quinta-feira, dezembro 29, 2005

UMA QUESTÃO DE MANIPULAÇÃO...

Num comentário a um dos posts, inserido no meu Blog, a G. coloca a questão de existir manipulação nas imagens, que nos precipitam para a compaixão para com as vítimas do tsunami em detrimento das desprezadas vítimas do Paquistão ou da Cachemira.
E é claro, que devemos reconhecê-lo: todas as imagens, sejam elas quais forem, carregam em si o estigma de uma manipulação. Porque nunca são objectivas nem, na maioria, inocentes. Elas transportam, implícitas, o ponto de vista de quem as captou, as montou, as realizou.
Seres permeáveis a todas as mensagens que nos rodeiam, podemos assumir uma certa proactividade, que nos permita ser manipulados pelas que mais nos convenham: quando compro o jornal A em vez do jornal B, quando prefiro parar o zapping no canal C em vez do canal D ou quando opto pelo filme E do cinema F em vez do filme G do cinema H, estou sempre a optar por entre as diversas manipulações com que me procuram condicionar num ou noutro sentido.
É por isso que a questão da propriedade dos meios de comunicação é muito mais relevante do que cingi-la à mera discussão da liberdade de expressão. Em Itália, por exemplo, há em aparência o respeito por esse pressuposto embora a realidade, condicionada pelo poder exagerado de Berlusconi nas televisões e nos jornais, seja bem diversa. Dirão alguns que isso não impedirá a sua previsível derrota nas próximas eleições mas, a acontecer, ela não se medirá na sua mais adequada dimensão quanto aos méritos ou deméritos das propostas políticas colocadas aos eleitores. Apesar de muito negativa para a ampla maioria dos eleitores, a lista comandada pelo cavalieri é capaz de ser derrotada por uma margem muito inferior à merecida…
É possível estabelecer um paralelo com o que se passará com as eleições presidenciais do próximo mês: foram os jornais e as televisões dominadas por quem detém o poder económico e pretende colher maiores dividendos do parcelamento da riqueza nacional, quem incensou um político medíocre, cuja governação foi um fiasco apenas escamoteado pelos então lautos subsídios comunitários, e que agora se apresenta como salvador da pátria.
Uma clássica operação de manipulação para vender gato por lebre. E que assusta os próprios infractores: depois de escorregar com a óbvia intromissão na área de intervenção do Governo ao propor um secretário de Estado para tomar conta do capital estrangeiro, ele foi obrigado a despir a máscara de quem nunca tem dúvidas e raramente se engana. E a dar o dito por não dito numa atitude muito pouco presidenciável…
Por isso há quem tema o que se irá passar nas próximas semanas, como se detecta nalguns colunistas dos jornais económicos mais relacionados com esse poder económico, que nele aposta para «temperar» as preocupações sociais do Governo: e quem admita a possibilidade de ver esfumar-se este favoritismo inquestionável se José Sócrates entrar em força na campanha…
A eventual divulgação da imagem de um político em ascensão - cuja determinação e sentido de Estado estão a produzir resultados, mesmo contra as egoísticas reivindicações das diversas corporações - ao lado do candidato Mário Soares poderá criar o efeito manipulador pretendido por quem se assume de esquerda. E virar por completo a relação de forças entre as várias alternativas surgidas nestas eleições...

quarta-feira, dezembro 28, 2005

ELEFANTES NO RIO DE AREIA

Um documentário, que marca o dia é o da BBC sobre os elefantes da Namíbia. Porque se a vida é difícil para tantos povos e animais nas mais diversas latitudes, os elefantes do deserto da Namíbia sobrevivem em condições extremas.
Durante anos é capaz de não chover, reduzindo o leito do Rio de Areia, aí existente, a uma paisagem de pedras e de terra cinzenta rodeada pela cor marciana das montanhas adjacentes.
A morte não é difícil de encontrar por estes lados: bastará a opção errada por um trilho, que conduz a coisa nenhuma, para mãe e cria se verem condenadas.
Ademais as viagens destes nómadas sob o sol inclemente são a única solução para o facto de existirem poços de água num local e vegetação comestível noutro muito distante.
Ainda se os seus estômagos tivessem a capacidade do dos rinocerontes, que tudo devoram, mesmo as plantas carregadas de veneno! Mas não: o desafio da sobrevivência cria engenhos, que não são assim tão alargados…
Vale o facto de, quando a situação parece mais desesperada, a chuva cair e transformar em leitos caudalosos o caminho de pedras do dia anterior. Mas é uma água efémera, porque a terra sequiosa bebe-a voraz. Só dando tempo a que as sementes, em hibernação há muitos meses, criem breves campos floridos.
Ao ver essas imagens cabe perguntar quais os efeitos do aquecimento global do planeta na alteração dos ecossistemas mais inóspitos. Apesar de terem vida distribuída por todos os seus cantos, a subida de um grau centígrado poderá causar um morticínio de que nem sequer tomemos imediata consciência… E, então os cem rinocerontes da região, os não muitos mais elefantes, os chacais, os palhaços do deserto (lagartos, que executam uma dança singular para não sobreaquecerem as patas), as gazelas e outros animais aí ainda livres, poderão ser contabilizados à conta das espécies extintas.

