágica. Apesar dos esforços de Diotima para ir em seu socorro…
Lá no alto, na montanha, os céus enevoados, os glaciares ameaçadores, as fendas impressionantes e as silhuetas humanas perdidas na imensidão são as características do cinema de Arnold Fanck, já então um mestre do filme de montanha, género por ele criado desde o início da década de 20.
Os seus primeiros filmes atraíram muito rapidamente a atenção do público alemão, que busca no regresso à natureza uma forma de diversão para o clima político e económico da época.
Entre os seus admiradores está Leni Riefenstahl, uma jovem bailarina para quem ele concebe o papel de Diotima. A colaboração entre ambos prosseguirá durante mais cinco filmes, todos eles dedicados ao tema da montanha: «O Grande Salto» (1927), Prisioneiros da Montanha/ O Inferno Branco de Piz Palu» (1929), «Tempestade no Monte Branco» (1930), «Embriaguez Branca» (1931) e «S.O.S. Iceberg» (1933).
É durante a rodagem de «A Montanha Sagrada», que Leni Riefenstahl começa a interessar-se pela carreira de realizadora. Os filmes de Arnold Fanck, que mostram os poderes irracionais da natureza sobre o homem, foram classificados como precursores do nazismo.
Leni Rifenstahl será a sua representante oficial com «Os Deuses do Estádio».

O MARTÍRIO DE UMA AVÓ

O que terá levado Fátima Al Najar a oferecer-se para morrer enquanto mártir do seu povo?
Aos 64 anos esta avó de 43 netos já deverá ter sentido muita dor em si, nos seus e nos seus vizinhos.
Só assim se compreende que se tenha convertido num símbolo dos palestinianos em luta contra as agressões sionistas. Como se doravante, depois de mulheres e crianças terem chegado à primeira fila dos que enfrentam o exército israelita, também os mais velhos não fiquem isentos da suspeita de constituírem arma de destruição letal de todos os seus agressores.
Por muito que nos repugne o terrorismo cego, como não entender as razões dos que nele encontram única forma de expressão dos seu desalentado sofrimento?

OS PLANOS DE UM ARRIVISTA

No «Diário Económico» o comentador Raul Vaz diz que «sempre que surge uma oportunidade. Durão Barroso reaperece. Em Portugal, onde pensa continuar a sua carreira política. Uma conferência, uma exposição, a celebração do segundo aniversário da sua Comissão…»
Eu que conheci tal personagem no Liceu de Almada nos idos anos 70, quando no seio de uma geração de colegas fadados para virem a ser todos brilhantes e capazes de virarem o mundo do avesso, ele passava completamente despercebido na sua já então gritante falta de ideias próprias, criei a seu respeito uma antipatia corroborada nas décadas seguintes.
No MRPP ele era o exemplo típico do provocador infiltrado, que justificaria as dúvidas de quem via nesse maoísmo a presumível influência de serviços secretos estrangeiros.
Quando o seu carreirismo no PSD/PPD o levaria a primeiro-ministro nunca nele se veria qualquer capacidade para - apesar da maioria absoluta garantida na sua coligação com Paulo Portas - qualquer intenção nem capacidade para empreender as imprescindíveis reformas agora assumidas por José Sócrates.
A sua cinzenta mediania prossegue na Comissão Europeia para onde se candidatara - segundo o livro agora publicado pelo seu comparsa Santana Lopes - quando supostamente andava a defender uma candidatura alheia.
Tudo em Durão Barroso lembra a mediocridade dos arrivistas, que utilizam os menos escrupulosos meios para almejarem mordomias para as quais os seus talentos jamais chegariam em condições normais. Que ele se ande por aí a preparar para eventuais futuros políticos no país só nos deve deixar alerta. Para jamais deixarmos esquecer a quem nos possa ouvir que esse personagem político esteve um dia ao leme do país e, vendo-o em tormentosas dificuldades logo se apressou a saltar para fora dele…

segunda-feira, novembro 13, 2006

SÃO, DE FACTO, TEMPOS INTERESSANTES

Se é certo que a governação de Sócrates não entusiasma - ainda não consegue transmitir a iminência de tempos melhores em que se fundamente as esperanças individuais - há uma credibilidade do que propõe como via de acesso a menores dificuldades. Mas, qual Nanni Moretti, também gostaria de ouvir dos lábios do primeiro-ministro algumas ideias de esquerda com maior frequência. Vale, por agora, uma completa crise de imaginação de uma direita espoliada de muitas das suas estratégias. E quando as críticas vêm enunciadas por Miguel Frasquilho fica-se com a noção de uma completa impreparação do PSD para sugerir alternativas mais consistentes. No jornal citado algumas linhas acima, a Helena Garrido comentava alguns dias atrás:
«A ideia de avaliar a evolução da despesa com valores absolutos, como ontem vimos por parte de um responsável do PSD, com formação no domínio da economia, é lamentável. Não é possível acreditar que alguém considere viável reduzir o peso do Estado na economia com diminuições efectivas nos gastos do Estado. Se aquilo a que vamos assistindo nas ruas com o que está a ser feito é o que é, com manifestações e greves, como seria se um qualquer Governo decidisse reduzir mesmo os gastos?»
Outra demonstração de falta de credibilidade do PSD tem a ver com o comportamento do seu líder, Marques Mendes a respeito da Madeira: esquecendo-se de quando foi desprezado e até mesmo insultado por Alberto João Jardim apressou-se a ir ao arquipélago apoiar o despesismo do Governo Regional, desculpabilizando ao correligionário o que ao Governo critica. Um comportamento de troca tintas, que pressagia um funeral político num futuro próximo.
Mas se a política de José Sócrates não evita a tremenda crise de emprego, que afecta não só os trabalhadores com menores qualificações académicas, mas também licenciados e bacharéis, não existem grandes alternativas de esquerda para ela. Vivemos tempos interessantes, na acepção de Hobsbawn, em que se podem prever graves crises políticas e sociais, mas ainda se não encontraram condições para lhes dar a resposta mais eficaz.
Não é com esta comunicação totalmente controlada pelos grandes grupos financeiros, que os cidadãos eleitores irão ganhar a consciência ideológica necessária para se furtarem às armadilhas semeadas na informação disponível. Que os leva a assumir como bons certos estereótipos no mínimo polémicos, como o do completo apagamento de conceitos marxistas…
Ora, eu defendo claramente a exequibilidade de surgir um marxismo reformulado e actualizado, que abra caminhos para sociedades mais justas. Falta só pensá-lo, reenquadrá-lo nos dias de hoje e implementá-lo de uma forma mais bem sucedida que nos diversos países ex-comunistas.
Vem a propósito retomar uma velha, mas actualíssima, citação de Abraham Lincoln:
«É possível enganar toda a gente durante algum tempo, e mesmo alguma gente durante todo o tempo, mas não é possível enganar toda a gente durante todo o tempo.»
Lá virá o tempo em que esta aparente aceitação passiva perante os axiomas capitalistas - e das suas cruéis consequências - conhecerá uma inflexão determinante sobre o que será o conceito de Democracia na segunda metade do Século XXI.
A citação de Abraham Lincoln aplica-se, igualmente, ao sucedido nas eleições norte-americanas: provando como as opiniões públicas são muito voláteis a aceitação quase total das políticas de George W. Bush à época da invasão do Iraque deu lugar à sua maioritária rejeição. Dizia António José Teixeira a este propósito no editorial do «Diário de Notícias»:
«Censurar um presidente em tempo de guerra não está na tradição americana. Se aconteceu agora é porque os americanos estão fartos de guerra e não acreditam na sua justificação. O descrédito da Administração Bush é evidente.»
Para a derrota total de tão sinistra personagem só falta impor às novas autoridades iraquianas a não aplicação da pena de morte sobre Saddam Hussein, já que os factos estão a demonstrar à saciedade o erro em que lavrou todo o Ocidente ao removê-lo do poder em Bagdad. Não teria morrido tanta gente, nem tanta miséria teria acontecido, se tivesse havido quem demonstrasse a Bush, Blair, Aznar e Barroso, que os interesses das Enrons, Halliburtons ou Bechtels não justificavam uma agressão de que só aproveitariam os terroristas.
E, como escreveu Jorge Coelho:
«Faz todo o sentido que países e movimentos ocidentais se mobilizem para que a sentença não seja executada. Os valores da nossa civilização não se coadunam com a pena de morte. Apesar de alguns silêncios, esta tese começa a ganhar força e temos de a fazer valer junto das autoridades iraquianas. Não é para isto que soldados europeus andam a morrer em solo iraquiano»

domingo, novembro 05, 2006

DANIEL BARENBOIM EM LISBOA

Assumo uma simpatia justificada pelo maestro e pianista Daniel Barenboim. Recordo-o há muitos anos, quando ele era ainda uma jovem promessa e vivia com a violoncelista Jacqueline du Pré, com quem está a actuar na imagem da página anterior. Sobre o drama, que ambos partilhariam até à morte dela, de nada sabia, sendo-me necessário o filme com a notável Emily Watson para perceber quanto sofrimento ele conhecera naquela que foi uma relação demasiado breve e complexa.
Talvez porque contactou de muito perto com o martírio, Daniel Barenboim tem revelado uma grande generosidade ao longo da sua carreira. Os esforços para um diálogo israelo-palestiniano atestam-no e os seus espectáculos com a Orquestra Divan têm um carácter simbólico, que poderá vir a frutificar na criação de uma cultura mútua de aceitação das semelhanças e das diferenças. Para além da irrepreensível qualidade artística, que Barenboim impõe ao projecto.
Mas a sua carreira não se esgota nessa iniciativa partilhada com Edward Said e é tão normal vê-lo a dirigir as mais prestigiadas Orquestras como a limitar-se ao papel de solista em Orquestras por outrem dirigidas.
foi assim na Gulbenkian na semana passada, quando Barenboim presenteou os portugueses com mais um excelente espectáculo a acompanhar a Orquestra Gulbenkian dirigida por Lawrence Foster.

