terça-feira, janeiro 31, 2006

ACIDENTES DE PERCURSO

Está, hoje, em causa este modelo de sociedade baseado numa filosofia ultra-liberal, que retira ao Estado quase todos os meios de intervenção, confiando na sagacidade equilibradora dos investimentos privados.
A velha crença num socialismo libertador, solidário e fraterno parece teoria há muito condenada pela História.
E, no entanto, a América Latina, de Norte a Sul, é varrida por sucessivas vitórias de candidatos de esquerda, como se os seus povos viessem a vingar-se dos efeitos terríveis das ditaduras dos anos 70.
Mas será essa orientação política bem sucedida, ou um efémero fluxo antes de ver seca a fonte que a alimentou? É uma questão, que encontrará resposta daqui a não muitos anos. Porque num processo revolucionário, como o empreendido na Venezuela pelo Presidente Chavez, só há duas soluções: vitória ou morte!
A vitória é possível, mas as dificuldades são imensas, se pensarmos em todo o ascendente do poderoso vizinho do norte. Aonde, porém, o Presidente está a contas com um fogo cerrado dos opositores, finalmente com meios de prova suficientes para denunciar as suas derivas totalitárias e os sinais de uma corrupção intensa fomentada pelos lobbistas.
Pessoalmente mantenho-me na convicção de que existem potencialidades na doutrina comunista, momentaneamente condenada pelos acontecimentos históricos mais recentes.
Se a queda do Muro de Berlim foi um indesmentível passo atrás, o fundamento em que a oposição dos seus regimes assentou - o de eleições pluripartidárias e livres - encontra agora uma surpreendente reviravolta com a vitória do Hamas na Palestina. Repetindo-se o já ocorrido há alguns anos na Argélia: para o Ocidente há eleições democráticas e eleições democráticas.
Na maioria dos casos, a sua influência precipita a vitória dos seus preferidos (e isso ainda há pouco sucedeu na Ucrânia ou na Geórgia). Mas, quando ganham aqueles com quem o Ocidente nunca desejaria contactar, a democracia acaba por revelar-se um regime com muitas limitações.
É assim, que se desmascara por si mesma a hipocrisia dos regimes ocidentais. Que semeiam ventos, de que resultarão futuras tempestades…
Uma sociedade diferente e mais justa pode ser construída. SE assente na racionalidade de uma divisão mais justa dos lucros decorrentes da actividade económica...

domingo, janeiro 29, 2006

DESFRUTAR AINDA A LENTIDÃO DO TEMPO

Jean Échenoz é um dos escritores franceses mais interessantes de entre os que regularmente vão publicando os seus livros de testemunho deste tempo de mudança. Ora, mudanças é o que ele ainda só pressentiu nas margens do Mékong foi a possibilidade ainda desfrutar a lentidão do tempo nesse Laos, aonde o rio é crismado de «Mãe das Águas» e as mulheres protagonizam rituais nas margens, quando uma viagem por ele se prepara.
O elefante é o animal emblemático deste país. Está no escudo nacional, mas, principalmente se é branco, indicia prosperidade, boa sorte. Por isso é tão cobiçado, que quem um deles consegue capturar, encarrega-se de o esconder num refúgio seguro, aonde esteja a coberto de algum roubo.
Se existem mudanças, elas são particularmente notórias nos «spreed boats», ou seja lanchas a motor, extremamente velozes, que levam, meia dúzia de passageiros sem disponibilidade para apreciar o desfile de pessoas e paisagens ao ritmo dos barcos mais tradicionais.
O rio fertiliza os arrozais enche de peixe as redes. Por isso camponeses e pescadores vão alternando enquanto o barco, que transporta o narrador, prossegue a sua rota com um carregamento de que foi incumbido. Mas a alimentação não se limita ao arroz ou ao peixe. Tudo quanto se mexa é para comer, sejam ratos, macacos ou morcegos. Nalguns casos, referem-se as virtudes benfazejas de alguns órgãos mastigados no aumento da potência sexual.
À noite os barcos param na margem para prosseguirem caminho ao dealbar do dia. Às vezes a Lua eclipsa-se. Fazendo crescer a inquietação destas populações que temem vê-la tragada em definitivo pela Grande Noite.
Perto da antiga capital - Luang Prabang - os monges budistas recebem arroz nas suas malgas, distribuídas por mulheres apostadas em conquistar os bons auspícios dos seus deuses. São eles quem dá vida aos pagodes e aos templos, que rodeiam o antigo e esplendoroso palácio real.
Vencida essa etapa o rio torna-se demasiado turbulento com os seus rápidos, que se julga constituírem morada de caprichosos génios. Ou da garimpagem do leito do rio aonde as jovens camponesas procuram ouro com os seus coadouros. Mas as poucas gramas assim obtidas à custa de intenso labor, terão vindo do rio em si ou das embarcações que, todos os anos se afundam a montante? Uma pergunta que fica em aberto…
O rio é tão perigoso, que as famílias vêm anualmente a umas grutas a juzante de Luang Prabang para entregarem as suas oferendas aos sacerdotes. Que encenam os conhecidíssimos ciclos de reencarnação, procurando vir a habitar o corpo de um bicho bem menos sujeito a agressões ou de extermínio.
Hoje, à beira rio, as raparigas continuam a banhar-se , enquanto vão passando os barcos com mercadorias para a China ou para o Vietname. Muitas vezes pilotados por marido e mulher…
Quando os acidentes levam estas frágeis barcaças é comum a crença de que as mulheres afogadas transforma-se em pássaros, enquanto os homens adoptam a personalidade de um golfinho. Que, por este motivo, não são há muito incomodados...

