domingo, dezembro 31, 2017

(S) In the Upper Room, a música de Philip Glass dançada pelos Ballets de Monte Carlo

(DIM) Eden Valley tem afinal pouco de paradisíaco...

As séries televisivas passaram a colher a minha atenção a partir do momento em que muitos dos seus melhores realizadores, argumentistas e atores aterraram nelas como alternativa a não se dedicarem exclusivamente às obtusas superproduções destinadas aos consumidores de pipocas.
Os cinemas passaram a ser, sobretudo, frequentados por adolescentes com exagerada preguiça nas meninges, pelo que a maior parte dos filmes constam de super-heróis e comédias tolas para se entreterem, e afastaram de vez os progenitores acomodados às pantufas e aos benefícios das cada vez mais sofisticadas aparelhagens de home cinema.
Vem isto a propósito de ter deixado para a véspera do fim do ano a conclusão da terceira temporada de «Fargo», que começara a digerir ao ritmo de um episódio por dia, mas se tornou tão apelativa, que os seis últimos, foram vistos de seguida. Confirmando ter sido esta uma das melhores séries de 2017.
À partida Fargo é daquelas experiências, onde sempre temo voltar. Foi tão feliz a sua descoberta há vinte anos que, tão-só saídos do cinema, disse à cara metade que seria uma injustiça se, daí a quase um ano, a Frances McDormand não limpasse o Óscar para a melhor interpretação feminina. Meu dito, meu feito: meses depois lá subia ela ao palco a agradecer a consagração, que o desempenho do papel de Marge Gunderson lhe valeu.
Vi a primeira temporada da série e gostei, embora replicasse parte da história original e me parecesse uns furos abaixo do filme dos Coen. Veio a segunda temporada e gostei mais. Agora com a terceira, rendi-me: mas que grande argumento para corresponder a algumas excelentes interpretações.
Embora transitando do North Dakota para o Minnesota - mas com a neve a sempre imperar na paisagem! - misturam-se diversos confrontos, que se interligam e condicionam, complexificando a ação. Há dois irmãos que se odeiam (ambos interpretados por Ewan McGregor!); há uma administração empresarial a tentar, sem sucesso, livrar-se dos predadores, que decidiram roubá-la; há uma chefe de polícia demasiado esperta para aceitar a subordinação a um daqueles estúpidos xerifes decerto entusiásticos apoiantes de Donald Trump (embora a ação decorra em 2011) e sobram muitos outros personagens, que só por si, também mereceriam referência se nos ajeitássemos a dilatar a dimensão do texto.
Numa observação mais sucinta da intriga temos aqui representados três escalões da luta de classes: os miseráveis, que procuram encontrar meios de sobrevivência e se encalacram tão só começam a violar a lei. Os capitalistas tradicionais, que usam e abusam do seu estatuto, desprezando os que com eles não conseguem equiparar-se. Os predadores ligados aos paraísos fiscais e ao private equity para agirem como verdadeiros gengiskhans da finança internacional.
Se o primeiro crime resulta de um equívoco - o assassino contratado engana-se na identidade e no local onde vivia a vítima, optando por despachar outra vítima com o mesmo apelido escolhida ao acaso numa lista telefónica! - a partir daí as mortes violentas sucedem-se, denunciando a facilidade com que nos States se puxa do gatilho. Não faltam corpos a sangrarem abundantemente para o soalho ou a mancharem a imaculada brancura da neve.
Como de costume na marca Fargo os homens são uns fracos, quer de inteligência, quer de coragem, sendo as mulheres a ganharem-lhes a palma em todos os capítulos. Ainda assim Glória, a chefe de polícia de Eden Valley, contrapõe a sua sageza e argúcia, com a incontornável pecha para ser uma mãe galinha.
Chegamos enfim a um final camiliano: a maior parte dos personagens morre ou fica incapacitada, mas satisfaz-nos que o pior de entre todos os maus da fita seja enfim capturado. Mas será que ninguém cuidará de o vir livrar da tenaz perseguição de Gloria? 