sábado, novembro 04, 2006

FÓSSEIS E MORAIS DE MOCRÁTICAS

Um estudo de Augusto Santos Silva, actual ministro dos Assuntos Parlamentares, a respeito da composição sociológica dos militantes socialistas, deu para concluir três aspectos principais:
· O grupo etário com maior dimensão é o dos homens de meia-idade, não sindicalizados e com formação académica limitada;
· As mulheres estão a surgir com maior frequência, já que, desde 2000, um terço dos novos militantes é do género feminino;
· Comparando as formações académicas de homens e mulheres socialistas, estas últimas possuem mais anos de escolaridade, que aqueles.
Conclui-se, pois, que estão a surgir condições para um partido mais culto e com uma sensibilidade mais apurada, que estigmatize muitos dos vícios aí criados por toda uma geração de militantes, cujo principal estímulo para a cidadania resultou de um anticomunismo primário, que ainda se revela de forma alarve em muitos dos que tomam a palavra em assembleias e reuniões internas do Partido.
***
Esta semana enquanto António Lobo Antunes proferia uma atoarda do mais primário anticomunismo («Não entendo como é que se pode ser um comunista. Racionalmente, não entendo como é que se pode pertencer àquele fóssil, que ainda continua a respirar de vez em quando»), o objecto dos seus inconfessados ódios, José Saramago, manifestava ao «Nouvel Observateur» o orgulho em continuar a acreditar no futuro das suas ideias políticas: «O comunismo? Nunca existiu. Não se sabe bem o que é. Há ideais e princípios. Mas estes princípios foram desnaturados logo que começaram a ser aplicados. Não se pode, pois, dizer que o comunismo é isto ou aquilo porque, na realidade, nada se sabe dele. Na União Soviética, o comunismo era um simples capitalismo de Estado. E a China vai no mesmo caminho com a cumplicidade das potências ocidentais, tão democráticas, que aplaudem e dizem bravo, bravo. É tenebroso.»
Mas a alternativa não é melhor, se verificarmos o que constitui a «moral democrática» dos Estados Unidos. Jacques Julliard comenta a seu respeito, que «durante dois séculos , os Estados Unidos permitiram-se dar lições de moral e de democracia ao resto do mundo. O seu território estava ao abrigo da violência exterior e não havia que pagar os custos da sua suposta virtude. Desde o 11 de Setembro, acabou o excepcionalismo americano. Os Estados Unidos normalizam-se. E é triste que seja pela porta pior».
Uma porta que, aprovada pelo Senado e pelo Congresso, legitima o uso da tortura e da prisão preventiva ilimitada sob o falacioso argumento da ameaça terrorista.

domingo, outubro 29, 2006

VIVA O TOUR - documentário de Malle, Ertaud e Clocquet

Era no tempo em que o Tour percorria a França de norte a sul e convertia-se numa enorme festa popular. O doping era quase desconhecido e, à beira das estradas, surgiam os espectadores mais inesperados (freiras e padres vestidos a rigor). Imperava o clima de quermesse popular em que todos eram estimulados para a «bonne franquette».
E, no entanto, os ciclistas possuíam um outro olhar para essa fila interminável de espectadores a vitoriá-los: a câmara adopta a sua perspectiva e a nitidez dessa multidão dilui-se num cordão humano impessoal de espessura impressionista.
O ciclismo, ainda que profissional, mantinha práticas de desporto amador: era normal a paragem dos atletas junto aos bistrots, ora para se abastecerem de líquidos, ora para muito simplesmente os esvaziarem. Para outros era desnecessária essa paragem: montados no selim, puxavam o pénis para fora dos calções e cumpriam a função enquanto pedalam.
Os heróis populares chamavam-se Anquetil - que ganharia cinco Tours - ou Raymond Poulidor, o eterno segundo classificado. Que por falhar a vitória por muito pouco acabava sempre por concitar as maiores simpatias.
Mas o Tour tem outras facetas menos festivas. Por exemplo a das quedas dramáticas, que suscita esgares de dor nas suas vítimas. Muitas vezes incapazes de explicarem como iam tão bem, semi-adormecidos na inércia de movimento do pelotão e, de repente, se viam emaranhados num novelo de rodas, pedais, guiadores e de corpos doridos.
Ainda pior os efeitos devastadores dos primeiros dopados, que não ganham forças à custa do que tomam, mas vêem adormecidas as dores do seu esforço sobre-humano. Quando nem isso lhes vale, têm uma explicação repetitiva para os seus «incómodos»: peixe estragado comido ao almoço.
Neste documentário notável sobre a mais prestigiada das provas velocipédicas, impressionam as imagens de um ciclista, que leva a sua exaustão até ao desmaio e consequente queda. Depois do seu transporte para o hospital, as duras condições de subida dos colos pirenaicos e alpinos já parecem desafios menos impressionantes.
Ainda que datado, «Viva o Tour» é uma evocação superlativa de um tempo de inocência, de descontraída crença nos valores depois estraçalhados pelo castrador liberalismo económico… O que transformaria essa festa num produto consumível e descartável ...

sábado, outubro 28, 2006

«Um Presente do Céu», um filme de Simone Aaberg Kaern


Durante cerca de dez anos, a artista plástica dinamarquesa Simone Aaberg Kaern trabalha no tema do voo, em associação frequente com a questão da representação da mulher.
Em 2002 ela lê num jornal a história de uma jovem afegã de 16 anos, cujo sonho maior é tornar-se piloto da Força Aérea.
Simone Aaberg Kaern, que sente intenso fascínio pelas aviadoras da Segunda Guerra Mundial, sente essa notícia como um apelo. Tanto mais que a liberdade dos céus parece perdida desde os atentados do 11 de Setembro.
Decide, pois, fazer os possíveis (e até os impossíveis …) para ajudar essa adolescente a cumprir o seu sonho. Para tal descobre um Piper Colt - o único avião para que chegam as suas posses limitadas e já vetusto nos seus mais de quarenta anos de idade. Mas com a vantagem de consumir combustível de automóvel, mais fácil de encontrar no seu périplo entre Copenhaga e Cabul.
As desvantagens não são, porém, de desprezar: só permitir dois passageiros e um máximo de 40 quilos de bagagem.
Convencido Magnus Bejmar a acompanhá-la na aventura para dela reter as imagens para o filme a realizar, a partida é dada em 4 de Setembro de 2002 … e irá durar quatro meses.
«Um Presente do Céu» é, pois, o testemunho dessa experiência audaciosa, traduzida num voo de seis mil quilómetros por toda a Europa Central e Médio Oriente , que dura cinquenta horas e passa por vinte e três escalas. Com algumas dificuldades inesperadas em Corfu (falta de combustível), na Bósnia (com o espaço aéreo fechado) e no Irão (por falta de visto e de autorização).
O momento mais complicado ocorre, porém, no percurso entre Mashad e Herat em que se arriscam a ser abatidos pelas forças norte-americanas de quem não conseguem obter a desejada permissão para entrarem no espaço aéreo afegão. Uma dificuldade, que não lhes tolhe a vontade: é em total ilegalidade, que eles aterram na sua penúltima escala antes de Cabul.
Dias depois a jovem Farial tem o seu baptismo de voo e nada parece demover a sua decisão de romper com a imagem tradicional das mulheres do seu país.
Mas depressa vem ao de cima a autoridade de um tio influente, que logo corta as asas à rapariga doravante condicionada ao peso da tradição...

segunda-feira, outubro 23, 2006

JÜRGEN STUMPFHAUS: «PERSEGUIÇÃO NO CABO HORN»

Sobre a Primeira Grande Guerra existem muitos documentários e filmes de ficção sobre as trincheiras da Flandres. E, no entanto, muitos outros episódios históricos desse mesmo período igualaram em dramatismo os descritos por Erich Maria Ramarque ou filmados por Stanley Kubrick.
A disputa bélica nos mares é menos conhecida, sobretudo as ocorridas na ponta mais a sul da América Latina.
O documentário de Jürgen Stumpfhaus tem duas grandes qualidades: o de abordar essa realidade quase desconhecida dos que a abordam à distância de quase um século e o de fazê-lo através de uma reconstituição credível no desempenho dos actores, no guarda-roupa e nos navios utilizados, que são mostrados em paralelo com as escassas imagens cinematográficas dessa época em que ainda estava longe o cinema sonoro e a cores.
O que se discute nas costas da Terra do Fogo é muito simples: quem irá dominar os mares nos anos seguintes? Os ingleses querem manter uma supremacia, que já dura há séculos, desde que afundaram a Invisível Armada espanhola. Os alemães, comandados pelo vice-almirante von Spee, apostam na inversão dessa relação de forças.
Em 1 de Novembro de 1914, ao largo da costa chilena, a frota germânica inflige uma derrota humilhante à da Royal Navy. E é vitoriada pelos muitos compatriotas estabelecidos em Valparaíso, aonde aportam antes de se dirigirem para a costa atlântica.
Chocada com essa derrota, e impulsionada por Winston Churchill, então no Almirantado, a Inglaterra prepara uma nova frota para, de imediato, procurar desforra. Ela ocorre a 8 de Dezembro ao largo das Malvinas…
À excepção do «Dresden», que consegue escapar para sul, utilizando o nevoeiro a seu favor, milhares de alemães afogam-se com os seus navios nessa batalha, que elimina qualquer possibilidade de definir nos mares quem ganharia esse conflito generalizado…
Decididos a levarem a vingança até ao fim, a frota inglesa persegue o navio fugitivo por todo o Estreito de Magalhães. E, apesar do engenho do jovem comendante Canaris, também esse navio acabará afundado nas águas da Patagónia...

domingo, outubro 22, 2006

MARTIN AMBROSCH: «MISSÃO SECRETA PARA SUA MAJESTADE»