quinta-feira, janeiro 26, 2006

RECORDAR FALKENAU


Impressionante o documentário de Emil Weiss sobre o filme rodado por Samuel Fuller no campo de concentração de Falkenau no dia 9 de Maio de 1945.
É o próprio realizador norte-americano, já desaparecido em 1997, quem faz o relato em off das imagens por si então colhidas com uma câmara de amador.
Nos dias anteriores ele participara naquele que terá sido o último combate da II Guerra Mundial. Ocorrido nos Sudetas, exactamente no mesmo local, aonde sete ou oito anos antes, Neville Chamberlain proclamara ao mundo, que a paz estava garantida… Como se a História fosse caprichosa e destinasse o epílogo de uma tragédia ao local aonde ela se iniciara…
Uma tragédia, cuja dimensão mais terrível traduzida nos cadáveres abandonados à pressa pelos muitos campos de concentração, já começava a ser negada pelos que insistiam em encontrar explicações para a loucura criminosa de Hitler e dos seus comparsas.
Precisamente ali, em Falkenau, os notáveis da cidade atreveram-se a negar essa evidência ao capitão Richmond dessa mítica divisão Big Red One, que protagonizara esse derradeiro combate.
Foi esse militar, que instou o jovem Samuel a filmar o que se seguiria: esses notáveis foram «convidados» a retirarem os cadáveres esqueléticos das vítimas mais recentes dos crimes ali praticados ao lado das suas casa burguesas, a vesti-los, a alinhá-los por cima de lençóis brancos e, enfim, a enterrá-los numa vala comum. Depois de os transportarem pelas ruas quase desérticas de uma cidade envergonhadamente refugiada na ostensiva indiferença a um cortejo, que a acusava de cumplicidade passiva ou activa com os criminosos...

terça-feira, janeiro 24, 2006

REMOTO PASSADO

Já remoto passado parece a eleição de Cavaco Silva para Presidente da República. E, no entanto, só foi ontem…
No emprego ainda houve quem aludisse ao meu eventual desagrado com o resultado, mas a minha reacção cortou qualquer hipótese de prolongar esse desconforto:
- Quase nos cinquenta anos já vivi o suficiente para perceber que às derrotas de hoje se sucedem as vitórias de amanhã e vice-versa!
Essa relativização de algo que, ainda há pouco tempo, me causaria tamanha instabilidade emocional é outro dos ganhos desta maturidade conferida pelas rugas, que se vão acentuando no rosto…
Mas é óbvio o meu contentamento com as vitórias de Michelle Bachelet no Chile ou de Evo Morales na Bolívia. Ou o regresso de Lula da Silva à liderança das sondagens. Quando é a esquerda a vencedora iludo-me com a possibilidade de estarmos no limiar de uma sociedade mais justa e fraterna. Porém, as reportagens sobre as pessoas que votaram no novo Presidente elucidam-nos bem de como esse limiar é uma meta bastante distante. Quer numa aldeia em que os 61 eleitores deram 100% a Cavaco, quer em Grândola aonde há quem se mostre indigno do símbolo representado por tal burgo, os alegres apoiantes do vencedor revelam-se velhos em idade e em ideias, iletrados e boçais. Sem qualquer semelhança com essa gente de qualidade, que surge normalmente associada às candidaturas de esquerda, sejam elas mais intelectuais como no caso dos socialistas ou dos bloquistas, ou mais genuinamente populares no caso dos comunistas.
A vitória de Cavaco não vai significar nenhum drama, mas é o Portugal mais avesso aos caminhos da História, que acaba de pôr em Belém um político em quem é difícil reconhecer convincentes qualidades...