(AV) O Fascínio da Itália em Claude Monet

A ordem dada ao marchand era taxativa: não deveria contar a ninguém para onde ele iria ausentar-se durante várias semanas naquele inverno de 1884. Nenhum dos amigos pintores deveria saber para onde se dirigiria, sob pena de ver comprometido o objetivo de descobrir a Itália por si mesmo, sem ninguém que lhe condicionasse a forma como a veria. A exemplo de Goethe, que cumprira esse mesmo ritual umas décadas atrás, e dele dera fascinado testemunho escrito, Claude Monet pretendia imitá-lo dando conta das vivências através dos seus quadros.
A estadia na Ligúria fascinou-o logo desde os primeiros dias. Em carta à companheira, também ela deixada em Paris, confessava: “Instalei-me num país feérico. Não sei para onde virar a cabeça: tudo é soberbo, tudo gostaria de reproduzir na tela.”
Não é que não o esperasse, mas deparar ao vivo com a claridade azulada do céu e com o pujante verde da Natureza, deixou-o deslumbrado. Que diferença em relação à cinzentude triste de Paris! Tanto mais que, em Bordighera, onde se instalou numa pensão, a variação do clima ao longo do dia mudava com tal rapidez como se lhe deparasse singular dinâmica justificativa da estratégia de colher e fixar as «impressões» do que percecionava.
Pouca atenção deu aos ingleses, cada vez mais numerosos por estarem a transformar a Riviera italiana como lugar de vilegiatura para escaparem aos rigores dos invernos londrinos. Da presença humana interessava-o sobretudo a arquitetura das magníficas villas, cujos terraços denunciavam as influências orientalistas.
Calcorreando a região, toma-se de amores por uma aldeia, Dolce d’Água, cujo castelo medieval em ruínas o leva a fazer das pedras o motivo principal do quadro reservando à natureza um segundo plano complementar. Ou a Ponte Vecchia, que lhe suscita um dos seus mais famosos quadros.
A estadia em Itália dura de janeiro a abril de 1884, e embora Monet para lá tenha partido aureolado de merecido prestígio, regressa a casa muito mais ciente do que pretenderia fazer a seguir.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

(DIM) A brevidade do que de mágico se vive (a propósito de uma cena de «Roma» de Fellini)

Um grupo de visitantes aventura-se pelos longos túneis, que uma gigantesca broca vai abrindo no subsolo romano. O guia queixa-se da contingência maior de fazer esse tipo de trabalhos na cidade: escava-se aqui ou acolá e logo surgem achados arqueológicos, que fazem parar os trabalhos. Por baixo dos pés acumulam-se estratos sucessivos de vestígios deixados pelas gerações que nos precederam. Somos herdeiros de um espaço, só fugidiamente nosso, porque o colhemos dos que nos antecederam e logo legaremos aos que nos sucederão.
A confirmar o quanto tudo é instantâneo, impossível de agarrar e conservar, logo o grupo estaca mais adiante: a perfuradora deu com outra parede oca, capaz de abrigar atrás de si novo tesouro. E assim é: franqueia-se uma abertura e alguns dos visitantes e operários atravessam-na para serem confrontados com os olhares intensos de quem os interpela desse passado remoto em que haviam ficado retidos na forma de frescos coloridos.
Para a única mulher do grupo o encantamento é imediato: poderia haver algo mais excitante do que encontrar-se cara a cara com tão assombrosas imagens de há dois mil anos, tão brilhantes como o eram na época em que foram pintadas? Excitada, apela à atenção do companheiro, quiçá esposo, para que partilhe aquele momento mágico. Que logo sucumbe numa súbita dor de alma: a entrada de ar numa câmara, até então estanque, opera reação nas tintas do passado e, em breves instantes, elas começam a desvanecer-se.
Apavorada, pede ajuda a quem não está capaz de lha dar: iniciado o processo de degradação acelerada nada o travará. E aquele breve instante em que o passado e o presente se encontram vai definhar, conhecer um fim. Ficarão as galerias e as estátuas, já que as pedras resistem melhor às agressões do poluído ar do nosso tempo, mas esses breves olhares do passado, que pareciam perguntar porque tardaram tanto? Quem sois vós?, desaparecem sem dar tempo de lhes dar resposta.
Ao regressarem à superfície podemos imaginar o que terão pensado quem havia experimentado tal experiência. Se conheciam a canção do Léo Ferré terão lembrado que avec le temps, tout s’en va. Bem intentamos agarrarmo-nos a bens, a ocasiões felizes, que elas sempre se revelarão efémeras e nos confrontam com o infortúnio de sermos mortais, de estarmos condenados a envelhecer e sentir nos ossos o contraponto para o privilégio de vivermos.
Se tiverem optado por racionalizar a adversidade, os visitantes do substrato romano sentem imprescindível a necessidade de agarrarem as fascinações fazendo-as perdurar o mais possível. Mesmo não conseguindo deter a cadência evolutiva da ampulheta, alimentarão a memória do que viram, do que sentiram.
No fundo é a receita que Ricky Blane dá a Ilse Lund quando dela se despede no aeroporto de Casablanca: We'll Always Have Paris! 