Em 1665, quando os portugueses e os espanhóis ainda batalhavam em Montes Claros para definir se a Restauração da Independência seria ou não garantida, ocorre no Danúbio uma verdadeira epopeia para um homem culto chamado Peter Lambeck, que exercia o cargo de prefeito do Imperador Leopoldo I de Habsburgo.
A ordem dimanada se Sua Majestade era encher a recém-inaugurada Biblioteca Imperial com as mais magníficas colecções de manuscritos e de Bíblias ilustradas com iluminuras, que existissem, então, na Europa.
A missão de Lambeck não é fácil: apesar de empossado em tão relevantes funções, ele confronta-se com desconfortos tão pouco habituais para quem vivia a plácida comodidade dos cortesãos de Viena e com a oposição dos então detentores desses livros, pouco impressionados com a precedência imperial sobre a posse de documentos quantas vezes objecto de colecção há mais de duzentos anos.
O documentário de Martin Ambrosch procede a uma rigorosa reconstituição histórica, atribuindo a actores os papéis desse prefeito, do seu valete, dos mal encarados marinheiros que o acompanham rio abaixo e de quem com eles se vai encontrando pelo caminho.
Pernoitam em albergues pestilentos cujo conforto se limitava a uma lareira para aquecimento de uma divisão aonde os hóspedes comiam e dormiam sem que lhes fosse facultado qualquer talher ou prato, e muito menos um colchão.
A viagem pelo rio é um tormento com os marinheiros a embriagarem-se, com o leme a partir-se deixando-os à deriva e com alguns dos valiosos manuscritos a tombarem nas águas.
Ao chegar a Viena com a maior parte da sua valiosa carga, Peter Lambeck pode ufanar-se de ter ultrapassado tormentosos obstáculos e de nunca ter pensado em desistir da sua missão.

A PROPÓSITO DE UM CONVITE

A blogosfera anda um bocado agitada com a presença do Partido Comunista Chinês no próximo Congresso do Partido Socialista. Tanto mais, que anda a circular um filme mal amanhado em que se vêem Guardas Fronteiriços chineses a dispararem sobre um conjunto de pessoas em fuga através da fronteira com o Nepal.
Daí a voltar à baila a velha questão dos Direitos Humanos espezinhados foi um ápice. Com comparações maldosas em relação a supostos terroristas colombianos, que terão marcado presença na recente Festa do Avante…
A generalização pretendida é clara: a esquerda, seja na sua variante comunista, seja na socialista, relaciona-se com quem não respeita as opiniões alheias, prendendo, torturando e assassinando todos quantos ponham em causa a legitimidade do seu poder.
É escandalosa essa «indignação» da parte de quem despudoradamente a revela, sobretudo, quando nada teriam a dizer se fosse ao Partido Republicano norte-americano que tal convite fosse endossado.
E, no entanto, foi esse mesmo partido quem lançou na guerra do Iraque milhares dos seus jovens para servirem de carne para canhão e defenderem os interesses das companhias petrolíferas texanas e das Halliburton, que haviam sustentado a fraude eleitoral pela qual George W. Bush foi colocado na Casa Branca.
A China comunista, agora presente no Congresso socialista conta com muitas virtudes e com muitas razões para ser criticada. Mas decerto não avançou com políticas imperialistas, que causassem 650 mil mortos num qualquer Iraque, como ocorreu com os EUA.

sábado, outubro 21, 2006

UMA «NOVA» ALEMANHA

Oradour-sur-Glane: uma comunidade que aí vivera por mil anos é dizimada numa tarde. E tudo começara uns anos antes, em 1933, quando o Partido Nacional-Socialista chega ao poder numa Alemanha devastada pelo desemprego, pela desmoralização , sobretudo, quando eleitoralmente estava em queda.
Ainda assim, socialistas e comunistas julgavam tratar-se de fenómeno passageiro, condenado pelas circunstâncias imediatas. Mas estas - sobretudo representadas pelo incêndio do Reichtag - irão concorrer para a suspensão dos direitos civis e do Parlamento.
Hábil na condução e na criação de acontecimentos, Hitler anuncia uma Nova Alemanha, que perduraria por mil anos. É na mesma altura em que comunistas, socialistas, deputados e jornalistas começam a ser internados nos primeiros campos de concentração, então geridos pelas Secções de Assalto (SA), a face mais trauliteira das milícias nazis. Os mesmos que dão corpo à política de boicote às lojas de judeus e aos autos-de-fé de livros considerados subversivos. Ora, um século antes, o poeta Heine escrevera que «aonde se queimam livros não tardarão a queimar-se pessoas».
Nessa altura a maioria dos judeus mais abastados ainda julgavam sem futuro essa vertente extremista da propaganda nazi.
Os principais apoiantes do novo regime são os desempregados, os comerciantes arruinados pela Depressão, os agricultores e camponeses, os funcionários públicos cujas poupanças haviam desaparecido por efeito da carestia de vida.
Havia, igualmente, uma camada da população inconformada com os termos em que havia sido firmado o Tratado de Versalhes, que retirara da antiga Alemanha os territórios da Alsácia, da Lorena, do Sarre, da Galícia e a cidade de Danzig.
No Natal de 1933 o regime de Hitler estava fortalecido, embora os SA já fossem um estorvo para os planos futuros do chanceler. Já devia pairar pela sua mente o assassinato de cerca de duas centenas das suas principais figuras naquela que viria a ser conhecida pela Noite das Facas Longas (30 de Junho de 1934). Um episódio, que permitiria confirmar a inexistência de pruridos formais para afastar todos os obstáculos à estratégia delineada pelos títeres do regime.
E, quando, em 2 de Agosto de 1934, o Presidente Hindenburg morre, Hitler extingue essa função política e proclama-se Führer, chefe supremo do povo alemão e do seu exército.
Quando referenda a sua ditadura, Hitler lança uma campanha de propaganda, que lhe garante 90% de votos: Mas, ainda assim, avessos a ela, quatro milhões de alemães não se inibem de votar não.
A situação económica, já estava em franca recuperação, quando eles chegam ao poder, melhora significativamente e os nazis não deixam de aproveitar essa constatação empírica da maioria que os apoia.
A construção da primeira auto-estrada, que ligava Berlim à província, permitirá o rápido avanço dos tanques, quando eles estiverem preparados para a ocupação dos países vizinhos. Mas, enquanto isso não ocorre, fomenta-se a histeria colectiva em comícios encenados com competência, enquanto as actualidades cinematográficas são férteis em imagens de Hitler no seu retiro de Berghof a acarinhar crianças, a brincar com os seus cães e a conviver com Eva Braun e muitos dos dignitários do seu regime.
O rearmamento começa a ganhar um ritmo avassalador: aparecem novos blindados, os primeiros esquadrões da Luftwaffe voam nos céus e a nova marinha sai dos atarefados estaleiros. Embora os seus generais considerem extemporânea a decisão de partir para a guerra, Hitler proclama extinto o Tratado de Versalhes.
A recuperação dos territórios nele perdidos já começara a ocorrer em 1935 quando, sob acompanhamento internacional, a população do Sarre vota o regresso desse território à Alemanha. A Renânia é anexada em 1936 e a Áustria em 1938.
A minoria alemã na Checoslováquia é estimulada para manifestar-se contra uma suposta agressão das autoridades de Praga e possibilita a anexação do território dos Sudetas, sem que os aliados desse pequeno país (Inglaterra, França e URSS) reagissem.
As prepotências sobre a comunidade judaica vão subindo em escalada: em 1938, na sequência do assassinato de um diplomata alemão em Paris a violência torna-se descontrolada na que será conhecida como a «Noite de Cristal», quando se incendeiam sinagogas, se vandalizam lojas e se prendem ou assassinam indiscriminadamente quem se suspeita de não caber na classificação de arianos.
Em Abril de 1939 a Wehrmacht protagoniza a festa do 50º aniversário de Adolf Hitler. O seu alto comando ainda duvida do sucesso de uma agressão à Polónia, mas o Fürher já decidiu: exige a devolução de Danzig e um corredor de acesso através do território desse vizinho.
Uma vez mais, umas até então quase anónimas minorias germânicas reclamam a defesa dos seus interesses e dão o ensejo para a agressão.
No entanto os estrategas alemães conseguem um golpe de surpresa, que abana as certezas dos que se preparam para travar a iminente agressão: voando para Moscovo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich, Ribbentrop, consegue firmar com Estaline e com Molotov um Pacto de Não Agressão.
Já nada pode impedir a Wehrmacht e a Luftwaffe de avançarem: inicia-se a mais devastadora Guerra até então conhecida pela Humanidade.