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Uma rapariga santa?

Há objectos assim: como que vindos de outros planetas e a aterrarem no nosso para surpreenderem, para nos confrontarem com as nossas rotinas, as nossas certezas.
«La Niña Santa» é um filme argentino realizado por Lucrécia Martel, mas igualmente com os Almodovares no genérico a título de produtores executivos. Mas a forma como aborda os temas concebidos pela sua criadora nada têm a ver com um cinema europeu e, muito menos, norte-americano.
A história é simples: num hotel termal da província v0lta a reunir-se um Congresso de Medicina, que leva até aí umas dezenas de participantes.
Um deles é o dr. Jano, que vive angustiado entre os seus desejos e a imagem social. Os primeiros dedica-os a uma rapariga adolescente, que surpreende no espectáculo de rua de um músico capaz de fazer sair sons dos seus movimentos e de um sintetizador electrónico. È no meio da multidão de espectadores, que ele aproveita para se encostar a Amália e a excitar-se com essa presença do seu traseiro encostado ao seu sexo. Sem saber que ela é a filha da dona do hotel, essa Helena despeitada por saber o ex-marido em vias de ser pai de dois gémeos e ansiosa por encontrar uma nova relação afectiva, que a retire do seu vazio sentimental.
Há, pois, um triângulo amoroso, que se esboça entre mãe e filha e esse homem de meia-idade, que vem de fora.
E as contradições de cada um deles: se o médico foge de Amália, quando ela o assedia, a rapariga vive a rebeldia para com uma religião católica quase fundamentalista, que procura assimilar nos rituais sem lhe conseguir corresponder nos preceitos.
A sociedade argentina tal qual surge aqui representada é surpreendente: cheia de preconceitos relacionados com essa influencia clerical, mas a rebentar por todas as costuras desse espartilho de aparências. O hotel termal é, a esse título, um microcosmos elucidativo quanto a essa revolução de valores e de costumes: por muito que uma funcionária passe o tempo a desinfectar os quartos e os salões ou uma promotora de uma empresa farmacêutica seja despedida por passar a noite com um dos médicos organizadores do Congresso, há um desejo omnipresente em quase todos os personagens: até na cozinheira, que foge da cozinha para aproveitar a sua função de fisioterapeuta para contactar com a pele dos que a ela recorrem para massagens. Ou a melhor amiga de Amália e sus condiscípula no colégio religioso, que não hesita em se deixar sodomizar pelo primo sempre que tem oportunidade, apesar de decidida a preservar a virgindade até ao casamento. Uma outra forma de demonstrar como, à falta de poderem assumir o desejo pelo sexo do outro e arcarem com as consequências - a gravidez - os personagens optam por opções de substituição.
Inteligente, e a contra-corrente de um cinema imaturo, feito para adolescentes, o filme de Lucrécia Martel opta por um final em aberto: apesar de estar iminente o desmascaramento da perversão de Jano, o filme acaba antes disso acontecer. Permitindo-nos todas as possibilidades de recriação deste universo e do que ele evoluirá a partir daí. Porque em sociedade tão condicionada é pela via do escândalo, que ela pode ver estilhaçados todos os seus fundamentos reaccionários. Libertando quem nela se frustrava para horizontes bem mais abertos…
Mas comecei por comparar este objecto a um autêntico alien. Porque, em aparência, todo este ambiente já nos parece tão distante: o salto dado em Portugal nos últimos trinta anos foi de tal monta, que muitos destes espartilhos parecem longe de nós. A revolução sexual parece instalada desde que a vitória de quem defendia o divórcio contra a regra do casamento para toda a vida passou a possibilitar que o amor passasse a ser eterno … apenas enquanto durasse.
E veio depois a condenação social de quem insiste em criminalizar a prática do aborto, ou o progressivo respeito pelos direitos à diferença de lésbicas ou de homossexuais.
Mas as histórias de pedofilia e de outras agressões contra as crianças mostram que existe ainda um potencial muito grande de frustração sexual, que vitimiza os mais novos e desprotegidos.
O que «La Niña Santa» explicita é a incompatibilidade de uma igreja, que não seguiu a via imprevisível, mas prometedora do Concílio Vaticano II e decidiu retomar uma visão do mundo, que é a da sociedade campesina da época pré-industrial. Cavando, mais e mais, o abismo entre si e uma sociedade aonde o desejo de felicidade ainda se confunde fundamentalmente com a expressão mais física das emoções…
A Argentina de Lucrécia Martel não estará muito distante de um certo Portugal, que conhecemos nas nossas infâncias. Quando a Igreja do Monte ainda se enchia para a missa de Domingo e os desejos refreados dos que nela se recolhiam eram expressados em histórias de bruxedos e de possessões demoníacas.
A imagem final - aquela em que as duas amigas flutuam na piscina - é por si mesma eloquente quanto à mensagem final do filme: as adolescentes alheiam-se dos dramas dos adultos de cujas teatralidades só lhes chegam os ecos e mantém-se à superfície, expostas de frente para o futuro e não de costas como os medos e preconceitos ligados ao passado as terão até ali imposto.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