(S) Pedro Almodovar apresenta a enorme cantora que foi Chavela Vargas

(DL) Frank O’Hara não era pintor

Não era pintor, era poeta - eis o tema do poema de Frank O’Hara, um dos principais nomes da Escola de Nova Iorque, que integrava com outros escritores da sua geração como John Ashbery e Kenneth Koch.
No poema também fala de Mike Goldberg, o amigo pintor, que estava então a criar uma obra chamada «Sardinhas» e pertencia por seu lado à chamada New York School of Painters com alguns dos maiores expoentes do que se convencionou chamar de expressionismo abstrato: De Kooning, Pollock, Rothko.
Entre os poetas e os pintores das duas escolas estabeleceu-se uma fratria alicerçada nas mesmas preocupações estéticas e sociais.
O’Hara nascera em 1926 e fizera a Guerra do Pacífico a bordo de um destroyer. Como veterano teve acesso a uma bolsa em Harvard, onde foi aluno brilhante.
Trabalhando no Moma chegaria a ser um dos seus principais curadores, mas abandonaria o cargo para se dedicar à poesia a tempo inteiro. Considerava que já não lhe bastava escrever nos intervalos de almoço, mesmo que eles lhe tenham proporcionado os vinte cinco textos, que integrariam o seu «Lunch Poems», que teve tradução portuguesa pela Assírio & Alvim.
Nesse período, vivido no célebre museu adjacente ao Central Park, O’Hara também escreveu um ensaio de referência sobre a obra de Jackson Pollock.
Lamentavelmente teria vida curta, pois morreria aos 40 anos, atropelado numa estrada depois de o carro em que seguia com alguns amigos se ter avariado. Essa tragédia ainda melhor justificou o seu reconhecimento como um dos melhores poetas norte-americanos do século XX.

(S) «Just one of those things» na voz de Max Raabe e da Palast Orchester

quinta-feira, dezembro 28, 2017

(AV) Teria Kandinsky sido quem foi se não tivesse nascido em Moscovo?

Nunca vira a coisa dessa forma, mas devo reconhecer que um programa do canal ARTE convenceu-me desta ilação: nunca a obra de Wassily Kandinsky teria evoluído de forma a dar-lhe o mérito de ser reconhecido como o pai do abstracionismo se não tivesse nascido em Moscovo na segunda metade do século XIX.
A cidade tinha uma arquitetura, quer nas cores, quer nas formas, que ele viria a refletir nas suas composições, sobretudo quando, a partir da Revolução falhada de 1905, a realidade soviética começou a sobressair como uma dinâmica politicamente imparável até se revelar vencedora em 1917. As próprias catedrais e basílicas, quer no exterior, quer na riquíssima decoração interior, optavam pelas cores primárias, que o pintor adotaria nalgumas das suas Composições mais representativas. Podemos imaginar o artista a percorrer as avenidas moscovitas e a deixar-se inebriar pelos estímulos, que a arquitetura lhe ia suscitando.
Kandinsky não vivia, porém, obcecado pelo lado formalista da arte: as pessoas interessavam-lhe e muito, tendo decorrido da sua participação no movimento revolucionário a incontornável tentação pelas expressões abstratas. Até por elas melhor expressarem a sinestesia, que o caracterizava, traduzindo nas telas o que os ouvidos escutavam na forma musical. E se esse também era um tempo em que os compositores abandonavam os cânones novecentistas para aderirem entusiasticamente às propostas vanguardistas.  Ao novo Homem Soviético deveria corresponder uma estética que, em nada se assemelhasse com a que vingara até então.
Convivendo e dialogando com alguns dos artistas, que impulsionaram o movimento construtivista, Kandinsky sentiu exaltar-se-lhe a criatividade no meio do turbilhão político, que agitava toda a vasta extensão ocupada progressivamente pelo poder bolchevique. Quem viveu essa época e dela deixou testemunho, descreveu-a como uma daquelas que perdurariam para sempre as emoções inerentes à sensação de tudo estar a mudar aceleradamente.
Infelizmente seria sol de pouca dura: tão só confirmado como sucessor de Lenine, Estaline cuidaria de impor uma arte realista, condenando à clandestinidade as expressões artísticas que não servissem os intentos propagandísticos do novo regime. O discurso coletivista não se revelava compatível com o individualismo criativo de quem ousava tudo contestar.
A exemplo de outros compagnons de route de uma Revolução, que já não correspondia aos seus ideais, Kandinsky exilou-se na Alemanha. Onde, na década  seguinte, os seus quadros seriam igualmente excomungados por corresponderem ao que os nazis designavam por «arte degenerada».