terça-feira, dezembro 27, 2005

UM ANO DEPOIS DO TSUNAMI

Passado um ano sobre o tsunami, que varreu as costas do Sudoeste Asiático, as televisões foram pródigas em imagens sobre essa devastação.
Na maioria já as conhecíamos, mas há sempre uma certa atracção mórbida por revê-las, ao constituírem uma forma de exorcizarmos o nosso medo da morte, as nossas próprias inseguranças perante tudo quanto nos ultrapassa...
Estamos, de facto, num tempo de contínua obsessão com tantas fragilidades íntimas. Longe, muito longe, vai o passado em que nos acreditávamos invencíveis, irresistíveis, imortais. Em que os nossos desejos pareciam transformar-se em realidades.
Não foi assim. Crescemos, amadurecemos e encontrámo-nos reduzidos à dimensão de meros peões num xadrez planetário, aonde os reis e as rainhas é quem mandam…
E sentimos crescer o medo de sofrer.
Quando vemos o sucedido com este tipo de catástrofes, impressiona-nos a pequenez do homem perante a força dos elementos. Que se revelam cada vez mais mediáticas nas suas expressões diversas.
Inundações com as de Nova Orleães ou terramotos como o da Cachemira, só vieram confirmar que, em matéria de cataclismos, não há fronteiras humanas bem definidas: quer os países ricos, quer os mais pobres, são espaço privilegiado para as explosões de um planeta, que aposta em confundir as mais primárias explicações metafísicas.
Somos, pois, pequenos demais neste planeta de que somos hóspedes quase sempre abusadores dos seus equilíbrios.
Não adianta invocar um qualquer deus, nem acreditar no facto de serem coisas que acontecem só aos outros. Por que pode suceder-nos, quando menos esperamos.
Daí a questão natural: o que faria eu se estivesse ali?
É também por isso que revisitamos estas imagens: com elas acaba-se sempre por se aprender algo de possível, mesmo que remota, utilidade num futuro indefinido: por exemplo, como se detecta um tsunami através da perturbação dos animais ou do recuo das águas até para além da linha da maré baixa. Ou de como muitas mortes teriam sido evitáveis se, passada a primeira onda, a curiosidade não tivesse impelido para a praia muitos dos que a ela tinham sobrevivido. Um erro, que estivera, aliás, na origem de muitas das mortes do terramoto de 1755…

MOZART: O ARTISTA COMO SIMULADOR

No conjunto de textos sobre Mozart, que o «Nouvel Observateur» publica, o de Jacques Drillon é, não só o primeiro como um dos que melhor situa a personalidade do criador sem cuidar dos seus momentos cronológicos. O texto, que se segue é uma montagem dos trechos mais significativos desse artigo:

“O pai, Leopold, ensinou-lhe tudo. Por exemplo que o mundo é governado pelos ricos, que o dinheiro dá poder, mas não inteligência, nem talento; que é preciso admitir com o torcionário católico e romano, que a Terra não roda em torno do Sol, e a sorrir à marquesa analfabeta.
Mozart não leu nada, mas aprendeu tudo. Há pessoas assim. Talvez ele tenha aprendido isso tudo através da música? A música traz e recebe, abandona e conserva. Em troca do muito, que ela lhe ensinou, Mozart muito terá ensinado à musica.
A educação, que o pai lhe transmite tem um fundamento elementar: é preciso ser rico; para ser rico, quando se nasceu pobre, é preciso ganhar dinheiro; para ganhar dinheiro (sem o roubar) é preciso ter de que vender; para ter de que vender, é preciso ter feito algo; para ter feito algo é preciso saber fazê-lo; em suma: ao trabalho.
O estado natural de um objecto é o repouso, a estabilidade. Um lápis pousado sobre uma mesa; a mão de um homem, pelo esforço que ele efectua, mantém seguro o lápis num equilíbrio artificial. Depois, larga-o. O lápis procura a sua posição própria de equilíbrio, como se a desejasse. É assim, que o objecto vai variando de repouso em repouso, como o Sol vai do crepúsculo matinal ao crepúsculo do fim da tarde, confundindo-se numa única imagem, arroxeada, lânguida e plana. A melodia mozartiana é assim: descontraída, tensa, descontraída. Quase sempre tem a forma geral de um sino, que se eleva e volta a cair, como a luz da «Jovem Rapariga do Turbante» de Vermeer. Mozart segue à letra a curva dos fenómenos naturais: repouso, desejo, prazer, repouso; nascimento, vida, morte, e assim sucessivamente.
Amamos Mozart, que sentiu, mais do que reflectiu, parque o seu verde é o da erva, o seu azul é o do céu, e o seu perfil o das montanhas.
Se nunca se conseguiu explicar Mozart é porque se procurou a solução do seu génio pelo lado das suas qualidades. Pareceria lógico fazê-lo. Mas talvez fosse preferível procurá-lo pelo outro lado. O da sombra, aonde se escondem os vícios, os defeitos, as cobardias.
Como o homem de negócios contorna a lei em seu proveito, aparentando respeitá-la, Mozart torneia a lei paterna. A palavra ‘encomenda’, que, em francês, significa tanto a ordem de compra, como a obra encomendada, parece ter sido fabricada para ele. Em Mozart tudo é sabotado. Porque o Outro é o maior obstáculo, aquele que deverá ser enganado, rodeado. Então Mozart faz de conta que respeita a encomenda, mas subverte-a. Os instrumentos, os cantores, os chefes de orquestra, sabem que, nele, a simetria só é fachada. Tudo é curto em demasia ou mais longo do que o exige a norma…
Mozart apresenta-se a uma luz, que não é a sua, faz o contrário do que diz, oculta a perspectiva. Depois, mostra, depois esconde, e cada confissão tem por preço um mistério.”