segunda-feira, outubro 16, 2006

THEODOR ADORNO E A ESCOLA DE FRANCFORTE

Nos anos 20, graças ao mecenato de um negociante de cereais, nascia o Instituto de Pesquisas Sociais, que tornaria conhecidos Max Horkheimer e Theodor Adorno como expoentes de uma nova teoria de pensamento crítico, que procurava expurgar o marxismo dos seus dogmas e adequá-lo à realidade de uma sociedade em plena efervescência e mutação. A tal ponto que, quase sem se fazerem anunciar, os nazis chegam ao poder e obrigam ao exílio norte-americano esses ideólogos esquerdistas cujos livros alimentavam os autos-de-fé daqueles.
No outro lado do Atlântico, Adorno mantém um reconhecimento quase filial pelo seu mestre, que muito contribuíra para lhe salvar a pele e lhe garantir a sobrevivência nesse exílio forçado.
Quando, terminada a guerra, Horkheimer e Adorno regressam, estimula-os o projecto de contribuírem para a difusão dos ideais de liberdade e de democracia junto dos seus compatriotas ainda então sujeitos a campanhas de desnazificação.
Em 14 de Novembro de 1951 o Instituto é reinaugurado com pompa e circunstância, ficando dependente da Universidade de Francforte.
Os seus impulsionadores têm, então, uma justificada notoriedade entre os seus concidadãos. Mas logo despontam os críticos, sobretudo os que se desinteressam de qualquer explicação quanto á agudização do anti-semitismo entre os alemães, preferindo seguir em frente como se Auschwitz jamais houvesse existido.
A «Teoria Crítica» criada nessa Escola de Francforte interpreta a realidade a partir das ideias de Hegel e de Karl Marx e procura suscitar o pensamento crítico nos estudantes ao invés do que se passa a leste, aonde impera a tradição escolástica de considerar o Ser quem determina a Consciência.
É uma época muito estimulante para Adorno, que se interessa igualmente pela música experimental, participando ao lado de Boulez, Nonno ou Stockhausen na Universidade de Verão de Darmstadt.
Horkheimer já é, então, uma caricatura do filósofo brilhante do passado: cioso das mordomias das suas funções de reitor universitário, ele esconde na medida do possível os seus textos dos anos 20, que explicitavam a sua condição de comunista e vai ao ponto de contratar para o seu estabelecimento alguns académicos outrora proscritos pelo seu comprometimento com o regime nazi. Mas Adorno, apesar de nunca atravessar a fronteira, que separa o Bem do Mal, nunca se distancia do seu antigo protector. Nem mesmo, quando Habermas, brilhante professor do Instituto, é despedido devido ao seu pensamento demasiado conotado à esquerda.
Em 1959, Adorno chega à direcção do Instituto, sendo dessa época a sua conhecida afirmação: Quando o mundo não é senão desolação, as pessoas não podem senão sentirem-se desoladas. As suas aulas no mais vasto anfiteatro da escola atrai centenas de estudantes, que se acotovelam para conseguir aceder ás suas esclarecidas palavras. Mesmo que elas transmitam uma ideologia desesperada e sem solução, muito próxima do «esquecimento do Ser» de Heidegger, que, no entanto, se situa nos antípodas do seu posicionamento político.
Na contestação à guerra do Vietname através da música pop, Adorno entrevê algo de significativo, mas de paradoxal: surgido como movimento ideológico de cariz anti-capitalista, os seus militantes consomem música pop numa quantidade tal, que faz esfregar as mãos aos capitalistas responsáveis pela distribuição desses sons, em aparência, irreverentes.
Para Adorno a sociedade de consumo comporta fatalmente o individualismo, a atomização do Ser e, como tal. A impossibilidade da Revolução baseada no colectivo.

Ainda assim, ele vê com simpatia os movimentos estudantis em 1968, embora a sua violência intrínseca o levem a distanciar-se racionalmente. Ele entende que a Universidade não deve ser sede de revolta, mas de pensamento.
Regressado ao Instituto, Habermas não tem dúvidas e identifica-se totalmente com esse movimento, que Adorno classifica de «esforço desesperado para modificar a sociedade» sem que tal seja possível. A sua posição ainda mais se torna incómoda quando, vindo dos EUA, o filósofo Herbert Marcuse apoia a causa estudantil, que reflecte as conclusões do seu best seller «O Homem Unidimensional».
Quando a situação se agudiza e os estudantes ocupam o Instituto é Adorno quem pressiona o reitor da Universidade para recorrer à polícia como forma de garantir a evacuação daqueles estabelecimentos.
A traição de Adorno leva os estudantes a desconsiderarem-no, a sentirem-no como um inimigo. Não se estranhará, pois, que uma brigada feminista semeie o caos numa das suas aulas de 1969, despindo o tronco e expondo-lhe os seios como meio de o acusar de sexista.
Mortificado ele não voltará a ser o mesmo e morrerá de ataque cardíaco alguns meses depois.
Mas fica para a posteridade a sua importância na criação de uma escola de pensamento, que não soube desenvolver até ao fim as suas premissas fundadoras: a de descortinar caminhos sustentáveis para o marxismo. O seu pessimismo, pelo contrário, traduz um impasse filosófico, que ele não soube ultrapassar...

sexta-feira, setembro 22, 2006

«LUZ FRIA» de HILMAR ODDSON

É a história de um artista traumatizado pela culpabilidade e da forma como irá recuperar o gosto pela vida.
Grimur tem um dom: pode prever o futuro. Mas sempre viveu esse dom como uma maldição.
Criança de imaginação fértil, costumava desenhar frequentemente essas previsões.
Um dia, ele tem a premonição de uma avalanche, que ameaçará a aldeia de pescadores em que vivia. Desenhou-a sem, porém, convencer ninguém desse acidente iminente. Ora, essa avalanche soterrará toda a sua família. Trinta anos depois, enquanto único sobrevivente da catástrofe, ele ainda sente remorsos. As imagens do passado perseguem-no e perturbam-no, quer no seu trabalho de pintor, quer na sua relação afectiva com a companheira, que deseja um filho.
Para ser bem sucedido na vida, Grimur terá de começar por fazer as pazes consigo mesmo...
As imagens são hipnóticas ao utilizarem a luz e as paisagens islandesas. As cores vivas e doces do Verão são substituídas pela luz azul e fria de Inverno. As paisagens transformadas reflectem a vida interior do personagem principal, que ora espera, ora desespera...
A natureza é uma personagem central neste filme dotado de excelentes actores e uma fotografia magnifica.
A história baseia-se no romance de estreia de uma jovem escritora islandesa, Vigdis Grimsdottir, e o realizador, Hilmar Oddsson assina um filme melancólico e belo, profundamente ancorada a esta terra islandesa…

segunda-feira, agosto 28, 2006

Relâmpagos na cabeça

Os motivos podem ser variados: tumores (que obrigaram a operações, meningites), longas paragens cardíacas ou, mesmo, sindromas de nascença. Em qualquer dos casos apresentados no documentário de Mirchka Popp e de Thomas Bergmann, o que vemos é a realidade através do que sentem pessoas disfuncionais devido a lesões cerebrais.
Há os que tudo esquecem de um dia para o outro, sendo obrigados a aprenderem tudo de novo ao acordarem. Quem não controla sucessões imparáveis de tiques nervosos. Quem vê tudo quanto se mexe completamente desfocado. Quem só tem um lado do cérebro a funcionar para ver ou ouvir. E tantos, tantos casos, quantas as pessoas dispostas a partilharem com a câmara a tristeza e a inquietação por se sentirem diferentes. Apesar da sua inteligência, muitas vezes acima da média.
Vimos essa hora e meia com o fascínio voyeurista, que nos é comum perante este tipo de temas, mas também a compreendermos quão débil é a fronteira entre a normalidade e o que não é. Podendo ser subitamente atravessada de forma involuntária…
Houve um caso, que me impressionou particularmente: o de um homem, que perdera uma grande parte das suas capacidades, quando sofrera uma paragem cardíaca durante um jogo de futebol e estivera demasiados minutos sem qualquer irrigação sanguínea do seu cérebro. Autêntica criança, com esquecimentos frequentes até da identidade dos familiares, ele passou a representar um tal sacrifício para a mulher e para os filhos, que, já após a rodagem das cenas a ele respeitantes, foi internado num lar. Ora, a mulher justificara perante os realizadores, que se sentia com forças para dele cuidar em nome dos vinte e dois anos de felicidade conjugal, que conhecera a seu lado.
Este pequeno exemplo serviu para relativizar tudo quanto hoje parece fundamental e, amanhã, parece perder essa importância…

domingo, agosto 27, 2006

A Evocação de «O Último Tango»

Não adiantou grande coisa o documentário do Serge July e do Bruno Nuytten sobre a importância de «O Último Tango em Paris» na sociedade ocidental do início dos anos 70.
O realizador, Bernardo Bertolucci, recordou que Trintignant e Dominique Sanda haviam sido as suas primeiras escolhas para os papéis de Paul e de Jeanne, mas o primeiro recusara por pudor e a segunda por estar grávida.
Frustrada, assim, a hipótese de reutilizar o par de «O Conformista», o realizador procurou alternativas em Belmondo e em Delon. Que se frustraram …
Marlon Brando que, na época, era tido em Hollywood como um «has been» acabou por aceder no papel desse homem recem-enviuvado, que irá viver uma relação violenta com uma rapariga durante dois dias.
Maria Schneider fora escolhida através de um «casting», depois de referenciada nas noites de boémia no Castel.
Da «nouvelle vague» veio Jean Pierre Léaud, que sentia-se aterrorizado por contracenar com Brando.
Mas teve sorte: sindicalista militante, o norte-americano recusava o trabalho ao sábado, pelo que se rodavam nesses dias as cenas com o conhecido actor de Godard e de Truffaut.
É claro que o documentário vão localizar todo o seu interesse na célebre cena da sodomia com manteiga. Que foi uma autêntica violação, já que Maria Schneider desconhecia a sorte para ela reservada nesse dia. Bertolucci procurava que a sua reacção de choro e de revolta fosse o mais realista possível. Conseguiu-o mas o futuro não seria grato para a actriz, de quem não se voltaria a descolar aquela imagem. Por isso ela não voltaria a dirigir a palavra ao realizador. E reconhece que, hoje, chamaria a Justiça para formalizar a queixa quanto à agressão sexual inerente a essa cena.
No documentário Germaine Greer, a conhecida feminista, não contesta o valor artístico do filme, mas considera completamente oco o papel feminino principal, reduzida a mero objecto de submissão da catártica obsessão suicida de Paul. Mas, ainda assim, o filme contribuiu - e muito - para abanar os valores morais da época. E esse é o aspecto em que o documentário se mostra mais pobre: se evoca as sucessivas revoluções desses anos, não aprofunda o quanto elas significaram a ruptura com o conservadorismo pudico dos anos anteriores.
A Revolução Sexual, mesmo que limitada nos seus resultados, tornou muito mais liberta a sociedade em que vivemos...

domingo, agosto 20, 2006

Coragem portugueses?