segunda-feira, dezembro 25, 2017

(DIM) «La La Land» de Damien Chazelle

O que torna «La La Land» particularmente simpático não é o facto de pretender a ressurreição - nem que seja por duas horas - de um género que conheceu fulgor inigualável nos anos 40 e 50 e nunca mais encontrou inspiração, nem intervenientes, que lhe repetissem as mágicas flutuações acima de qualquer lei da gravidade. Mesmo que Emma Stone, Ryan Gosling e todos quantos os acompanham nos números dançados e cantados deem mostras irrepreensíveis de competência.
O que mais nele gostei foi o frágil equilíbrio entre a aspiração em cumprir sonhos quase impossíveis e o quanto eles se mostram dececionantes tão só alcançados. Durante boa parte do filme andamos convencidos de tratar-se de coisa ligeirinha a arrumar na prateleira dos entretenimentos bem feitos, mas sem grandes ambições. Mas depois damos com a difícil gestão das frustrações, que significam um passo adiante na maturidade.
É como se houvesse um tempo para sermos ingénuos e sentirmos como mágicos os momentos de exultação perante a iminência do sucesso, e outro, completamente diferente, em que resta o conformismo de se haverem vivenciado momentos excecionais, mas tudo ter convergido para uma rotina convencional donde resta olhar com melancolia para o lastro emocional abandonado pelo caminho.

Personagens (P): Mia, Sebastian, Conde e Wilt

«La La Land» de Damien Chazelle
O que é crescer? Mia e Sebastian vão aprender à sua custa a transição entre a crença na realização de todos os sonhos e as circunstâncias inibidoras de se tornarem exequíveis.

Será que a vontade de os alcançar é correspondida por talento bastante para lhe servir de alavanca? Ou não existirão milhares de réplicas a procurarem a estreita porta por onde só pouquíssimos conseguirão passagem.
Crescer é, também, alcançar o entendimento de, mesmo quando se parece ter ganho o sonho, ele acaba por não ser assim tão exultante quanto parecera possível. Ter-se-á perdido a magia e até aquele amor, jurado como eterno se tornou em melancólica nostalgia…

«Máscaras» de Leonardo Padura
E se os grandes heróis são farsantes capazes de tudo - ate de matarem um filho! - só para não serem desmascarados?
Na Cuba desencantada de Mário Conde as ilusões da Revolução cedem espaço a sentimentos e valores, que nada a ela devem. O homem novo nunca se afirmou, porque o velho - aquele que ia-se transformar por obra e graça da educação para todos -, manteve-se tal qual era: egoísta, desonesto e escroque. Por isso mesmo o ainda tenente bebe demasiado e apaixona-se vezes sem conta, como se o álcool e o sexo o distraíssem de tudo quanto lhe desagrada.
Tudo quanto vê, ouve e sente, poderia motivá-lo a escrever páginas impressivas, mas a perseverança não é o seu forte, desaparecendo tão só se estiola o estímulo inicial.