A EXTENSÃO ABUSIVA DA MEMÓRIA

Jacques Julliard, na mesma revista, aborda os «venenos da memória». E trata a história de uma forma mais aprofundada, sem qualquer concessão à facilidade dos exemplos primários. Ele constata que “a história não é a moral. A projecção das normas éticas do presente sobre os acontecimentos passados é uma insensatez histórica, uma regressão intelectual, uma aberração científica, directamente proveniente do ‘politicamente correcto’ em voga em certas universidades americanas.”
O que vem a propósito, quando está a pretender-se empolar o êxito literário de um romance sobre Mao Zedong, apresentado como um ser execrável, todo caracterizado pelos piores defeitos, sem sequer dele se considerar a habilidade e a inteligência para mudar o mundo de uma forma tão significativa. Porque, seja a seu respeito, seja sobre outros casos lapidares como Staline ou Fidel de Castro, analisa-se um tempo histórico pelo crivo dos valores e do contexto político e económico do presente. O que é uma verdadeira desonestidade intelectual.
Mas Julliard prossegue a sua dissertação sobre a relação entre os assuntos religiosos e os assuntos de Estado: “como dizia Péguy, não basta fazer a separação entre a Igreja e o Estado; é preciso fazer igualmente a separação entre a metafísica e o Estado, e mesmo entre a ciência e o Estado”. Tese que não é seguida por quem procura impor limites à investigação científica através de leis estatais fundamentadas em preconceitos religiosos…
Os preconceitos, que importa marginalizar, sob pena de pôr termo à desejável laicidade do Estado: “ a extensão abusiva da memória em detrimento da história propriamente dita está em vias de se converter numa ameaça, quer para a liberdade de investigação, quer para a própria coesão nacional. Se se continua a mostrar a actual complacência, poder-se-iam ver, em breve, os protestantes a reclamarem justiça por causa da noite de S. Bartolomeu, os descendentes dos Cátaros pela cruzada contra os albigenses, e assim por diante. Para além de um certo prazo cronológico, é necessário curvarmo-nos perante a virtude amnistiante da história.”

segunda-feira, dezembro 26, 2005

UMA REALIDADE A CONTRACORRENTE

O «Nouvel Observateur» entrou de férias e, por isso, decidiu publicar um número duplo para abarcar duas semanas de leitura. Por sinal, um dos melhores exemplares desta revista desde há já vários meses. Com Mozart como chamariz de capa, mas com muitas outras matérias de interesse. A começar pelos editoriais dos principais colunistas, que procuram situar alguns dos episódios mais recentes da política francesa no rescaldo do cenário de guerra civil nos subúrbios.
Jean Daniel, por exemplo, reconhece que, “segundo uma sondagem realizada pelo «Le Monde» (…) um francês em quatro declara-se de acordo com as ideias de Jean Marie Le Pen, nomeadamente no que diz respeito à defesa dos valores tradicionais, da segurança, da situação nos subúrbios e da emigração. Mais grave, ainda, um francês em cada três considera que a Frente Nacional não representa qualquer perigo para a democracia”.
Contestando a leitura demasiado apressada dessa sondagem por extrair conclusões de perguntas contextualizadas de uma forma demasiado abrangente, Jean Daniel reconhece, ainda assim, “que a tendência actual de uma parte dos franceses é de fechar-se em si mesmo e rejeitar o outro”.
Essa sensação de se perfilharem certas ideias a contracorrente de uma realidade aparentemente adversa, surge, igualmente, na constatação pelo mesmo Jean Daniel de que, hoje em dia, “os Estados Unidos têm uma taxa de crescimento, que ultrapassa os 3,6%. Criam 200 mil empregos por mês. O consumo raramente foi tão forte e a inflação é nula.”