Ontem houve uma tentativa de assalto a uma agência bancária em Almada. Um desempregado, já com a vida toda feita num cangalho, julgou encontrar solução naquela estratégia sem cuidar de saber que, hoje em dia, as caixas deste tipo de agências já pouco dinheiro acumulam.
Durante três horas o homem barricou-se no edifício e foi negociando com a polícia. Só depois se saberia que as duas armas com que ameaçava a integridade dos reféns eram de plástico. E que ele era um antigo operário de construção civil, divorciado e já há várias semanas sem contacto com o filho, completamente desesperado com o atoleiro em que se vira. Agora, com os polícias, só lhe restava uma obsessão: não ser reconhecido. O que equivalia a sair dali com a cabeça tapada… Os que ali se puseram a assistir aos acontecimentos reproduziram uma das variantes da psicologia de massas do fascismo, abertamente xenófoba:
- Parece que é um preto! - aventava um.
- Não, não é assim tão escuro… Acho que deve ser brasileiro … - previa outro.
Este exemplo é eloquente quanto ao estado das consciências dos portugueses. Formatados pelos jornais desportivos, que cultivam a clubite mais doentia, ou pelas revistas femininas, apostadas em divulgar as mais inconcebíveis histórias de alcova, os nossos compatriotas fazem lembrar aquele célebre poema de Almada Negreiros, que dizia mais ou menos assim:
- O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem Portugueses, só vos faltam as qualidades.
É claro que os nossos compatriotas não têm toda a culpa por essa situação: o consumo desse tipo de informação inócua, ou mesmo perversamente maligna, é atiçada pelos grandes grupos económicos nacionais, os mesmos que reclamam contra os sindicatos, contra a produtividade dos portugueses e contra a esquerda em geral. Os mesmos que alimentam a ignorância e o cepticismo face aos políticos. E que fomentam o racismo mais primário...
Seria bom converter jornais, rádios e televisões em ferramentas de informação dos portugueses. Mas é a vacuidade dos seus filmes e das suas notícias, que prevalecem.
Depois admiram-se com os resultados dos jovens portugueses nos exames nacionais…
Pudera! Com coisas do tipo «Morangos com Açúcar» ou com a «Floribella» não admira que, desde as mais tenras idades, seja a mais tonta recolha de valores, que se torna dominante...

sábado, agosto 19, 2006

Podemos lembrá-lo, mas nunca celebrá-lo!

O centenário de Marcelo Caetano serviu de pretexto para um conjunto de reportagens televisivas e de artigos de jornal sobre a sua condição de ditador derrubado pela Revolução de Abril de 1974.
Se em muitos desses trabalhos não se iludiu o carácter reaccionário do seu pensamento político - excelente, por exemplo, o ensaio de Vasco Pulido Valente no «Público - noutros enfatizou-se em demasia o papel do ditador enquanto professor de Direito.
Eu que vivi todo o seu consulado numa altura fundamental para a minha formação enquanto indivíduo, não posso esquecer a personificação em Marcelo de tudo quanto, então, sentia de repressão, de castração mesmo do que, enquanto jovem, aspirava.
É com ele que conoto essa ameaça de partir para uma Guerra Colonial para a qual não sentia a mínima predisposição.
É com ele que conoto todo um fascismozinho doméstico em que a moral e os bons costumes contrariavam a mais natural emoção amorosa. O Portugal maledicente, que se alimenta de boatos e de mentiras, não nasceu com as actuais revistas de coscuvilhices: estas mais não aproveitam, que uma herança larvar, ainda bem presente na cabeça de muitos portugueses.
É com ele - um hipócrita ateu, que se usava do obscurantismo religioso difundido pela Igreja - que se continuou a fomentar o misticismo em torno de Fátima na expectativa de distrair os cidadãos de outras crenças mais eficazes.
Foi no tempo de Marcelo, que prosseguiram as investidas da Polícia de Choque ao campus universitário do Campo Grande, sob a égide de gente sem escrúpulos como o eram e são José Hermano saraiva ou Veiga Simão.
É com ele que Ribeiro Santos é assassinado e que muitos caixões continuaram a vir de África.
É com ele que o Padre Sobral era frequentemente levado para Caxias, só voltando passadas semanas.
É com ele que o país estava «orgulhosamente só» e ser identificado como português no estrangeiro era motivo de vergonha.
Cem anos passados sobre o seu nascimento podemos lembrá-lo como protagonista das negras páginas vividas em Portugal na viragem dos anos 60 para os anos 70. Mas é-nos impossível homenageá-lo ou celebrá-lo como pretendem alguns.
Há crimes, que não merecem perdão. E Marcelo foi responsável por muitos eles...

quarta-feira, agosto 16, 2006

«War Photographer», um documentário sobre James Natchwey

James Natchwey leva à letra aquilo que Robert Capa dizia: «If your pictures aren’t good enough you’re not close enough». Por isso ele quase se cola às pessoas, que se transformam em protagonistas das suas imagens.
Christiane Amanpour, a conhecida jornalista da CNN define-o como um grande solitário, que é de uma obstinação extrema no seu trabalho.
Christian Frei, o realizador do documentário, acompanha o fotógrafo enquanto ele capta imagens da mulher bósnia, que chora a perda dos seus familiares, seguindo-a mesmo até dentro do seu casebre. E, na redacção da «Stern» acompanha a discussão entre o chefe de redacção e outros colaboradores sobre as imagens dele recebidas dos Balcãs. Aonde se constata uma óbvia alteração no conceito de guerra, tal qual existia antes da queda do Muro de Berlim: se os conflitos costumavam acontecer entre países, passaram desde então a ocorrer entre povos do mesmo país. Mesmo que com recurso a meios muito menos sofisticados, como ocorreu no Ruanda.
Mas o problema com os fotógrafos de guerra («que foram ver a fuzilaria», como diria António Gedeão), a questão impõe-se: não existirá uma certa pornografia na forma como exploram a violência? Nomeadamente nessa forma abusiva como se aproximam de quem sofre?
Em entrevista Natchwey conta que decidiu ser fotógrafo nos inícios dos anos 70, quando se vicia a guerra do Vietname e era óbvia a dissonância entre o que as imagens revelavam e o discurso dos responsáveis políticos norte-americanos. Foi quando entendeu a capacidade das imagens para se tornarem em testemunhos do que acontece a pessoas vulgares, quando apanhadas no turbilhão de acontecimentos extraordinários.
Embora tenha sentido a dificuldade de acreditar nesse percurso, quando o empreendeu, a partir dos anos 80, foi na convicção de encontrar na disciplina do enquadramento o conhecimento aprofundado do mundo em que vivia.
Mas o documentário deixa dúvidas sobre a capacidade para evitar a manipulação de quem faculta o acesso aos locais a fotografar: em Velika Krusa, ele e Christiane Amanpour vão ao local aonde estão acumulados duzentos corpos de fuzilados. Mas, envoltos em plástico, quem nos diz da veracidade dessa condição de vítimas de um genocídio recente? E as crianças que, oportunamente, aparecem a trazer flores para homenagear esses mortos não protagonizam, involuntariamente, uma forma de acentuar esse horror?
Natchwey reconhece só lhe serem possíveis as suas imagens com a cumplicidade activa de quem ele capta. Quanto mais por isso, o fotógrafo não consegue ser uma testemunha imparcial da História já que depende dessa cumplicidade com os fotografados. Que dele se servem, conscientemente, enquanto veículo de denúncia perante o mundo das injustiças de que estão a ser vítimas…
Hans Hermann Klare, chefe de redacção da «Stern», reconhece que Natchwey mudou desde que o conheceu, muito por efeito dos horrores visitados pela sua objectiva. Por exemplo os do Ruanda, que o levam a interrogar-se sobre o que poderá inspirar tanto ódio. Algo que ultrapassa qualquer entendimento…
Tanto mais que, semanas depois de fotografar os efeitos dos massacres no país sobre os tutsis, ele dirigiu-se aos campos de refugiados de Goma aonde os hutus estavam a ser dizimados aos milhares por uma epidemia de cólera. Como se ali tivessem tomado o expresso em direcção ao Inferno…
Na Indonésia ele fotografa pessoas, que construíram abrigos precários ao longo da via férrea. É outra vertente da sua actividade: testemunhar a pobreza dos mais desvalidos de entre os desvalidos deste mundo. Gente que veio do campo em busca de sustento nas grandes cidades e que só arranja trabalhos miseráveis, insuficientes para lhes garantir condições mínimas de sobrevivência. O caso dos respigadores das lixeiras de Jacarta. Ou dos que trabalham nas irrespiráveis minas de enxofre a céu aberto.
Mesmo nos países supostamente elogiados pela sua «recuperação económica», uma parcela significativa da população em nada dela beneficia. Por isso o interessou tanto o derrube de Suharto. Porque as multidões que, nas ruas, exigia o seu afastamento, estava eivada da emoção de quem se pretende libertar de uma pesada canga repressiva.
Do tempo passado em África, Natchwey traz uma certeza: a fome é uma forma primitiva, mas bastante eficaz, de genocídio. E as fotografias terríveis obtidas em campos de refugiados até não dão toda a dimensão dessa tragédia: como seriam as que seriam obtidas em sítios aonde não existem essas formas de apoio às vítimas desse flagelo?
Mas para o repórter de guerra a divulgação das suas imagens está cada vez mais difícil: vivemos numa época hedonista aonde o que vende são as imagens glamourosas de artistas e de moda. Quem paga publicidade nas revistas não quer ver o que nelas possa incomodar os seus potenciais consumidores.
E, no entanto, é urgente olhar a realidade de frente. Fazer qualquer coisa para a modificar.
A esperança, para Natchwey, é que as suas imagens contribuam para essa candente evolução...