«Wilt em parte incerta» de Tom Sharpe
A frustração com Wilt é sempre a mesma: dadas as primeiras gargalhadas sentimos que nada de novo: projetos sem grandes exigências transformam-se em desastres incomensuráveis, pondo os nervos em franja ao inspetor Flint da polícia de Ipford, que se vê obrigado a lidar com as consequências das trapalhadas em que se mete o conterrâneo e sua não menos caótica família.
Desta feita, e dos dois lados do oceano, membros do Parlamento morrem, mansões ardem, senhoras finas acabam presas, perversões sexuais acabam na praça pública e empresas de prestígio afundam-se em questão de semanas. E, no entanto, tudo começara no desejo de ir à descoberta da Inglaterra profunda enquanto a mulher e as gémeas visitavam familiares no Tennessee.
Ao chegar à última página não se pode dizer que se tenha recuperado o equilíbrio inicial, porque, pelo meio, terão sido muitos a verem-se irreversivelmente afetados pelos atos involuntários de gente normal transformada em enormíssimos perturbadores da tranquilidade pública.


domingo, dezembro 24, 2017

(EdH) «Mont Saint-Michel, o labirinto do arcanjo» de Marc Jampolski (2017)

A silhueta icónica atrai anualmente milhões de visitantes do mundo inteiro. Em finais dos anos noventa também por ali andámos, mas sem os dados históricos e arquitetónicos, que poderiam potenciar-nos as vivencias, tornando-as ainda mais impressivas. De então ficou o registo gravado na memória de um ilhéu de granito, algures entre a Bretanha e a Normandia batido por ventos e marés escolhido em tempos  imemoriais por eremitas para empreenderem o culto a São Miguel.
Os monges beneditinos deram-lhe outra dimensão e ambição em forma de uma poderosa construção românica, depois continuada com as características do gótico. Também fortaleza inexpugnável ou inferno carceral, que Vitor Hugo denunciaria, o Mont Saint Michel conheceu metamorfoses sucessivas, que continuam a dar muito trabalho a quem o estuda.
A mais recente restauração do monumento possibilitou que historiadores, arqueólogos e outros especialistas voltassem a debruçar-se sobre os mistérios deste local único. Graças a escassos documentos  que sobreviveram às vicissitudes da História, mas sobretudo às mais recentes técnicas de modelação e datação, esses cientistas conseguiram fazer as pedras falar de forma a recuperarem o traçado original dos corredores, identificarem os contornos e as funções de edifícios entretanto desaparecidos resolvendo os enigmas arquitetónicos do rochedo.
Acaba por se concluir que o Mont Saint-Michel é um entrelaçamento de projetos e elementos diversos, que não dependeram apenas de um plano.
O excelente documentário de Jampolski desvenda com notável precisão as sucessivas etapas da construção do monumento, relacionando-os com os acontecimentos políticos, históricos ou naturais, que estiveram na origem das suas reconstruções. O resultado é uma vibrante homenagem ao génio dos construtores do passado, que souberam adaptar-se à complexidade do relevo e à magia desse pequeno bocado de terra situado entre o céu e o mar.