domingo, dezembro 18, 2005

UM VOTO BEM DEFINIDO

Uma semana de debates entre candidatos presidenciais deu para confirmar a opção cedo tomada enquanto eleitor:
Cavaco continua a ser personagem sinistro, que ameaça muito mais enquanto símbolo do lado troglodita do país do que pelos eventuais poderes presidenciais passíveis de serem por si utilizados.
Alegre confirma ter entrado na corrida por mera vaidade pessoal, encerrando-se hoje no seu labiríntico quadrado de que nem sequer descortina qualquer porta de saída.
Jerónimo tem a firmeza dos seus ideais, a simpatia da sua forma simples de se exprimir e a graça de algumas fórmulas de fácil apreensão pelo tipo de eleitores a quem se dirige.
Louçã é o mais bem preparado dos candidatos, dotado de uma visão ampla da realidade, mas demasiado cingido a uma radicalidade, que intelectualmente seduz, mas não consegue amplo apoio dos cidadãos.
E há, enfim, esse verdadeiro animal político, que é Mário Soares. Sem os conhecimentos de economia de Louçã, mas com a mesma visão global de um mundo em mudança em que se sente capaz de imprimir a sua marca.
Não é preciso dar grandes explicações sobre a minha opção. Vinte anos depois de aderir ao Partido Socialista está na hora de corresponder por inteiro à sua orientação quanto ao voto a colocar na urna…

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Exterminadores Implacáveis

Faz algum sentido a visão de um filme menor de Clint Eastwood na mesma semana em que o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, recusou-se a poupar a vida de Stanley Tookie Williams.
Este último liderara um gang de rua, quando era adolescente. Mas vinte e quatro anos depois do seu encarceramento, o homem maduro, agora executado, era uma pessoa tão diferente, que chegara a ser ponderado para Nobel da Paz nos anos mais recentes.
O filme «True Crime» (1999) em si é linear, maniqueísta e inverosímil nalguns dos seus desenvolvimentos, mas acaba por ser interessante enquanto veículo da ideia de existir sempre a possibilidade de se executarem inocentes para os quais não haverá jamais possibilidade de remissão das consequências de eventuais erros judiciais.
Os aspectos mais contestáveis do filme é Eastwood assumir a pele de um garanhão capaz de pôr na horizontal quase todas as mulheres, que deseja. Um papel à medida das preocupações andropáusicas do realizador.
Outro é a salvação in extremis de um condenado à morte, inocentado pela avó do assassino, que já está morto e enterrado, mas se predispõe a contra como ganhara o fio roubado do pescoço da grávida por ele morta. Sem que ninguém, aliás, o visse no local do crime…
E ainda há a exagerada utilização do sentimentalismo para forçar a identificação do público com o inocente em vias de ser injectado letalmente. Convenientemente convertido ao catolicismo e transformado em responsável chefe de família…
Mas se o filme tem todos estes defeitos consegue uma dinâmica eficaz na forma como coloca os espectadores a torcerem pela não execução do réu, pela crítica a um padre assaz contraditório com os princípios da sua fé e a uma testemunha particularmente entusiasmado com o protagonismo mediático conferido pela sua presença no local do crime. Ficando colateralmente aflorada a questão como a justiça é diferente se dirigida de acordo com a cor da pele dos seus suspeitos.
A recente ultrapassagem da barreira dos mais de mil executados nos EUA desde o regresso das penas de morte apenas enfatizou o aspecto bárbaro de uma forma de castigo, que só mancha quem a ela recorre. Se até a mais que ambígua Áustria se prepara para retirar o nome de Schwarzenegger no estádio de Graz aonde ele era homenageado, fica evidenciada uma vez mais a distância civilizacional entre a Europa e os EUA.
Somando a esta clara divergência a confissão de Bush, já nesta semana, em como reconhece 30 mil mortos no Iraque desde a ocupação norte-americana e a falta de fundamento na questão das armas de destruição maciça, fica demonstrado em como, na questão dos valores, é a Velha Europa quem se deve assumir como a defensora dos padrões humanistas contra a persistência da barbárie alimentada pela mentira e pela cobiça imperialista...

segunda-feira, dezembro 12, 2005

JEAN CHRISTOPHE RUFIN: «A SALAMANDRA»