A DIFERENÇA ENTRE O ESTEREOTIPO E A CRIATIVIDADE

O «Público» designou «Million Dollar Baby» como o melhor filme do ano. Uma oportunidade para identificar os seus leitores com uma entrevista dada por Clint Eastwood a Peter Bogdanovitch. Que recorda o que, já em 1968, Don Siegel dizia a propósito daquele que se tornou num dos principais realizadores norte-americanos dos nossos dias: «Clint Eastwood tem uma fixação no anti-herói. É o seu credo na vida e em todos os filmes que fez até agora insiste em ser o anti-herói. Nunca trabalhei com um actor menos preocupado com a sua imagem».
Ao seu entrevistador, Clint Eastwood conta como alcançou o aspecto visual do seu premiadíssimo filme: «Disse ao director de fotografia, Tom Stern: ‘Vamos tratar deste filme como se fosse a preto-e-branco. Se tivesse coragem filmaríamos a preto-e-branco.’ Falámos de sombras e então o que fiz, quando acabámos, foi garantir que o laboratório dessaturava a cor até ao limite. Retirei a cor, especialmente para o terceiro acto, quando vamos para o hospital, as paredes brancas, os lençóis, a nudez. Queria um ‘look’ dos anos 40. Disse ao responsável pelo guarda-roupa: ‘Vamos filmar isto como se fosse a preto-e-branco, não quero o ‘Feiticeiro de Oz’, quero que a cor seja imperceptível.»
O filme de Clint Eastwood foi um dos que, independentemente, das suas qualidades, não conseguiu evitar o decréscimo progressivo do número de espectadores nas salas de cinema: 2005 foi um ano de grande crise na indústria cinematográfica e no seu sector de exibição em particular. Os problemas agora evidentes nas salas do Paulo Branco são reflexo dessa crise.
Sobre ela escreve João Mário Grilo no mesmo «Público»:
«A questão do cinema como experiência de continuidade pode estar em risco. Hoje os norte-americanos já trabalham para filmes que integram dentro de si essa rotina de tempos fortes e tempos fracos. Ninguém aguenta uma hora e meia de montanha-russa, é preciso que ela suba e depois desça, e os filmes têm essa lógica onde há momentos em que se pode largar um pouco a atenção. O ‘King Kong’, desse ponto de vista, é um filme exemplar. Tem os intervalos metidos lá dentro: dez minutos de grande espectáculo, depois um intervalo - e esse intervalo não é um intervalo em concreto, é a parte mais humana da história, onde uma pessoa pode sair para ir comprar água, pipocas e regressar para dentro do cinema. E por aí adiante.
As coisas estão a avançar mais depressa do que as pessoas estão a ser capazes de digerir. O cinema foi a arte que mais mudou em menos tempo. E nenhuma outra arte experimentou isso.»
«Odete», filme de João Pedro Rodrigues, agora igualmente em Lisboa, não tem, por certo, essas tácticas de manipulação dos seus espectadores. Basta ler o que diz o realizador em entrevista ao mesmo jornal:
«Eu gosto do lado do cinema de observar, vem da ornitologia - a minha formação é de biologia e eu queria estudar ornitologia quando era mais novo. Por um lado, ver o tempo que demora a acção; o que tento captar sempre em cada cena e em cada emoção é o momento-chave… Gosto de filmes que nos dão a ver , por exemplo, como é que o corpo se mexe num determinado espaço. Um filme também é isso: como é que um actor vai do ponto A ao ponto B e como é que esse percurso pode ser mais ou menos interessante, contando determinadas coisas, exprimindo uma