«Local Angel»: fragmentos políticos e teológicos de Udi Aloni

Com uma piscadela de olho Deus criou uma multidão de anjos, condenados a cantar louvores e, depois, a desaparecerem. Para escapar a esta triste sorte um anjo pode adoptar um humano e disfarçar-se de anjo da guarda.
Mas cansa-se depressa porque é angélico e o homem cheio de vícios. Nessa altura só lhe resta a vontade de cantar os louvores ao Senhor e desaparecer. Mas o homem não quer deixá-lo partir. O anjo tornou-se o seu pequeno Deus pessoal e ama-o tanto que está disposto a tudo - a súplicas, a manha, se necessário à força.
Oito anos atrás Udi Aloni trocou Israel por Nova Iorque. Um mergulho numa espécie de capitalismo visual cheio de néons e de grandes cartazes nas fachadas. Um contexto muito adequado para a sua própria estética pictórica de grandes dimensões, protagonizada por anjos a afastarem-se do seu passado. Pejado de ruínas relacionadas com massacres, genocídios e outras formas de injustiça. Como a da Shoah, sentida como herança incontornável de uma identidade contraditoriamente sentida.
No regresso a Israel ele tenta compreender o momento político à luz da tradição talmúdica, que atribui uma particular veneração ao Monte do Templo, local emblemático da tradição judaica porque associado ao mítico sacrifício frustrado de Isaac por ordem divina. Ora, ocupado agora pela Mesquita Al Aqsa, os sionistas não têm condições para venerarem como desejariam esse símbolo da sua tradição. Por isso substituíram essa veneração ao Monte do Templo pelo mesmo sentimento em relação ao seu Estado, a quem respeitam enquanto ferramenta de Conhecimento e de Revelação. Um Estado apocalíptico, sempre à beira do abismo, como se a sua perspectiva futura não fosse a destruição, mas a reconstrução.
Udi Aloni também questiona uma célebre profecia do sábio Gersham Sholam que, em 1926, alertava quanto aos riscos de expansão da língua hebraica, porquanto ela perderia, dessa forma, o seu carácter simbólico.
Numa abordagem mais prosaica do que é o judaísmo de hoje, Udi leva-nos a conhecer a mãe, que fundou o Movimento dos Direitos do Homem, em Israel, para dar apoio a quem dele careça. Judeus, árabes ou de qualquer outra origem racial.
Ela execra os rabinos, que se orgulham da sua fé e defendem a destruição criminosa dos que a não professam.
Uma das amigas da mãe, aqui entrevistada, é a antiga ministra Hanan Ashrawi, que se vive hoje numa época muito perigosa devido à tentativa inimiga de desumanizar os palestinianos, arrasando-lhes as casas, como se eles tivessem culpa de existir.
Nas conversas com a mãe ou com Arafat, Udi Aloni defende o princípio de dois Estados independentes a viverem lado a lado, cumprindo o plano original de seis décadas atrás. E escandaliza os seus compatriotas ao solicitar perdão ao defunto líder palestiniano por cinquenta anos de sucessivas agressões israelitas nos últimos cinquenta anos.
Para ele não existe qualquer dúvida: o fundamentalismo palestiniano alimenta-se do próprio fundamentalismo israelita. A tragédia foi essa transição para o campo religioso de uma abordagem racional, só possível numa perspectiva laica.
Mas a esperança numa solução pacífica é logo condicionada pela diferença de opiniões entre Udi e a mãe a respeito do direito de retorno dos palestinianos desalojados em 1948. Mesmo progressista a anciã recusa essa hipótese que, por razões demográficas, depressa poria um ponto final ao Estado judaico. Ora Udi evolui o seu pensamento ao longo documentário ponderando na exequibilidade de existir apenas um Estado binacional onde todos se respeitem nas suas diferenças.
Para as mães de um e de outro lado a urgência é pôr um fim ao sacrifício dos filhos…

segunda-feira, agosto 07, 2006

As infelizes circunstâncias

«A Casa Quieta» do Rodrigo Guedes de Carvalho foi uma boa surpresa, agora que o acabámos de ler.
A princípio a influência do António Lobo Antunes condicionou a nossa apreciação: afinal um seguidor raramente se pode comparar a quem o inspirou. Mas, passadas as primeiras páginas, as opções estilísticas do autor foram-se definindo e dissociando de uma lógica de pastiche.
A história é muito simples: Mariana vai morrer de cancro, depois de uma vida quase inteira passada ao lado de Salvador.
Teria sido uma relação perfeita se existissem filhos (mesmo que só tardiamente os procurassem) ou se um incidente de vinte anos atrás não acinzentasse tudo quanto depois haviam vivido. Uma confissão de infidelidade de Salvador quando escalavam Nova Iorque antes de visitarem as irmãs de Mariana no Canadá.
Esse episódio voltará a mostrar-se pertinente quando, em vésperas da sua morte, Mariana exigirá dele a revelação da identidade dessa fortuita amante. E, não o conseguindo, invectiva-o por ter sido um verdadeiro salafrário, que tudo deitara a perder…
Mas Salvador era perdedor em muitos outros tabuleiros. Por exemplo, enquanto arquitecto, jamais conseguira criar uma casa sua, dispersando pelas muitas saídas do seu estirador os pormenores daquela virtualidade.
Não conseguira, igualmente, ajudar o irmão, António, condenado à irreversível loucura muitos anos passados sobre os traumas acumulados na experiência colonial.
Frustração, enfim, com um pai quase obsessivo na forma como orientara toda a sua vida e com quem jamais entabulara uma conversa franca nos jantares marcados para o mesmo restaurante de sempre.
«A Casa Quieta» acaba por ser um romance de amores infelizes. Porque dependiam de realizações profissionais, que jamais haviam ultrapassado a dimensão mediana dos talentos limitados. Mas, sobretudo, porque Salvador e Mariana perderam pelo caminho a capacidade para fazerem do seu Amor a obra de arte mais perfeita...

domingo, agosto 06, 2006

O mito da inocência infantil

No balanço do que foi e será este ano de 2006, quando se equacionar o ocorrido na Justiça será bem negra a página em cujo rodapé figurar a sentença do caso do transexual assassinado no Porto.
A pena aplicada aos criminosos deveria levantar um coro de indignação que, infelizmente, não se faz ouvir neste país encerrado para férias.
A decisão do Tribunal acaba por insultar o sofrimento da vítima e por desculpar a perversidade dos homicidas. A quem a idade serve de desculpa …
Ora, já se encarara com este cenário no caso de pedofilia na Casa Pia em que as crianças foram sacralizadas como vítimas inocentes e os seus clientes diabolizados e sujeitos a ostracismo colectivo.
E assim se criou um mito em nada consonante com a realidade, que traduz a realidade numa perspectiva maniqueísta em que as crianças são sempre inocentes e os adultos culpados, ora de serem diferentes (no caso de Gisberta), ora de se socorrerem do sexo pago para se satisfazerem.
A realidade é, claramente, outra. As crianças podem ser adoráveis e ternurentas, mas também conseguem ser odiosas e viciosas.
E se provém de origens sociais em que a desestruturação do quadro familiar suscita uma negação dos valores comummente aceites, temos delinquentes em potência, que não olham a meios para satisfazerem os seus desejos. Que podem ser sexuais - porque nem o inefável dr. Pedro Strecht conseguirá negar existirem na criança desde que nasce - ou de mera aquisição de bens de consumo.
Embora desconhecendo qualquer das alegadas vítimas desse caso de pedofilia, conjecturo a possibilidade de algumas delas até nem terem sentido problemas de consciência em prostituírem-se para auferirem roupas de marca ou gameboys.
E, no caso de Gisberta, pode-se sentir alguma complacência por quem torturou outro ser até à morte?
Que tipo de adultos irão ser, quando a idade já não lhes servir de álibi?
A solução engendrada por um partido parlamentar - imputar condenações severas a partir de uma idade mais baixa - não servirá para evitar recorrências de tragédias deste tipo.
Se fosse assim os violadores e os homicidas pensariam melhor antes de executarem os seus crimes …
A solução passa, pois, por uma sociedade diferente, que exija sentido de responsabilidade a quem decide ter filhos.
Só avançando para esse projecto com a garantia de se desejar, de facto, gerar um novo ser como corolário de uma relação amorosa perspectivada como perdurável, se evitarão verdadeiros
«monstros sociais» condenados a, mais tarde ou mais cedo, apodrecerem nas prisões…
Daí a importância da despenalização do aborto. O autor de «Freaknomics» já demonstrou, estatisticamente, como uma mudança legal nesse sentido fazia diminuir os índices de criminalidade vinte anos depois.
Parecendo difícil achar relação causa-efeito entre essas duas realidades não é difícil adivinhar passados afectivos problemáticos nessas crianças atiradas para instituições do tipo da Casa Pia ou das Oficinas de S. José. Que se traduzirão em comportamentos associais em muitos deles, quando chegam à vida adulta!
Ou muito antes disso mesmo acontecer como se viu no crime do Porto…