EXTRACTOS DE UMA ENTREVISTA COM O AUTOR
Os leitores que me conhecem sabem que fiz, até agora, calhamaços, seja sobre temas históricos, seja sobre temas contemporâneos, objecto de muito trabalho. Com este romance aconteceu algo de diferente: era para constituir uma novela, que acabou por se tornar mais comprida do que era suposto. À partida eu só queria que fosse um conto, que viesse a integrar um livro com outros de tamanho reduzido. Um livro diferente do que estava habituado.
A história era verdadeira e tinham-ma contado no Brasil. Doravante ela passou a obcecar-me, a perturbar-me, a dar-me vontade de a escrever. Um caso muito simples: uma mulher vai viver para o Brasil e conhece um rapaz na praia. Vivendo uma paixão, que vai terminar ao mesmo tempo mal e bem. Ora, a verdade é o que há de mais difícil para ser tratado num romance.
A verosimilhança é diferente da verdade. Abordamos uma história e a verdade é como as pedras, não se as pode esculpir, mas sim polir , mantendo-lhes a forma. E com esta história foi parecido.
As coisas evoluem muito gradualmente. Em cada vida há sempre pequenas progressões em vez de grandes decisões. Uma série de pequenas coisas que vão conduzi-la a um estado irreversível.
É a última vez que farei um livro assim, já que prefiro protagonistas felizes. É a primeira vez que faço um livro onde se vive algo de duro. Quis aqui mostrar como se operava uma sedução, apesar do horror e da violência.
O livro tenta revelar o rosto escondido do terceiro mundo, de o mostrar tal qual é. Bem distante da vitrina exótica ou do mito revolucionário. Este tema do encontro entre os ocidentais e o seu terceiro mundo fantasiado, com o terceiro mundo real, percorre todos os meus romances. Tento ultrapassar a visão idealizada desse terceiro mundo para chegar a algo de muito mais ambíguo, e, segundo penso, muito mais real.
Um mundo ambivalente, ao mesmo tempo feito de riqueza e de violência, repulsivo e atraente, doce e duro, que está no eixo desta narrativa.
Tento não me repetir de livro para livro. Mas é verdade que aqui se volta a abordar a riqueza e a pobreza. Há aqui alguém que é mais rico que o outro, mas que no seu país - a França - é igual à maioria das outras pessoas . Catherine até vem de uma família pobre, e continua-o a ser de alguma maneira já que vive só… Pelo contrário Gil é pobre mas é rico em humanidade.
Através dessas duas pessoas dá-se o encontro entre dois mundos. A sua relação inverte-se e o que é interessante é que essa posição cruza-se, muda e transforma-se. Os personagens deixam de ser exóticos, para surgirem tal qual são: egoístas, duros, avaros por dinheiro. A atracção, que eles então exercem não enfraquece, mesmo que mude de natureza.
O Brasil é um país aonde se confia. Pode-se ter este tipo de percurso. Aliás muitos turistas acabam por ter aí problemas por não se darem conta de como o perigo pode surgir com cores muito sorridentes. A proximidade entre o extremo conforto, o extremo desejo, o lado paradisíaco, é muito grande. De repente pode-se ficar numa situação insustentável. Enquanto noutros países o perigo é mais perceptível.

UMA OPINIÃO PESSOAL

Há livros incómodos de ler. Porque, quando se trata de romance convencional existe - por muito que se o queira evitar - a natural identificação do leitor com alguns dos personagens. Ora Catherine, a protagonista deste livro, incomoda pelo que de irracional se revela no seu comportamento. O de quem julga ver o Sol e quer a ele ascender com umas asas feitas de cera. Despenhando-se com o mesmo fragor do infeliz Ícaro.
Ao princípio situamo-la como uma funcionária mediana de um não menos mediano escritório parisiense e com um passado tão cinzento como a cor desses dias, que deixa para trás, ao partir para o Recife, aonde um casal amigo lhe dá breve guarida.
Já passados os quarenta anos, Catherine nunca conhecera as alegrias do amor e, muito menos, as que o corpo pode prodigalizar. Por isso ela vai ter uma descoberta fascinada junto de um jovem gigolo, Gilberto, que lhe dá prazer e a cumula de atenções.
Mesmo adivinhando-lhe maior interesse no seu dinheiro do que nela própria, Catherine não consegue libertar-se da escravatura de sentimentos, que ele nela gera. E por isso não hesita em regressar muito brevemente a Paris para conseguir um razoável pecúlio com a venda do seu apartamento e com a rescisão amigável do seu contrato de trabalho, e voltar para os braços de Gil. Com a convicção de comprar-lhe a quase exclusividade dos afectos com tal maquia - suficiente para ele almejar à compra de um bar de onde poderá ver garantido o seu futuro.
Catherine não compreende que está a criar condições para se ir afundando de degradação em degradação. Primeiro ao ter de suportar os amigos do amante, ainda mais mal encarados do que ele próprio. Depois, participando com eles no roubo de umas telas, que eles não têm qualquer pejo em vandalizar, quando se torna evidente a dificuldade em as retirar das molduras. E, enfim, sendo por eles espoliada de todo o dinheiro, que lhe restava num precário esconderijo.
Sem dinheiro, ela vê-se abandonada, entregue a si própria no ambiente equívoco do Carnaval. Mas descobrindo aonde Gil vive com outra mulher, vai aí procurá-lo no propósito de se humilhar uma vez mais, pedindo-lhe migalhas de um amor, que sabe impossível.
Mas ele pontapeia-a, rega-a com gasolina, pega-lhe fogo.
É uma mulher seriamente queimada, que o cônsul francês no Recife vai encontrar no hospital. E por quem sente uma enorme compaixão. Mas nada poderá fazer por ela, já que, mesmo desfigurada, ela recusa-se a inculpar Gil em tribunal. O seu louco amor é feito de uma entrega incondicional, mesmo sem nada receber em troca.
E ela substituirá a também deformada Conceição na baiuca da praia aonde conhecera Gil, tornando-se na patroa de um conjunto de miúdos, que vendem bebidas a quem vem para a praia e não imagina os dramas, que moram ali ao seu lado...

