terça-feira, janeiro 31, 2017

(C) O que pensam os animais?

Ao longo dos séculos a ciência reduziu o animal a um ser condicionado tendo por função a responta instintivamente a estímulos triviais. Não se lhe reconhecia inteligência nem emoções, porque o seu universo mental seria inexistente. Tratava-se de uma criatura com carne sangue, mas sem alma, nem consciência.
No século XVII Descartes defendeu a tese do animal-máquina, servil e silencioso, que ajudava o homem ao puxar a carroça, a diverti-lo,  a oferecer-lhe carne, mas que não pensava, não sentia nem sofria.
A grande inflexão a essa opinião - que quase chegaria aos nossos dias! - , ocorreu já neste século com evidências científicas a mostrarem-no como um ser que pensa. As novas técnicas, sobretudo na área da imagiologia, permitindo o estudo do sistema nervoso, confirmaram a semelhança dos nossos processos cognitivos com os dos animais.
Nestes anos mais recentes os cientistas concluíram que os animais - desde o polvo ao elefante, do cão à abelha, da lagosta ao golfinho - pensam, sentem, sonham e têm consciência, partilhando com os humanos as estruturas neuronais na origem desses processos. Hoje o estudo do comportamento animal é indissociável da compreensão da sua psicologia.
É certo que dificilmente chegaremos à identificação dos pensamentos mais íntimos de um animal. Mas convenhamos que a experiência mostra-nos como, quase sempre, é-nos tão difícil adivinhar o que pensa outro ser humano, quanto mais se temos, por exemplo, diante de nós um morcego ou um peixe de aquário. Mas interessa aos cientistas o aprofundamento do que se passa no cérebro dos animais para lhes tentar entender a estrutura do espaço mental, medir-lhe a atividade e captar-lhes os estados de alma.
À medida que se intensificar esse conhecimento os efeitos políticos serão significativos, tornando-se inaceitável o massacre anual de sessenta mil milhões de animais terrestres pela indústria alimentar, sujeitos a condições chocantes como tantos filmes existentes nas redes sociais testemunham.  O vegetarianismo, ou mesmo o veganismo, tenderão a estabelecer-se como sinónimo de comportamento civilizado para com os animais, que partilham connosco o planeta. Daqui a algumas décadas seremos vistos como bárbaros, sem nenhum respeito pela vida de outros seres vivos.
Se precisarmos de provas dessa tendência basta olharmos para o sucesso de partidos que dizem representar os animais ou as revistas que fazem capa com este tema, como sucedeu na «Science et Vie» do mês transato de onde foram recolhidas algumas destas informações.
Os animais tenderão a ser cada vez mais escutados na sociedade, na indústria, no ensino, nos laboratórios, nas tradições e até na moral. E a ciência, que tanto demorou a admitir-lhes o universo mental, tende a pôr-se na primeira linha para os escutar. Porque reconhece que têm, não só afetos, mas pensamentos.

(S) «Satyagraha» de Philip Glass

(S) Philip Glass joue Mad Rush

(S) No 80º aniversário de Philip Glass

Hoje Philip Glass faz oitenta nos! Um bom motivo para lhe ouvir a obra!



(DIM) Histórias de opressores e oprimidos na Coreia do Sul

Consoante o ponto de vista que adotem duas versões da mesma história podem traduzir interpretações ideologicamente antagónicas nas relações entre oprimidos e opressores. É isso que sobressai da comparação entre os filmes rodados com base na mesma história, com um intervalo de cinquenta anos, um em 1960 por Kim Ki-young e o outro em 2010 por Im Sang-soo. Em ambos a intriga baseia-se no triângulo amoroso entre um casal e a empregada contratada para as tarefas domésticas, agora que a patroa está grávida do terceiro filho.
A versão mais antiga é um retrato cruel e sofisticado sobre a violência social da época.
O protagonista era o senhor Kim, que dava lições de piano ao domicílio e numa fábrica. Uma aluna apresenta-lhe a potencial candidata à função de empregada do domicílio familiar.
Vendo-se sozinha com o patrão a contratada aproveita a ocasião para o seduzir e passar a controlar-lhe os dias. Desde o consumo dos cigarros até aos recados deixados no piano, ela vai conseguindo contornar subtilmente as restrições. A desenvoltura destrutiva não conhece limites depois de cair nas escadas e perder o filho com ele concebido. Passa a haver uma inversão de relações de força com ela a comandar e ele a submeter-se-lhe como timorato escravo.
Em vez de um policial aproximamo-nos das convenções do filme de terror em que assistimos à desagregação progressiva da família de classe média. Misturam-se elementos trágicos com satíricos, realismo social e com simbolismo, numa denúncia das nevroses de uma sociedade acossada pelas transgressões que a põem em causa.
Im Sang-soo decidiu revisitar a mesma intriga, dando-lhe outra perspetiva: enquanto Kim focalizava-se na degradação do equilíbrio de uma família da classe média, o sucessor transferiu o ponto de observação para a criada no imaculado interior de um casal de estetas. Ficam assim expostas as relações entre opressores e oprimidos na Coreia do Sul dos nossos dias.
Nesta versão Euny inicia funções de empregada doméstica em casa da família burguesa, que já conta com uma filha e está quase a acolher mais um par de gémeos. Uma noite cede ao assédio do patrão  e é denunciada pela governanta, que avisa a mãe da esposa traída.  Estão criadas as condições para a atmosfera elegante de um thriller, que a crítica muito incensou.
 

