quarta-feira, março 30, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Vidas Apócrifas» de Amadeu Lopes Sabino (2005)

Há quarenta anos ainda vivia o delírio ideológico maoísta, quando Amadeu Lopes Sabino decidiu virar costas à política e dedicar-se à sua vidinha. Como era uma época em que o «Grande Educador» estava bastante ativo na designação dos que incorriam na «linha negra do Partido» essa desafeição de um dos mais conhecidos fundadores do MRPP confundiu-se com a de outros - nomeadamente Saldanha Sanches! - que, porém, nunca virariam tão ostensivamente as costas aos valores e princípios anteriores.
Acontece que, depois de penar nas prisões do marcelismo e de ter liderado a tentativa de criar uma justiça revolucionária, o autor de «Vidas Apócrifas» acabou por partir para uma bem sucedida carreira de burocrata europeu, que culminaria na sua nomeação para conselheiro especial de Durão Barroso.
Não admira, pois, que estas novelas, aglutinadas sob o título de «Vidas Apócrifas», sejam a sua confessada tentativa de abordar percursos biográficos excessivos como o reconhece num posfácio. Gente capaz de ir da glória à perdição, da existência burguesa ao manicómio, da santidade ao homicídio. Porque, porventura, na sua própria passagem da extrema-esquerda para a direita burocrática de Bruxelas,  Amadeu Lopes Sabino ter-se-á sentido, ele próprio apócrifo? Recordemos que sinónimos possíveis para este adjetivo são fingido, falsificado ou inautêntico. É assim que acompanhamos sucessivos personagens mais do que ambíguos.
Em «O Silêncio» um professor de Almada recorda o amigo morto em Aqaba depois de um brilhante percurso académico na América e de uma sucessão de casos amorosos com mulheres tão opostas como uma israelita ou uma palestiniana, enquanto perseguia o sonho impossível de identificar os vestígios da suposta língua primitiva de que teriam evoluído todas as que integram a Babel atual. Pelo meio há um escritor, o Gordo, que passa da medicina veterinária para a literatura a pretexto dos relatos das suas experiências na Guerra Colonial e converte-se num dos mais bem sucedidos nas letras lusas. Não me admiraria, que tivesse sido plasmado de um célebre invejoso, que nunca conseguirá curar-se de não ter sido ele a ganhar o Nobel.
E, porque a Guerra Civil de Espanha, ainda foi mítica para a geração dos que mal tinham deixado a adolescência na época da Revolução de Abril, outra das novelas tem a ver com esse período, evocando-se o extermínio operado pelos criminosos franquistas sobre todos quantos suspeitassem de serem rojos. Em «A Sibila de Badajoz» até um escrupuloso padre é forçado a dar um tiro de misericórdia num seu conhecido de Roma.
Em «A Nau Perfeitíssima» há algo de Conrad não só na personagem que Brando representara em «Apocalipse Now», mas sobretudo nos marinheiros de «The Shadow Line», quase enlouquecidos por dias a fio num mar espelhado e sem ponta de vento.
Em «O Lobo Eterno» arrisco a influência do Bergman de «O Sétimo Selo»: visitada pela morte que a quer levar, uma anciã pede alguns dias para comparecer no casamento do neto numa das capitais escandinavas. Julgava assim enganar o mafarrico, sem imaginar que ele a seguiria na sua viagem, reaparecendo-lhe na figura de um pintor apostado em indagar sete formas de preencher de branco as suas telas.
E em «O Violino» há a loucura de Baudelaire, a boémia desenfreada de Félicien Kops e o comedimento nem sempre bem sucedido do editor Auguste, que com eles formava um trio de amigos na cidade belga de Namur.
Cheguei à última página sem nunca me deixar entusiasmar pelo livro: há erudição e talento, mas nunca senti aquela vontade de adiar eventuais compromissos para desvendar estas histórias até ao fim.

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