segunda-feira, julho 24, 2006

UMA CARTA PARA O «PÚBLICO» NÃO INSERIR NAS SUAS PÁGINAS

Serão as ideias de Miguel Portas coincidentes com as do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad?
Com uma falta de elegância, que se deve assinalar, sobretudo por se tratar de quem, enquanto director do jornal, tem responsabilidades acrescidas no respeito por uma deontologia de carácter, o senhor José Manuel Fernandes não contrariou fundamentadamente nenhuma das teses do conhecido historiador e político.
Embora não me identifique com muitas dessas teses, o que dele li no artigo sobre a actual situação no Médio Oriente tinha as características de seriedade expectável em quem possui uma formação académica significativa naquela matéria. E contribuiu para complementar o painel de opiniões, que sobre ela vêm sendo publicadas.
O que parece irritar o director do «Público» ao ponto de avançar pelo insulto soez é a contínua demonstração do erro em que insiste lavrar. Para ele e outros antigos militantes da extrema-esquerda, quando muito jovens, a maturidade atirou-os para um reposicionamento ideológico claramente oposto. Um fenómeno, que deveria merecer uma tese de doutoramento, para que pudéssemos entender o que, psicologicamente, socialmente e politicamente, possa justificar tão estranha mutação.
Mas, tal como nesse passado distante, o director do «Público», mas também a Helena Matos, o João Carlos Espada e outros paladinos das teses dos neo-conservadores norte-americanos, assumem idêntico convencimento da bondade das suas ideias presentes. Como se o mundo se continuassem a dividir entre bons e maus, só variando com os anos quem são uns e outros.
No caso da guerra no Líbano, estes comentadores não conseguem explicar como é que um país democrático, com um Governo reconhecido internacionalmente, se vê agredido pelo vizinho do Sul mediante um álibi - o dos soldados tomados como reféns - que recorda os argumentos de Hitler para invadir a Polónia ou a Checoslováquia no início da 2ª Guerra Mundial.
Mas, mesmo reconhecendo o direito de Israel para salvaguardar a vida dos seus três soldados raptados pelo Hamas e pelo Hezbollah, que legitimidade tem o governo de Olmert para, em contraponto, tirar a vida a centenas de libaneses, muitos deles mulheres e crianças, que apenas desejavam viver pacificamente no seu País há tão pouco tempo saído de uma nefasta guerra civil?
E, vindo um pouco mais atrás, e partindo do princípio que os valores democráticos são para respeitar, o que torna menos legítimo o Governo eleito do Hamas do que saiu do Knesset? Não foram ambos designados a partir de processos eleitorais considerados como irrepreensíveis pela comunidade internacional?
E, olhando para outras latitudes, poder-se-á dizer que a vida das populações iraquianas e afegãs melhorou alguma coisa com o contínuo intervencionismo norte-americano?
E encontrarão esses comentadores alguma justificação para o escândalo de Guantanamo, que nem o Supremo Tribunal norte-americano conseguiu legitimar?
Compreende-se a falta de discernimento de José Manuel Fernandes. Mas, francamente, será que o insulto será doravante a única arma argumentativa, que lhe resta’

domingo, julho 23, 2006

«A DUPLA» de RAOUL RUIZ

Tem oito anos, foi rodado no Canadá e reflecte alguns dos temas mais do agrado do chileno, que o realizou. Em «A Dupla», Anne Parillaud é, em simultâneo, duas pessoas diametralmente opostas, mas com o mesmo nome: Jessie Ford.
Uma delas é uma assassina profissional contratada para eliminar por contrato, quem os seus clientes lhe indicam.
Outra é uma mulher jovem muito vulnerável, acabada de sair de uma cura psiquiátrica subsequente a uma agressão sexual e agora recém-casada com um jovem, que a leva de lua-de-mel para a Jamaica.
A questão amiúde colocada ao longo do filme é óbvia: quem é a verdadeira Jessie? A assassina ou a noiva? E o que é a outra? Uma sua réplica onírica ou um clone?
A verdade é que, na Jamaica, ela continua a sentir-se ameaçada: o seu violador não a terá seguido até ali para continuar a agredi-la ? E porque é que a bela Paula Quinn, encontrada no hotel, parece tão íntima do seu Brian?
Para encontrar alguma resposta ela vai consultar-se com uma suposta vidente, que tudo sabe: Isabel. Que, através de um chá, lhe propicia sonhos em que se vê atropelada perante a impassibilidade de quem testemunha essa cena.
Por seu lado, Brian começa a revelar um interesse óbvio pela herança por ela recebida do seu defunto pai. Que desejaria investir em negócios rentáveis para os quais lhe não faltariam ideias…
Jessie começa a inquietar-se com sucessivas situações de perigo em que se vê, enquanto está com o marido: uma queda por uma falésia ou um afogamento no mar evitados no último instante.
Igualmente a sua vertente de assassina começa a encarar Brian como um alvo potencial: é a ele que uma tal Laura pretende ver morto, contratando para tal os serviços dela. Ora, em última instância é ela quem acaba de descobrir em Brian a verdadeira identidade do violador de Nova Iorque.
Mas a Jessie mais vulnerável não quer acreditar e insurge-se contra a sua dupla. Erradamente, claro, já que Brian e a sua amante Paula preparam-lhe o «suicídio com barbitúricos» por forma a ficarem com o campo aberto para os seus projectos de felicidade a dois.
Esse desiderato é evitado in extremis, acabando Jessie por acordar numa clínica em Seattle ao fim de vários meses. Mas, agora elucidada, quanto à personalidade de Brian procura-o em Nova Iorque aonde ele estava em jantar romântico com Paula. E atraindo-o à casa de banho é aí que o elimina ...

quinta-feira, julho 20, 2006

UMA GUERRA NO MÉDIO ORIENTE

A situação agudizada na guerra do Médio Oriente, confronta-me com algumas contradições difíceis de dissipar: por um lado reconheço as razões dos palestinianos e dos libaneses perante uma violação tão flagrante das leis internacionais, tanto mais que acompanhada de uma anti-democrática falta de reconhecimento da vitória do Hamas nas eleições recentemente ocorridas.
Mas, é também verdade a identificação mais fácil dos nossos valores com os israelitas do que com os muçulmanos. Bastará o tratamento dado pelos regimes islâmicos às mulheres para se justificar uma opção civilizacional.Porque, mesmo não o sendo inicialmente, o conflito israelo–palestiniano acaba por representar o tal choque de civilizações de que falava Huntington. E comporta os riscos de ver prejudicado o nosso bem-estar ao levar os preços de petróleo para uma espiral descontrolada.
E se ainda agora aparecem os indícios de uma recuperação económica, há sempre o risco de os ver evaporarem-se nesta depressão colectiva.
Sem não termos contribuído em nada para tal peditório, podemos sofrer na pele os efeitos nefastos de dois mandatos de George W. Bush na Casa Branca. É que se eles bastaram para desmistificar as ideias absurdas dos neo-conservadores, para quem a supremacia imperialista da América passava pela exportação de uns ideais de democracia, nada de bom acarretaram para o nosso bem-estar ou para a criação de uma confortável sensação de confiança perante o futuro.
Por tudo isso, mesmo neste cantinho à beira-mar plantado, existe uma ansiosa expectativa pela emergência de uma paz para todos honrosa ...

segunda-feira, julho 10, 2006

BECKETT POR DESCOBRIR?

Será uma falha minha, mas nunca me senti atraído pela dramaturgia de Samuel Beckett. Porque o associo a poucos actores em cena e a muitas palavras disparadas de forma quase meteórica. Apesar de sobrar grande importância para as pausas, para os silêncios.
É, porventura, uma questão de maturidade. Como sucedeu com a música clássica, ainda há uns anos ouvida com frequência, mas sem paixão e, hoje, à beira do meio século de vida me leva a militante devoção.
Porque os temas de Beckett só agora começam a preocupar-me a sério: as angústias, as inseguranças, as frustrações de quem teceu ideais de felicidade, que se realizaram em grande parte mas não na sua mais utópica totalidade. Havendo um fim irremediável a ameaçar tolher as oportunidades remanescentes para conseguir esse tal pleno.
Talvez daqui a não muito tempo eu confesse aqui o emergente fascínio pela obra mais filosófica, que meramente teatral do dramaturgo irlandês…

terça-feira, junho 27, 2006

O ENTERRO DE NATE

Nas últimas semanas temos assistido fielmente ao desenlace da série «Sete Palmos de Terra». Vemo-la como se fôssemos vizinhos, ou mesmo familiares daqueles personagens, que ilustram outros tantos estereótipos - mas bem complexos - da diversidade humana.
Os episódios desta quinta temporada são, porventura, ainda mais intensos, que os das anteriores. Como se, perante a inevitabilidade da morte de um dos protagonistas - esse Nate que, no primeiro episódio da série, regressava a casa, oriundo de Seattle (a terra do seu idolatrado Kurt Cobain), para participar do funeral do pai - todos os demais personagens refinassem os traços do seu carácter.
Uma dessas personagens, que mais nos tem interessado, é a mãe. Ruth passou pela viuvez, por diversos amores, pelo prazer, e depois pela angústia da solidão, até desembocar neste drama de não ter estado presente, quando o seu filho preferido cedia a um aneurisma.
Apesar de sempre apreciarmos o desempenho de outros dos grandes actores da série - particularmente o que faz de David, o irmão homossexual de Nate, mas também todos os demais, capazes aqui e além de grandes momentos interpretativos, este tipo de séries leva-nos sempre de encontro às personalidades mais ou menos fortes das progenitoras.
Como não lembrar a perfídia da mãe de Tony Soprano nessa ânsia de muito se fazer amada, sem sequer retribuir?
No caso de Ruth a caracterização sai menos maniqueísta: ela consegue comover com a sua ingenuidade perante os que a pretendem seduzir, irritar com essa incapacidade de encontrar um caminho bem definido para se realizar; ou odiar, quando trata o seu mais recente companheiro, George, com a crueldade de quem se mostra incapaz de aceitar os acessos de loucura dele.
Acabará por ser esse mesmo George quem , nos discursos perante o corpo, proferirá um discurso elucidativo: Nate esforçara-se por ser um homem bom dentro do seu idealismo, mas nunca deixara de ser igual a qualquer outro dos presentes: tão imperfeito quanto qualquer outro…
E é nessa aceitação das nossas próprias imperfeições que, num fenómeno de conveniente identificação, somos capazes de exorcizar muitas das nossas zangas connosco mesmos...