(S) O Divertimento Concertante de Nino Rota

(DIM) A Comédia no cinema italiano

Curioso o cumprimento da regra de ninguém conseguir ser profeta na sua própria terra: a comédia italiana, que tanto sucesso causou nos anos 60 do século passado foi depreciada pelos próprios transalpinos. Só atentaram nela quando o êxito internacional de alguns dos seus filmes lhes caucionou o pretexto para olharem mais assertivamente os filmes com Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi ou Nino Manfredi e enquadráveis naquele que terá sido o único género europeu equivalente à noção hollywoodesca de existirem características passíveis de organizarem os filmes pelas respetivas temáticas (western, policia, comédia musical, etc.). Até então a expressão comédia à italiana só servia para os críticos designarem filmes sem pretensão artística ou política.
As origens do género radicam em várias tradições teatrais a partir dos anos 20, muito embora não esqueçam os contributos da commedia dell’arte.  Uma inspiração terá vindo do avantspettacolo, ou seja daqueles números de music hall, que antecediam a apresentação dos filmes.
Houve por certo o contributo das comédias pretensamente sofisticadas do período mussoliniano, que pretendiam imitar o glamour  de Hollywood. E não se pode esquecer a comédia dialectal, que procurava explorar o riso a partir dos costumes de algumas regiões italianas. A crítica ao regime tornava-se tão frequente em tais comédias, que Mussolini legislou no sentido de se proibiram os dialetos nos palcos.
O grande pioneiro da comédia italiana terá sido Tótó, enormíssimo ator que teve a desdita de não contar com realizadores à altura do seu talento. Por isso mesmo - e excetuando a colaboração com Pasolini - fica-nos a sensação de o ter visto passar ao lado de uma maravilhosa carreira artística, porque condicionada pelo escasso talento de quem o filmou. Anteriormente há também a colaboração entre o realizador Mario Camerini com os irmãos De Filippo - Eduardo e Peppino -, o primeiro dos quais viria a ser dramaturgo de muito mérito, objeto de verdadeira devoção por Mário Viegas.
Muito graças às duplas Steno - Monicelli e Age - Scarpelli como argumentistas, os anos sessenta foram muito fecundos para a produção e exibição de filmes, que testemunhavam a mudança de valores e de costumes, satirizando os que se tornavam absurdos e antecipando a pertinência das novas modas. O problema foi confrontar-se com a importância crescente da televisão como fulcro de entretenimento da população. Ao virar para a década seguinte, Ettore Scola ainda se esforçou por dar um conteúdo mais político ao género, adequando-o à herança de tudo quanto ocorrera com o Maio de 68 em França ou com os movimentos antiguerra do Vietname, mas o sucesso foi mitigado.  Os grandes nomes do cinema italiano foram morrendo e poucos foram capazes de os substituírem. No caso da comédia, Roberto Benigni teve um êxito tão imenso quanto breve com «A Vida é Bela» e Nanni Moretti, embora incorporando recursos do género, cultiva bem mais um cinema de autor, muito seu característico,  do que se sujeita a quaisquer outros cânones.
A comédia italiana acaba por ser um fenómeno cinematográfico, que pode e deve ser escalpelizado dentro das circunstâncias em que conheceu o seu esplendor...

sexta-feira, dezembro 22, 2017

(DIM) «A Vidreira» de Christiane Balthasar (2016)

Adaptado do romance de Petra Durst-Benning «A Vidreira» é uma história de emancipação feminina com duas personagens muito impressivas na luta contra as normas da sociedade repressiva em que vivem. Na Alemanha do final do século XIX elas confrontam-se com a regra de as mulheres não puderem soprar o vidro no seu processo de fabrico, e muito menos lhes estava acessível a possibilidade de sugerirem novos formatos.
Corajosas e obstinadas, Marie e Johanna vão ter sucesso ao inventarem as bolas de Natal, criações que não ensombram os trabalhos das demais vidrarias da sua região. É, pois, um conto de Natal passado na Turíngia, no centro da Alemanha, na época natalícia de 1890, quando, por morte do pai, as duas irmãs veem-se sem recursos. Daí que Marie encare como alternativa a direção da pequena industria familiar na qual recebera sólida formação. Só que a forte corporação dos vidreiros opõe-se a tal possibilidade, instando-as a aceitar empregos ingratos e mal pagos. Perante tal injustiça as duas irmãs revoltam-se e teimam em levar por diante o seu projeto.
Para quem souber alemão o filme está disponível no link abaixo. Quem o quiser ver dobrado em francês o canal ARTE transmite-o nesta sexta-feira ao início da noite.

quinta-feira, dezembro 21, 2017

(S) O Concerto para Piano nº 5 de Beethoven interpretado por Mitsuko Ushida

(DIM) «Drifters» de John Grierson (1929)

Em 1929 o documentarista John Grierson filmou a pesca do arenque no Mar do Norte, ao largo das Shetlands, Lowestoft e Yarmouth. Pretendia focalizar o seu olhar para a relação do homem com a natureza, quando estava em acelerado desenvolvimento o processo de industrialização  do país.
Há influências de Flaherty e dos filmes soviéticos ao longo dos 50 minutos de duração. A Cinemateca exibe-o logo à noite numa das suas salas...

quarta-feira, dezembro 20, 2017

(DIM) «Vejo Tudo Nu» de Dino Risi (1969)