segunda-feira, janeiro 30, 2017

(S) Renée Fleming performs Hallelujah

(DL) Um equívoco reverendo

Apresso-me a concluir as obras colocadas prioritariamente na ordem de leitura para encetar a descoberta dos 14 contos  criados por Teolinda Gersão para o seu mais recente título publicado: «Prantos, Amores e Outros Desvios». Porque é assumida a denúncia da constante intenção dos fortes em esmagarem os fracos, tema que merece a melhor das atenções pela pertinência com que ele se apresenta no quotidiano.
Três contos têm sido enfatizados como os mais apelativos do livro. Num deles, «Jogo Bravo», a autora associa o futebol ao sexo no desvario, loucura, insatisfação e paixão, sem quase haver tempo para respirar, porque, acabado um jogo, logo outro está prestes a começar.
Há também a mulher que prefere viver enquanto sonha, refugiando-se o mais possível no sono como forma de se livrar do medo causado pela realidade.
Mas a estória mais referenciada é que revisita a relação equívoca entre Alice Liddell e o reverendo Dodgson que escreveu, sob o pseudónimo de Lewis Carroll, as viagens até ao país das maravilhas.
O debate sobre a suposta pedofilia do escritor, conhecido por procurar espetáculos, que lhe propiciassem a quase nudez de miúdas muito jovens, nunca será conclusivo, mas há quem acredite na veracidade dos que apostam nessa vertente criminosa.
Teolinda Gersão aproveita para ajustar as contas com uma história, que sempre detestou em criança, porque sombria e batoteira, mesmo nela encontrando críticas explicitas a muito do que caracterizava a sociedade vitoriana.

(DIM) O Rei deixou de dançar...

Se há filme onde é crime levar para a sala um grande balde de pipocas é «A Morte de Luís XIV» de Albert Serra. E, no entanto, foi isso que vivenciei com quem se sentou do outro lado da coxia e me causou óbvio incómodo.
Passado exclusivamente no quarto onde o nublado Rei Sol vai cedendo a acelerada gangrena, o filme é intimista, exigindo dos espectadores uma disponibilidade para a lentidão do estertor em causa. Daí que os menos disponíveis para a experiência fossem saindo a partir do meio do filme. Até porque, para além dos diálogos, quantas vezes apenas ciciados, a obra quase evita a banda sonora musical.
Se «Le Roi Danse», que Gerard Corbiau rodou em 2000, era sinónimo de exuberância, este é de absoluta soturnidade. A iluminação facultada pelos candelabros de velas é sombria e se, de início, o doente ainda ia conseguindo interagir com os cortesãos ou com os cães, a doença vai-o remetendo a progressivo silêncio e imobilidade, assistindo-se aos esforços dos médicos e dos padres para lhe garantirem, ora a salvação do corpo, ora a da alma.
Jean Pierre Léaud tem a grande interpretação, que toda a crítica unanimemente saúda. Quão longe estamos dos tempos em que, ainda adolescente, protagonizava «Les 400 Coups» de Truffaut. Passaram-se 58 anos e a comprovação do envelhecimento serve-nos de espelho para sentirmos o crepúsculo dos iluminados e irrepetíveis dias deixados para trás.
O que incomoda na proposta de Serra é que, tratando-se da morte de Luís XIV é a nossa que se pressente, porque há sempre o efeito de identificação com o personagem. E  inquieta-nos o sofrimento que comporta, a desolação por ficarem distantes os sons do que outrora nos entusiasmava (as festas, os concertos, etc) e agora nos é inacessível.
Não é só o Rei que deixa de dançar. Nós próprios sentimos aproximar-se o momento em que temos encontro com o Nada que se segue ao último suspiro.