segunda-feira, maio 29, 2006

CARLOS REYGADAS: «JAPAN», UM FILME SOBRE O SUICÍDIO

Há a viagem de carro da cidade para a periferia. Aonde a crueldade é perceptível sobre os animais: um miúdo apanha um pássaro e, como não o consegue matar, pede ao protagonista para que lhe torça o pescoço. O que ele faz, sem grandes estados de alma…
Mas este homem de meia-idade, que se arrasta com a ajuda de uma bengala, é um pintor a contas com um drama íntimo: o seu desejo é o de encontrar a morte na pequena aldeola escondida no fundo de um canyon.
A câmara abandona-o muitas vezes enquanto personagem e cola-se aos seus olhos, transmitindo-nos a sua progressão por caminhos e carreiros, que reiteram a austeridade de uma paisagem, que imita a rudeza dos rostos marcados por profundas rugas.
A senhoria em cuja casa ele se hospeda é Ascen, uma velha viúva cujos gestos de aproximação - a oferta de uma taça de chá, por exemplo - são rechaçados. Mas, como se essa rejeição lhe desse má consciência, o forasteiro mostra-lhe os seus quadros e inicia-a na marijuana.
Quem constitui uma ameaça, bem diversa da generalizada simpatia com que ele se vê acolhido na aldeia, é Juan Luís, o sobrinho de Ascen que, depois de passar pela penitenciária, está agora ansioso por espoliar a tia da casa, que fora do seu avô.
As tentativas do pintor para sair da sua letargia não são bem sucedidas - não são bem sucedidas nem as tentativas de se masturbar, nem as de se matar.
A impotência torna-se uma explicação cada vez mais óbvia para esse desejo em acabar consigo mesmo - quando vê uns miúdos rirem-se de um velho cavalo incapaz de copular com uma égua, ele sente alguma identificação com o animal.
Em desespero, no dia em que o sobrinho de Ascen virá subtrair-lhe a casa, ele consegue dela a oferta do corpo para inflamar a sua arrefecida libido. Mas em vão …
A morte é inevitável, já que nada mais justificará a continuidade dos seus dias sempre iguais na incapacidade de lidar com tão indizível desespero...

segunda-feira, maio 08, 2006

«A GAIVOTA»: PARADIGMAS REVOLUTOS

Há Irina Nicolaevna Arkadina, superlativamente interpretada por Rita Loureiro.
É uma conhecida actriz de teatro, que detesta ver-se envelhecer. Por isso o filho de vinte e cinco anos coloca-lhe um sério dilema: enquanto mãe deve amá-lo, mas a sua simples presença é bem demonstrativa de como já está longe do fulgor da sua juventude. Por isso é infeliz e semeia infelicidade à sua volta, quer inferiorizando os esforços criativos de Costia, quer negando-lhe o dinheiro, que o poderia ajudar a uma melhor inserção social.
E, quando o próprio amante a deixa em benefício de uma actriz mais jovem, ela não hesita em recebê-lo de volta, porquanto vive muito mais das aparências do que das realidades afectivas.
Numa peça em que quase todos são infelizes por viverem na frustração de não alcançarem os seus objectivos, Irina poderia personificar a felicidade do sucesso. Mas não: apesar da riqueza, apesar da beleza, apesar do sucesso junto do público, ela sente escoar-se por entre os dedos tudo quanto poderia dar-lhe o contentamento de ter chegado a algum lado…
O filho é Konstantin Gavrilovich Treplev, ou simplesmente Kostia. Na interpretação esforçada de Duarte Guimarães. Vinte anos depois seriam destes Kostias, que a Revolução de Outubro emergiria. Porque eles cresceram na burguesia e não têm dinheiro. E porque, em termos artísticos, aspiram a formas novas e já não suportam todos os academismos, que fundamentavam as obras passadas.
Por isso há uma peça estranha, que só ao médico Dorn sensibilizará. E há a ânsia de uma amor profundo, que se revelará impossível. Por isso a frustração é tanta que, sem razão aparente, ele disparará sobre a gaivota, que dá título à peça. Uma vítima inocente e colateral a todo o sofrimento colectivo.
E, sem se dar conta disso, Kostia será, afinal, a verdadeira gaivota dos dramas a que assiste. Porque viver sempre também cansa e as armas são objectos, que até se mostram bastante disponíveis.
A paixão impossível de Kostia incidira em Nina Mihailovna Zarechnaia. Uma renovada oportunidade para apreciar as qualidades de Rita Durão em papéis, que exijam a explicitação de uma diáfana fragilidade.
É ela - a rapariga rejeitada pela família, que parte para Moscovo em busca do sonho impossível (o amor de Trigorin, o sucesso nos palcos) - quem reivindica a condição de gaivota.
Mas ela é tão só uma mulher infeliz nas suas opções afectivas e incapaz de se entregar ao único homem, que lhe deseja dar todos os impossíveis.
Será a sua frivolidade, que a levará a aproximar-se demasiado do sol em que se pretende translacionar e a aí perder as penas.
Num papel bem mais secundário, mas afinal tão relevante, porque ilustrativo, pelo exagero, do percurso de Nina, temos Masha, a filha do feitor, numa interpretação contida de Teresa Sobral.
Sempre vestida de negro em luto pela própria vida, ela persegue o sonho impossível de ser amada por Kostia, embora ceda ao realismo de se casar com o mestre-escola. Uma opção, que acabou por não a recompensar, porque essa relação dá-lhe uma criança, mas não a afasta dos seus óbvios desejos. E por isso bebe e cheira rapé numa procura catártica de compensações, que nunca se revelam satisfatórias.
A mãe dela, Polina Andreevna, na prodigiosa interpretação da imensa Márcia Breia, viveu a relação clandestina com o médico, que hoje a afasta sucessivamente, ora porque os seus encantos já desapareceram, ora porque ele próprio, aos cinquenta e cinco anos, já deixou de ser o bem sucedido sedutor de todas as mulheres das redondezas.
Mas, viajado, este Yevgeny Aleksievich Dorn, interpretao por Luís Lima Barreto, é o único a encarar todo aquele drama com a lucidez de quem sabe confrontar-se com forças, que o extravasam.
Na arte de Kostia ele pressente o novo, que o fascina, mas sem saber bem porquê. Talvez, porque ao fazer parte dos privilegiados, ele se sinta incapaz de entender o fulgor revolucionário, que se vislumbra à distância...
Quem representa a arte decadente de uma sociedade em crise é Boris Aleksievich Trigorin, interpretado por Ricardo Aibéo.
Ele é o típico escritor, que olha para a realidade com a caneta e o bloco de apontamentos sempre preparados para anotar possíveis hipóteses de ficção.
No resto do tempo ele queda-se à beira do lago, de cana de pesca estendida à espera de alguma perca.
A sua relação com Irina tem mais de conformismo do que de exaltação.
Ela serve-se do seu prestígio para ilustrar a sua imagem de actriz de sucesso, bela e adulada pelos homens, enquanto a ele o interessam as pessoas com quem ela o põe em contacto nas suas estadias na casa de campo.
De entre os demais personagens secundários desta história, que alguns consideraram a mais autobiográfica de quantas Tchekov escreveu, ainda se deve evocar a veterania competente de José Manuel Mendes no papel do feitor, a sobriedade de Dinis Gomes no de mestre-escola, e sobretudo, a sapiência de Luís Miguel Cintra no do tio Piotr Nicolaievich Triplev. Muito envelhecido, este antigo conselheiro do Czar perde a alma no campo, quando sempre fora urbano por natureza. Mas o dinheiro desaparece completamente na conservação daquela quinta e a irmã recusa-lhe, através de Kostia, o empréstimo necessário para recuperar a sua prestigiada posição social.
A esse título ele representa a velha aristocracia, que os bolcheviques iriam erradicar violentamente, já que se revelava incapaz de compreender as urgências da História humana. Ao contrário do velho príncipe Salinas, os Piotr Triplevs degeneravam fisicamente, depois de há muito a alma lhes ter acinzentado.
Ainda assim, e a exemplo de Dorn, há nele uma ternura pelo sobrinho, que nada tem a ver com os seus conceitos ideológicos ou estéticos. É uma mera atracção pela juventude definitivamente perdida.
Em balanço é uma peça notável nas leituras possíveis de quanto revelam os seus personagens e bem actual nesta época, que parece ser a do fim de um conjunto significativo de paradigmas.

segunda-feira, maio 01, 2006

«LISBOETAS» de SÉRGIO TRÉFAUT

Eles estão aí no meio de nós. São brancos (muito claros, porque eslavos), são negros, são amarelos. De todas as cores e de todas as latitudes. Mas lisboetas de facto, porque aqui procuram esse paraíso na Terra, que lhes escapou no lugar onde nasceram.
E temos a concretização de tudo quanto de pior encontramos na emigração e nos escusamos de olhar.
A exploração, por exemplo. Há um negro, que trabalhou doze horas de seguida para só receber 25 euros. Ou o engajador, que nem quer continuar a conversa, quando lhe acenam com a exigência de contrato de trabalho.
As condições de miséria. A pernoita em quartos minúsculos e caros, quando não mesmo em frágeis abrigos na rua. A tentação do alcoolismo, quando não se tem qualquer família e apenas se encontra socorro para a doença na carrinha, apenas dotada do suficiente para os cuidados mais básicos.
A dificuldade de comunicação. Que se procura debelar no difícil manejar do português em aulas aonde se aprende a dizer «aldrabão» ou «coçar-se. Ou quando nos Serviços de Emigração são inexistentes os tradutores, que pudessem facilitar a compreensão quanto aos (muitos) papéis a preencher como forma de se legalizarem. Ainda assim existem jornais apostados em servirem de veículo facilitador dos passos perdidos desses homens e mulheres nos caminhos da cidade.
A religião. Que é uma forma de identidade, seja ela ortodoxa, muçulmana, protestante ou qualquer outra. Aonde as pessoas se encontram e trocam experiências, sentindo-se menos sós neste sítio, que se julgou recheado de gente rica e, afinal, tão diferente do que, lá longe, se imaginara.
Mas há também o contraponto: os telefonemas para casa como forma de mitigar saudades, os bailes animados ou as idas à praia para encontrar o fascínio do oceano. No limite há quem se arrisque a ter filhos, apostando num futuro bem mais próspero do que este presente de empregos inseguros e mal pagos.
O filme do Sérgio está à medida do que dele conhecemos: sensível e fraterno para com esses desvalidos de todos os continentes a quem a pobreza empurrou para a aventura tremenda de buscar a sobrevivência entre nós.
Que os olhamos desconfiados, como se não fizessem parte integrante da sociedade, que é a nossa...