determinada emoção. Tento que haja sempre em cada plano e de um plano para o outro, uma tensão, que se passem coisas. Podem ser pequenas coisas, ínfimas, mas que sejam interessantes. (…) Para mim, os meus filmes não são uma seca. Porque acho que há uma tensão que pode estar na lentidão e não na velocidade. A coisa mais difícil no cinema é o ritmo - - as pessoas estão habituadas a ver num minuto trinta planos, em que o ritmo é dado pela montagem, e eu acho que o ritmo não é dado pela montagem. É dado pela tensão interna de cada plano, ou pela que cria com o seguinte ou com o anterior. Tento sempre ir no sentido de uma simplicidade: ter uma ideia e tentar encontrar o cerne dessa ideia, de uma maneira simples, mas que talvez não seja óbvia.»
Quem, no ano transacto, foi premiado por uma atitude de rejeição das ideias dominantes foi Harold Pinter, o drmaturgo inglês, que ganhou o Nobel. E que, desassombrado, acusou Bush e Blair de serem criminosos. «Deviam ser julgados no Tribunal Penal Internacional» pela invasão do Iraque. «Mas Bush foi esperto. Não ratificou o Tribunal Penal Internacional.»
Sobre ele escreve-se, ainda, no mesmo «Público»:
«Aos 75 anos, debilitado fisicamente por um cancro, mas com a vitalidade mental bem acesa, o dramaturgo inglês falou do seu teatro político dizendo que a objectividade era essencial, acusou os políticos de não estarem interessados na verdade mas na manutenção do poder e atacou como nunca a política externa norte-americana: ‘Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras militares de direita do mundo depois da II Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, claro, Chile (…) Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, viciosos, sem remorsos, mas muito poucas pessoas falam deles. (…) Exerceram no mundo um tipo de manipulação clínica do poder, disfarçado como uma força do bem universal. É um acto de hipnose brilhante, até perspicaz, muito bem sucedido’».
De outra forma de crime imperialista fala o realizador austríaco, Hubert Sauper, cujo documentário «O pesadelo de Darwin» substituiu «Aurora» no Nimas. Um filme aonde se demonstra uma tese muito forte: «É incrível como seja lá onde for que sejam descobertas matérias-primas os habitantes locais morram na miséria, os seus filhos se tornem soldados e as suas filhas prostitutas.»
Talvez por tudo isto, a fadista Aldina Duarte, que lança agora mais um disco, escolhe muito bem o pequeno núcleo de pessoas com quem se identifica. «São pessoas que numa época de grande barulho arriscam fazer coisas de grande intimidade - é uma forma de nos humanizar.». Ela diz que procura gente assim - tipo Tom Waits - porque lhe «faz confusão viver num mundo em que ninguém nos faz pensar».
O que essa gente faz «é uma espécie de alerta, algo que vai contra a maré».
De Clint Eastwood até à ex-mulher de Camané passámos pelo discurso de muita gente que continua a prezar um mundo às avessas das ideias estabelecidas. Seja pela estética - no caso daquele realizador norte-americano ou do de «Odete» - seja pelas ideias - no caso de Pinter - é reconfortante sentir que continua a haver quem resista, quem teime em mudar o que parece tão cristalizado, tão estagnado. Mas se, como demonstrava Galileu, até a Terra se move, muito mais se movem os homens, que nela continuam apostados em descobrir os caminhos da sua felicidade.