(S) Mauro Durante, Marco Beasley, Guido Morini - Pizzica di san Vito

domingo, janeiro 29, 2017

(DIM) O mundo do Oeste e a questão do Ser e do Ter

Em «Westworld» - a série, não o filme! - o personagem interpretado por Anthony Hopkins conta a história de um galgo, habituado às corridas em que o punham a perseguir a réplica do coelho, e levado ao parque público pelos donos. Vendo-se de rédea solta põe-se a correr como um desalmado, assustando um gatito cujo instinto o leva a fugir. Claro que o galgo vai-lhe no encalço, apanha-o e mata-o.
Horrorizados com a cena, os donos vão agarrá-lo e sentem-no confuso, incapaz de compreender o que tinha acabado de fazer.
Está aqui uma metáfora curiosa sobre a vida. As nossas sociedades criam reflexos tão condicionados sobre quem manipula, que os atos gratuitos tornam-se banais, mesmo quando eivados da maior crueldade. Muitos crimes ou acidentes são o resultado do frenesim imposto pela lógica da competitividade, da produtividade do modelo económico com que asseguramos o sustento. Falta-nos tempo para refletir, para fruir ou simplesmente descontrair. Mas, mesmo no que se organiza com este último propósito, o efeito de catarse acaba por suscitar comportamentos de ódio como os perpetrados por quantos tomam os espetáculos desportivos em questão de vida ou de morte. O hooliganismo corresponde à libertação de tensões, que resultam das frustrações por não se fazer o que se gosta ou por não se ser querido como se precisaria.
Se filósofos da primeira metade do século XX realçaram a importância do Ser sobre o Ter, muitos dos pressupostos de que partiam tornaram-se pasto dos oportunistas da autoajuda, que nunca relacionam a imprescindibilidade de associar o autoaperfeiçoamento pessoal com o papel decisivo na alteração do tipo de sistema económico em que vivemos.
Se o capitalismo em geral, e o neoliberalismo em particular, nos quis transformar em galgos impelidos a esfalfarem-se o mais possível por objetivos apenas do interesse de quem os ali impôs, é ele quem deverá ser posto em causa, quando se trata de lutar contra o crescimento das depressões ou dos suicídios. Porque, a exemplo dos robôs dessa série, a consciência da condição de não se ser senão aquilo para que os têm formatado, nós somos bem mais o produto das circunstâncias de que falava Ortega y Gasset do que quem pressentimos no íntimo.
É nesse sentido que muitos filmes e séries, voluntariamente ou não (desconheço a intenção efetiva dos autores!), impelem-nos para a equação do nosso papel social em contraponto ao tal Eu, que tendemos a apagar na sua genuinidade. Porque ser ou não ser, continua a na ordem do dia, e não é neste modelo de organização social, que tendemos a encontrar a pretendida resposta…