domingo, dezembro 11, 2005

«LA SALAMANDRE» de JEAN CHRISTOPHE RUFIN

Existe no céu astral uma constelação pouco conhecida e quase invisível: a do Camaleão. Ao abrir o ultimo livro de Rufin antes de pensar na salamandra é ao camaleão, que se é forçado a pensar. Como ? Passar com uma tal facilidade do ensaio político para o romance histórico, do romance histórico para a ficção científica e, depois, desta para o romance sentimental! Há nele uma frescura à moda de Pagnol: como não sabe que é impossível, fá-lo. E com que talento!
«A Salamandra» é, pois, um romance sentimental, uma harmónica que Rufin ainda não experimentara. Catherine, a sua nova heroína, é uma francesa de 46 anos. Na iminência da menopausa, ela afoga-se em trabalho até a empresa quase a obrigar a meter férias.
Primeiro contacto com o calor: as férias decorrerão no Brasil! Viva o Recife e a sua praia. Aonde Catherine se sente renascer...
Segundo golpe de calor: ela conhecerá um jovem brasileiro, um gigolo, que ela aceitará tal qual ele é.
Ela irá deixar-se - numa terceira etapa abrasadora - queimar com ele na paixão dos jogos carnais. No que se transformará em elucidativa parábola…
Mas voltemos a esse animal enigmático, que dá pelo nome de salamandra: ela vive no ou do fogo?
Até onde o ser humano precisará de um objecto de desejo? Até onde se poderá dizer, que é autónomo?
É claro que se pode criticar em Rufin a inexistência de uma qualquer inovação formal. Que o seu livro em nada contribuirá para a História da Literatura.
Não faz mal, porque que capacidade narrativa. Que coragem, igualmente, para assumir uma sensibilidade feminina até a uma dimensão de que o julgaríamos incapaz.
Um Rufin íntimo, que regressa ao Brasil, já não como o do «Rouge Brésil», o continente do século XVI, então um paraíso terrestre povoado de canibais mais sábios do que os cristãos.
Em «A Salamandra» não há justiça, pelo menos de acordo com as convenções da lei. O paraíso dos canibais transformou-se numa favela.
De que estrela caiu a salamandra?
(Lire)

sábado, dezembro 10, 2005

MORRER DE AMOR...

Em 10 de Maio de 1936, uma mulher japonesa, de nome Sada, é presa numa rua de Tóquio, quando levava consigo o pénis do amante, com quem passara os últimos dias num quarto de hotel. A obsessão sexual latente nesse episódio tinha por fundo a ascensão do militarismo no país do Sol Nascente. Ora Nagisa Oshima, que abordou esse caso no seu filme «O Império dos Sentidos», considera a indissociável relação entre a sexualidade e a política. Foi por o ter compreendido, que reorientou a sua filmografia para essa interligação a partir de fase adiantada da sua carreira criativa.
No Japão a sexualidade não pode ser vista pelo habitual filtro ocidental, que não consegue livrar-se dos valores judaico-cristãos. Não admira que, ao invés do Ocidente, a sexualidade seja mais ostentatória, como o demonstram os mangas. Mesmo apesar da censura …
Mas Tóquio cataliza em si grandes contrastes: apesar de oficialmente proibida a prostituição existe em certos bairros da cidade…
As proibições terão tido, por sinal, um efeito de reacção: mesmo não se podendo mostrar o púbis, o cinema erótico japonês conhece um fulgor assinalável. É o «pink cinema».
Koji Wakamatsu é um dos seus mais significativos autores. Em 1967 o seu filme «Os Anjos Violados» causou escândalo em Cannes. Era a história de um rapaz, que conseguia entrar num apartamento aonde viviam diversas enfermeiras e a todas matava excepto a uma delas, após uma orgia de sexo e de sangue…
Nagisa Oshima confessaria a influência desse filme, quando cuidou de rodar o seu primeiro «Império».
Filmes de pequeno orçamento, rodados em poucos dias, os «pink» dão uma enorme liberdade aos seus realizadores, que fazem aí tirocínio antes de passarem para o cinema mais convencional.
Takahisa Zeze é o realizador de «Tokyo x Erótica», de 2001, em que a Morte vem buscar o amante de uma rapariga não prescindindo de o sodomizar à sua frente. Evoluindo em sucessivos ambientes temporais, o filme conclui-se com o suicídio da própria rapariga. Eros e Tanatos aparecem, pois, scontinuamente associados.
Takashi Miike opta por um Sado-masoquismo e pelo carácter ambivalente da Mulher: ora doce, ora extremamente perigosa. Em «Audição», uma mulher vinga-se dos abusos de que fora sujeita, torturando os amantes dentro do princípio de que só existe sinceridade na dor.
Mas estas questões não se cingem ao cinema: em «Out» a escritora Natsuo Kirino fala da rotina entediante de algumas mulheres, que trabalham numa linha de produção da industria alimentar. Quando uma delas mata o marido, corta-o aos bocados e invoca a ajuda de uma das colegas para conseguir escamotear o cadáver.
Numa entrevista a escritora assume o seu interesse pelos perdedores e pelo tema da violência decorrente da sexualidade. Por isso os seus livros estão pejados de violações e outras formas de violência.
Mas numa sociedade marcada pelo budismo zen a morte tem pouca importância: é a própria civilização quem classifica de efémero tudo o que existe.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