Quando a década de sessenta chegou vigorava ainda um ambiente muito conservador, com turmas só para meninos e outras só para meninas, e quando estas se aproximavam de idade mais casadoira aumentava-se a vigilância familiar não fosse entrarem por caminhos de perdição, que dessem ensejo a uma das mais temidas instituições de então: a maledicência dos vizinhos.
Veio a guerra em África e uma súbita revolução musical, a aliar o gingar expressivo de Elvis à histeria suscitada pelos Beatles, suscitaram efeitos colaterais - grandes guedelhas, biquinis e minissaias - causadores de grande escândalo nos mais arreigados defensores da moral e dos bons costumes.
Se essa realidade era óbvia em Portugal, não era muito diferente da que se passava no resto da Europa, sobretudo nesse Sul muito condicionado pela influência da hierarquia católica. Mas até nesta as coisas estavam a mudar: o Concílio Vaticano II mais não era do que o reconhecimento de um tempo de mudança, que o Maio de 68 em França apenas explicitou de forma mais veemente.
Ao chegarmos a 1969 - data do filme de Dino Risi - a libertação sexual estava na ordem do dia e a nudez conseguia impor-se com progressiva evidência contra a Censura, que a tentava ocultar.
Quer tudo isto dizer que o filme deve ser visto nesse contexto de agudizadas contradições entre os arcaísmos representados pela Democracia Cristã italiana e a acelerada afirmação dos sinais do que se entendia como moderno. Por isso o filme é uma sátira pop(ular), irónica, aqui e além apalhaçada, desse mundo em transformação.
Em cada um dos sete sketches ferozes e inventivos - todos interpretados por Nino Manfredi - há esse universo em que a repressão coteja o êxtase, ou em que as pulsões íntimas se veem ameaçadas de coação. Quando reprimidas, ei-las a suscitarem os maiores desvios ao entendido como normal.
São sete histórias em que todos quantos as protagonizam vivem obcecados com o sexo, tanto mais que a ufana sociedade de consumo suscitava necessidades inimagináveis através de um marketing impositivo.
Temos, pois, uma vedeta mediática a dar assistência a um ferido na estrada, que acaba por morrer, porque médicos, enfermeiros e outros doentes do hospital para onde se dirigira entendem, sobretudo, dar-lhe o exclusivo da sua atenção. Silva Koscina, uma das atrizes mais conhecidas de então - hoje pouco mais do que esquecida! - surge-nos aqui a reavivar-nos a sua memória.
Há um rústico particularmente excitado pela galinha da vizinha numa abordagem da zoofilia, que Woody Allen também replicaria três anos depois no seu «ABC do Amor».
A homossexualidade surge como tema do episódio «Ornella», um dos mais extensos, tão incensado por uns, quanto classificado de entediante por outros. Mas, como de costume na comédia italiana, exploram-se os equívocos, que tudo tentam esconder e acabam por tudo revelar.
Um dos sketches mais curtos é também um dos mais engraçados: o do míope, que só metendo os óculos percebe  que corpo estava a ser objeto da sua excitação.
A exploração dos equívocos está também n’”A Última Virgem”, em que um argumento incontornável convence uma tímida rapariga a portar-se com a fogosidade ditada pelas circunstâncias, que julgava serem as suas.
Muito citado é o “Locomotiva Minha” em que um conceituado chefe de família, casado com uma bela criatura, deixa-a todas as noites sozinha em casa para viver deliciado orgasmo com o mais inesperado dos estímulos.
E o filme conclui-se com o sketch correspondente ao título do filme: efeito da tal sociedade mercantilista em que se multiplicam imagens a estimularem a compra de todas as mercadorias, as essenciais e as supérfluas, um publicitário vê-se enredado nas armadilhas das suas criações, Pretexto para Dino Risi desafiar a complacência da Censura, com o alibi de constituir a nudez um fator fundamental da estória contada.
Temos, pois, um filme divertido e com muita malícia, ademais assinado por quem tinha formação académica adequada para saber do que estava a tratar: antes de se tornar realizador de cinema, Dino Risi formara-se em Psiquiatria, tendo até chegado a exercer essa especialidade médica antes de se orientar definitivamente para o cinema.