(AV) Steve McCurry e o 11 de setembro

A primeira vez que dei atenção ao trabalho fotográfico de Steve McCurry foi na célebre capa da «National Geographic» com Charbat Gula, uma adolescente afegã de olhos claros, que ilustrava, na sua tristeza, a triste sorte dos que se viam refugiados dentro do seu país por causa da guerra. Quando dezassete anos depois foi novamente procura-la, encontrou-a casada, precocemente envelhecida e ainda mais miserável do que a conhecera.
Essa imagem ilustrava bem o projeto do fotógrafo: mais do que o aspeto meramente estético da imagem colhida, interessa-o o lado ético, que é o desses rostos contarem as suas histórias, revelando o que mais no íntimo sentem. Por isso, muito embora tenha estado em inúmeros teatros de guerra, não o motivaram as imagens dos combates, mas os das populações civis obrigadas a saírem das casas e terras e a procurarem socorro imprevisível onde pudesse ser prestado.
Conhecido pelo recurso a cores vivas, interessou-se sobretudo pela Ásia e as suas perdidas civilizações do passado, bastante mais avançadas dos que as conhecidas na Europa, suas contemporâneas.. 
O seu modo de agir é simples: nunca recorrendo ao flash e raramente ao tripé, limita-se a ter a máquina a postos para captar os momentos únicos, que se lhe vão deparando. Foi isso que aconteceu na manhã de 11 de setembro de 2001, quando lhe telefonaram a alertar para a coluna de fumo, que saía de um dos prédios do World Trade Center.
Ele chegara na véspera a Nova Iorque, vindo do tranquilo Tibete, e não imaginava como o regresso a casa se anunciava tão turbulento. Da varanda da casa, na Washington Square, começou, de imediata, a construir o portfolio sobre um tema que, desde o primeiro instante, compreendeu ter uma dimensão excecional. Porque o que se lhe deparava punha-o na sensação dubitativa de ser ou não verdadeiro. Estaria num sonho, ou antes, num pesadelo?, perguntara-se quando, primeiro uma, depois a outra, viu as duas torres implodirem.
Nesse instante sentiu-se grato pela paralisia, que o prendera a esse ponto de observação em vez de acorrer rapidamente ao local devastado: tivesse correspondido a esse impulso e seria pulverizado, como aconteceu a quem estava perto demais quando a área circundante foi atingida por toneladas de cinzas e  restos das armaduras metálicas.
Quando se aproximou do Ground Zero, McCurry sentiu-se num cenário surreal. Havia um pó branco a cobrir tudo à mistura com papéis ainda a tombarem lentamente. A única coisa que consciencializou foi a profunda mudança expetável, quer na sua vida, quer na do mundo. Se a tentação era grande para ceder às emoções, a vertebra profissional instigava-o a manter a cabeça fria para melhor concretizar o trabalho.
Quando voltou para casa, já passava das nove da noite, mas não conseguiu dormir. Alta madrugada decidiu voltar para onde polícias, bombeiros e seguranças procuravam dar uma aparência de organização ao caos da área sinistrada. Acumulou imagens até dali ser expulso por quem já não aguentava mais com o que entendia como profanação do espaço tumular com o seu quê de sagrado.
As imagens obtidas nesses dias 11 e 12 de setembro tornar-se-iam icónicas, mas para McCurry também assumiam a importância de uma tragédia, que o perturbaria por muitos anos. Por isso, depois de as entregar à Times, não as quis ver durante vários anos até as utilizar num livro antológico para entender a dimensão histórica dos ataques terroristas... 

sábado, janeiro 28, 2017

(DIM) No meu caso prefiro esperar sentado

Não sou dos ando particularmente entusiasmado com o filme de Martin Scorcese sobre o martírio dos missionários cristãos no Japão do século XVII. Por um lado o realizador americano de origem italiana já conheceu melhores dias como criador de filmes e. por outro, enquanto ateu, pouco me interessa a utilização do cinema como veículo de proselitismo de quem já se confessou católico, perdeu a fé nos anos 70 e, agora que, aos 74 anos, a parte de cima da ampulheta está inquietantemente a esgotar-se, volta-se para ela com recuperada convicção.
Não tenho qualquer fé, pelo que os demais temas do filme - a dúvida, a graça, o pecado e a redenção - nada me dizem. Ainda que Scorcese não se tenha eximido de mostrar Rodrigues a contas com a interrogação sobre o silêncio de Deus, parece óbvia a incapacidade do padre em suportar um mundo em que ele se faça ausente.
Ora é clara para mim a convicção de que Deus não existe nem sequer faz cá falta. Até porque, no passado e no presente, é à sua conta que se têm repetido os mais abjetos genocídios.
O tema está presente desde muito cedo nos filmes de Scorcese: o protagonista de «Mean Streets» procura a via da santidade nas ruas de Nova Iorque. Em «Taxi Driver», Travis procura-se a si mesmo. Em «Raging Bull» está o tema da redenção, ou seja, a possibilidade de se ser outro depois de cometidos tantos erros.
Scorcese também procurou mudar em relação a quem era nas origens.  Porque, nascido no então aprazível bairro de Queens, o descalabro financeiro da família, obrigou-o a  mudar-se para o bairro italiano, quando tinha oito anos.  A Elizabeth Street correspondia a uma das áreas mais pobres da cidade onde o caos era uma constante.  A igreja tornou-se então o refúgio possível.
Porque só existiam duas alternativas - enveredar pela delinquência ou ir para o seminário - foi para a segunda que o jovem Martin se encaminhou a partir dos 14 anos.
Seis décadas depois e, apesar de só o ter frequentado durante dois ou três anos, Scorcese reconhece ter sido nesse seminário, que ganhou verticalidade no carácter. Cá fora aterrou de imediato no ambiente intelectual rendido à Nouvelle Vague francesa. De repente todos achavam ser muito fácil realizar filmes e surgiu, assim, toda uma geração, que ganharia prestígio na comunidade cinematográfica americana.
Agora, com «O Silêncio», Scorcese volta ao catolicismo com recuperado entusiasmo para nele «procurar a luz». Rodrigues é o assumido alter ego, que se confronta com um dilema: deve sacrificar vidas humanas em nome da fé ou salvá-las renunciando a tudo quanto acreditara? Deverá negar-se a si mesmo, mesmo com o risco de espezinhar a sua alma?
No desenlace Rodrigues recupera a mais profunda fé depois de a ela renunciar. Mesmo sabendo que a redenção nunca é alcançada por ser desafio quotidiano.
Nas entrevistas dadas na promoção do filme Scorcese lamenta que a espiritualidade tenha perdido importância na nossa sociedade consumista. Com «O Silêncio» procura contagiar quem está disponível para porfiar na procura de sentido para a vida. No meu caso prefiro esperar sentado...