UM BAILE ...

Um autêntico baile o que Francisco Louçã deu a um atarantado Cavaco Silva, que revelou, uma vez mais, a sua incapacidade para ter respostas à altura do candidato presidencial do Bloco de Esquerda.
Cavaco foi incapaz de olhar o seu opositor olhos nos olhos, o que revela uma óbvia cobardia.
Cavaco foi incapaz de disfarçar o nervosismo de quem só tem fórmulas gastas para rebater a números concretos de um doutorado em Economia a quem foi incapaz de demonstrar o respeito devido, procurando achincalhá-lo com o tratamento de «deputado Louçã», apesar de se ver tratado de «senhor professor» por quem tem o mesmo grau académico que ele.
Cavaco não se conseguiu dissociar das posições muito bem denunciadas por Louçã a respeito de algumas das mais pertinentes evidências colhidas nas afirmações dos seus apoiantes: Ulrich, que defendia o corte de 10% nas remunerações de todos os trabalhadores; os «iluminados» do «Compromisso Portugal», que defendiam o despedimento puro e duro, sem qualquer entrave para a entidade patronal.
Mas onde Cavaco esteve pior, em tudo quanto de mal se lhe revelou, foi na incapacidade de contrariar o que é a memória dos seus anos de (des)governação:
- a forma como desperdiçou os muitos milhões vindos da Comunidade Europeia para modernizar o país e qualificar os portugueses e se perderam nos muitos exemplos de corrupção então vividos;
- a forma como foi ele quem criou o tal monstro no funcionalismo público, hoje tão difícil de tornear;
- a forma como sempre conviveu com défices orçamentais, que se catalizaram nos extremos agora obrigatoriamente a equilibrar pelo Governo de José Sócrates.
Todos sabemos que cada povo merece os políticos que tem. Mas se a opção dos portugueses for pelo filho do gasolineiro, que não suporta a pressão do debate e todo ele se exprime na tremura das mãos e dos olhos, é caso para ficar descoroçoado com o nosso estado das coisas: em vez da herança dos nossos mais lúcidos antecessores, estaremos antes ao nível dos que nos afundaram nos períodos mais negros da noss História.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

A FORÇA DAS CONVICÇÕES

«Shalimar, o Palhaço» é o título do mais recente romance de Salman Rushdie. Passado na Cachemira, ele tem por protagonista um homem incapaz de fazer mal a uma mosca, que se tornará num assassino, quando vê a mulher trocá-lo pelo embaixador norte-americano na região.
Num longo processo de transformação pessoal, ele irá até ao continente norte-americano para, aí se fazer contratar como motorista pelo homem, que lhe suscitara tal infelicidade.
Será perante a enteada resultante dessa ligação amorosa, que o mortificou, que ele assegurará a sua vingança.
Para Rushdie foi importante demonstrar que o autor de um acto terrorista não é um ser diabólico, movido por intento irracional. As razões de Shalimar serão suficientemente fortes para explicar o seu acto. A exemplo dessa Cachemira donde ele provém: o escritor ainda se lembra como esse era um canto paradisíaco do planeta há duas ou três décadas.
Hoje, pelo contrário, cheira a pólvora, a sangue, a guerra permanente…