sexta-feira, janeiro 27, 2017

(DL) Xerazade em África

Há alturas em que um escritor conhece inesperadas experiências reveladoras da imprevisibilidade de tudo quanto o rodeia. É o que se conclui da entrevista a Mia Couto, inserida na mais recente edição do «Jornal de Letras».
Segundo aí conta, numa sessão literária decorrida no Brasil, assistiu à apresentação do momento musical de uma sua compatriota chamada Chope. Ora, quem anda a ler a Trilogia «As Areias do Imperador» sabe ser esse o nome de uma das muitas etnias subjugadas pelos vátuas de Ngungunyane (sim, ele era o opressor de várias etnias locais!)
A iniciar a sua atuação, a rapariga contou uma lenda segundo a qual uma mulher fora aprisionada pelos guardas de Gungunhana e se salvara com estratagema semelhante ao de Xerazade: propôs-se cantar ininterruptamente para o seu carcereiro. Mas, sempre que concluía uma canção, dava dois passos à retaguarda antes de iniciar a seguinte.
Levados pela demonstração, que julgavam ter um cunho exclusivamente artístico, os guardas deixaram-na afastar-se o suficiente para ela lhes fugir e escapar assim à morte anunciada.
Ora, no espetáculo em honra de Mia Couto, a jovem cantora mimetizou esse mesmo comportamento: cada canção significou dois passos atrás no palco até dele desaparecer.
«Foi um momento mágico!» - concluiu o escritor moçambicano.

(DL) Pessoa, Sá Carneiro e os outros

As cartas supostamente escritas por Fernando Pessoa a Sá Carneiro, quando este se radicara em Paris em 1915  1916 - só interrompidas com o seu suicídio! - continuam a ser de uma inquestionável verosimilhança, mesmo que as saibamos criadas pelo saber e talento de Pedro Eiras.  Não faltam os […] a pressupor as partes ilegíveis desses textos, nem as gralhas, que o suposto editor teria encontrado sem se atrever a corrigir. E são constantes as referências à penúria de dinheiro sofrida por ambos, mas que seria forte explicação para o trágico desenlace do autor de «A Confissão de Lúcio».
Uma das novidades para mim, já que pouco mais dele sabia do que ter destruído toda a obra artística antes de morrer, é o execrável feitio de Santa Rita Pintor. Tido como vulto importante da geração futurista, Pessoa acusa-o de tentar subtrair aos seus legítimos criadores a influente «Orpheu» e, porque os sabia falidos demais para publicarem o terceiro número da revista, procurou substituir-se-lhes, não pelo altruísmo de lhes dar continuidade, mas pelo narcísico prazer de recolher para si os louros.
Ainda sem lhe concluir a leitura, o romance de Eiras  continua a dar-me um enorme prazer como seu leitor.

quinta-feira, janeiro 26, 2017

Esta noite no Cineclube Gandaia: «A Fera Amansada» de William Shakespeare

Eis-nos chegados ao fim do ciclo de filmes produzidos pela BBC para divulgar algumas das peças de William Shakespeare, e se começámos pelo fim - «A Tempestade» - optámos por concluir quase pelo princípio, ou seja por uma das suas comédias mais antigas, mas frequentemente levadas à cena nos palcos de todo o mundo e que muitos conheceram na versão de Franco Zeffirelli com Elizabeth Taylor e Richard Burton nos papéis principais.
É também daquelas obras, que mais cabelos em pé põem às feministas e lhes dão razão quando classificam o bardo inglês como tremendamente misógino. Aqui o que está em causa é a receita para melhor amansar as feras, ou seja as mulheres cujos caprichos e teimosias são tidas como passíveis de «domesticar».
Seja porque dispunha de tempo insuficiente para criar o texto tendo em conta o ritmo das apresentações das suas peças, seja por não sentir-se com desenvoltura bastante para tal, esta foi obra escrita com a colaboração de outro autor, cuja identidade se aponta ora para Thomas Lodge, ora para Robert Greene, ora para George Chapman, sem se chegar a qualquer conclusão. Mas quem a estudou mais aprofundadamente é unânime em que as partes da autoria de Shakespeare - o Prólogo e as cenas com Petrúnio e Catherine estão uns furos acima das do colaborador, que se responsabilizou pelas focalizadas em Bianca.
Há também quem lamente que o Prólogo não tivesse dado por si mesmo espaço para uma peça efetivamente autónoma, tão prometedora se mostra no tema da inversão das hierarquias, cujo potencial era enorme enquanto sinónimo de irreverência para com os cânones sociais de então.
Nessa estória, antes da principal, um nobre vem da caça com excelente disposição e decide pregar saborosa partida ao caldeireiro Sly, que encontra completamente embriagado à porta da albergaria.
Leva-o consigo para o castelo e, ao despertar, convence-o de ser um aristocrata há muito inconsciente devido a grave doença e finalmente regressado à realidade. É um atónito “convalescente”, que é convidado a presidir à récita de uma companhia de teatro ambulante, incumbida da representação de «A Fera Amansada».
Desaparecem tais personagens e eis-nos em Pádua onde a bela Bianca provoca suspiros de desejo em vários pretendentes. Mas o pai, Batista, impõe uma regra: só aceita casar a filha mais nova depois de despachada a mais velha, Catherina, conhecida pelos caprichos e teimosia.
Para contornarem a dificuldade, Hortênsio e Grémio convocam um amigo de Verona, Petruchio, que, completamente  falido, vê na suposta megera a forma de resolver as dificuldades com que se debate. Por isso atura-lhe os maiores desaforos, sempre a considerando encantadora. Nesse papel masculino reconhecemos John Cleese, na altura bastante envolvido na série «Monty Pithon’s Flying Circus».
O velho Batista fica feliz, quando pode, enfim, entregar a filha no altar ao assertivo noivo.  Mas, não tarda que Catherine se confronte com a duplicidade do hipócrita: já instalada na sua austera casa sofre-lhe as mais abomináveis afrontas e humilhações, vendo-se privada de comida, de sono e, até, dos seus elegantes vestidos. Cúmulo dos cúmulos tem de ouvir e repetir as expressões mais absurdas como se os raios solares fossem os da Lua ou estando-se de manhã, quando a tarde já ia avançada.
Lucêncio, um dos pretendentes, mais impetuosos e, ademais, contando com a colaboração de um escudeiro particularmente engenhoso (Trânio), consegue afastar os rivais, seja pela intriga mais soez - mas garantindo comicidade bastante para divertir o público! - seja atirando-os para os braços de outras candidatas. Hortênsio vê-se assim comprometido com uma viúva igualmente apelativa nos encantos.
A peça conclui-se com um banquete a juntar todos os nubentes e em que Petruchio ganha a aposta quanto a quem possui esposa mais obediente. É essa a “mensagem” da farsa, a tal que exasperará gerações de defensoras dos direitos das mulheres: todas as esposas devem mostrar submissão para com os seus maridos! 

(DL) Em torno de «A Gorda» de Isabela Figueiredo

John Banville conta uma joke com piada sobre dois homens que se conhecem numa festa. Um deles pergunta ao outro:
- Qual é a sua profissão?
- Sou escritor!
O que perguntara pensa por um momento e depois comenta:
- Quando me reformar também vou escrever umas coisas!
É então a vez do escritor se mostrar curioso:
- E a sua profissão, qual é?
- Sou neurocirurgião!
- Tem piada! - responde o interlocutor - quando me reformar conto operar umas quantas cabeças!
A história é eloquente na demonstração do pouco crédito dado por alguns ao duro ofício da escrita. Como se fosse fácil sentar-se à frente da folha em branco e criar mundos, que nos façam sonhar, refletir, conhecer ou indignar.
Não é que seja atividade rentável: se para sobreviverem estivessem á espera dos 10%, que ganham com cada exemplar vendido pelo editor ao livreiro, bem poderiam contar com morte certa à fome. Mas a verdade é que há muita gente a escrever. Zeferino Coelho, editor da Caminho, é disso testemunha: se anualmente são publicados milhares de livros em Portugal, os que chegam aos editores, como propostas para publicação, dariam para multiplicar esse número muito significativamente.
Há, pois, imensos aprendizes de feiticeiro que passam o dia inteiro a trabalhar em empregos extenuantes e, chegados a casa ao fim do dia, em vez de descansarem, encontram realização nas páginas, que se vão somando umas às outras e a ganharem a dimensão do romance.
O que os leva a esse duro labor raramente reconhecido com a chegada as escaparates? Talvez a mesma razão que o violoncelista Yo-yo-ma tentou saber dos bosquímanos do Calaari a quem perguntou, porque passavam noites inteiras a cantarem e a dançarem. “Porque nos dá sentido à vida!”, foi a concludente resposta.
Tudo isto vem a propósito da excelente sessão da Associação Gandaia em que esteve em foco o romance «A Gorda» de Isabela Figueiredo.
Convidada pelo António Fonseca, que é o dedicado organizador das sessões mensais com alguns dos mais interessantes autores atuais de língua portuguesa, a escritora veio falar sobre as razões para se dedicar apaixonadamente à criação literária podendo, decerto, subscrever a explicação dos pigmeus do deserto. Com uma vida riquíssima em histórias para contar - as que viveu, presenciou ou lhe contaram, mormente noutras obras de arte de que se confessou assídua frequentadora - criou um romance, consensualmente reconhecido como talentoso e entusiasmante.
É uma falsa estreia no género porque, embora desconhecido dos potenciais leitores, houve bastante métier antes de aqui chegar. A musicalidade das frases, a construção habilíssima da estrutura narrativa e a densidade dos personagens, que são tudo menos estereótipos, fazem de «A Gorda» um dos grandes romances do ultimo ano.
Autêntico puzzle, que tanto se vai montando por um canto, como logo impele para outro, que depressa se deixa para trás para colocar mais umas peças ao meio, o romance reflete as inquietações com a passagem do tempo e as mudanças suscitadas nas pessoas que se amam ou de que se é amigo, e dos lugares, onde se foi alternadamente feliz ou infeliz.  Há amores e desamores, pessoas que chegam e outras que partem, depois de terem sido importantes durante um único verão, os que morrem e os que não chegam a nascer e a casa como personagem de corpo inteiro a servir de tronco de onde partem todas as ramificações para a recriação das várias fases da vida.
Saímos enriquecidos com a leitura do livro, mas o encontro com a escritora permitiu dar-lhe acrescido valor, porque, sem pedantices, criou um interventivo debate primeiro com o editor, o atrás citado Zeferino Coelho, que muito dinamizou a sessão com as explicações sobre os motivos para ter publicado o romance, e depois com o público, onde até houve quem tomasse a palavra, e expressasse o que o livro lhe suscitara, rompendo com o hábito de, por norma, entrar mudo e sair calado.
O que ganhamos com estas iniciativas da Gandaia é incomensurável. Até pode acontecer, que quem nunca se conhecera até aí, entre em diálogo franco à saída e dele emerja, por exemplo a história da razão porque os charutos Monte Cristo assim se chamam. E lá vem Alberto Manguel à colação para nos explicar, por interposto leitor, o hábito de haver quem nas plantações em Cuba se pusesse a ler romances em voz alta para tornar menos entediante o trabalho de ir enrolando as folhas de tabaco. E o entusiasmo dos operários pelo romance de Dumas foi tão avassalador, que decidiram assim lançar a marca do célebre personagem. 
São histórias assim que nos ajudam a contribuir, à nossa medida, para que o mundo se componha de mudança tomando sempre novas qualidades.