quarta-feira, dezembro 07, 2005

AMORES E DESAMORES

Não é escritor que justifique uma atenção excessiva, mas os seus livros são muito bem sucedidos no mercado francês: Marc Lévy escreve comédias românticas em que mescla o amor, a amizade, a morte, a separação e a magia.
«Et si c’était vrai», publicado cinco anos atrás, a protagonista era Lorraine, uma médica a quem um acidente de viação suscita um longo estado de coma. É nesse estado peculiar entre a vida e a morte que ela vai viver uma intensa história de amor com um arquitecto chamado Arthur.
«Vous revoir», agora publicado, volta à mesma situação, mas agora do lado de Arthur, também ele afectado por um estado de coma.
Na entrevista ao programa «Sang d’encre» , Levy confessa a crença na eternidade do sentimento. No amor não carnal. No coma como metáfora. E conclui que escreve para o filho sem preocupações quanto à excelência da sua arte, já que se sente um mero artesão…
***
Leila Marouane é uma escritora de origem argelina, que escreve sobre a sua própria experiência no seio de uma família envolvida na luta pela independência, mas eivada de um conservadorismo particularmente nefasto para com as mulheres.
O seu livro «La jeune fille et la mère» mostra como a mãe se pode converter na pior inimiga da filha, quando esta aposta em percurso emancipado. O estranho é essa mãe ter sido uma antiga militante revolucionária, que desejara um futuro bem definido para a filha. Que esta não está disposta a seguir…
Porque, na sociedade argelina as mulheres só foram tratadas como iguais dos homens enquanto durou a guerrilha anticolonial. Ganha a guerra os homens retomam o seu poder patriarcal e as mulheres são empurradas para os seus papeis subalternos, fechadas em casa, despojadas de dinheiro. O resultado: o auto-desprezo dessas mulheres, que pretendem condicionar as filhas para a mesma subalternidade.
O que torna o romance de Leila Marouane relevante é essa demonstração de como o homem muçulmano pode ser pernicioso para com as mulheres.

terça-feira, dezembro 06, 2005

UM FATALISTA NADA DADO A TRISTES FADOS

Passados mais de três séculos, «Jacques Le Fataliste» continua a ser de uma actualidade pertinente no que diz respeito à luta de classes e ao relacionamento entre homens e mulheres.
Rogério Samora é esse Tiago que, enquanto motorista, vai conduzindo o seu patrão (André Gomes) pelas estradas do país, enquanto recorda histórias pícaras relacionadas com as suas experiências amorosas. Essa conversa, só interrompida por alguns breves episódios - um desastre, o roubo a que são sujeitos em sórdida estalagem, o enterro do antigo capitão - serve para estabelecer a fronteira entre os valores de duas classes mais antagónicas do que parecem.
Porque Tiago demonstra maior esperteza do que a sua simplicidade sugere ou não tivesse ele aproveitado a luxúria de duas mulheres, que se julgavam dispostas a iniciá-lo nos mistérios do amor, de que ele já era afinal versado. E a sua ousadia revela-se, amiúde, quando consegue reaver a carteira roubada na estalagem ou ao exigir à pistola, que lhe facultem jantar.
Ao invés, o patrão é personagem passivo, apenas interessado em colher satisfação das histórias alheias, sem arriscar um gesto próprio quando as dificuldades atalham ao caminho.
Não surpreende que, escrito na década anterior à Revolução Francesa, este texto lhe sirva de perspicaz anúncio. Porque a tese de existirem inevitabilidades escritas no céu, não impede que elas decorram das consequências dos comportamentos assumidos cá em baixo…
Por isso os dois personagens imitam Quixote e Sancho Pança, mas já com algumas importantes alterações: cansado de perseguir dulcineias, e já ultrapassado pelo seu tempo histórico, o patrão engordou e não evita o tédio no assento traseiro da viatura, inconsciente da iminente ultrapassagem social, que o espera.
Ao invés Tiago é um criado a quem as circunstâncias forçaram a ser agente activo e, como tal, emagreceu, pronto para possuir tudo quanto era dantes propriedade do patrão. Daí que tenha conseguido colher o fruto da menina tão cobiçada por este e se lhe antecipe na conquista da bela estalajadeira (Susana Borges), que passa uma noite a contar-lhes a história moral de uma viúva, que se vinga do seu novo amante ao casá-lo com uma antiga prostituta, por ela educada como recatada menina de sociedade, quando lhe sente esfriarem os ardores. Este episódio servirá para confirmar a grande actriz, que é Rita Blanco.
Na cena final - a da simbólica travessia de uma ponte - o patrão já se sentara ao lado do seu motorista. Mas a História revelará que não tardará a ser escorraçado de uma viatura em permanente movimento...

segunda-feira, dezembro 05, 2005

A EVOCAÇÃO DE UM POLÍTICO MEDIANO CONVERTIDO EM MITO

Será que Sá Carneiro merece tanta evocação no quarto de século passado sobre a sua morte?
Se se pensar na ruptura, que ele assumiu ao impor a sua relação com Snu Abecassis numa época ainda tão marcada pela imposição clerical de certos códigos morais, é justo reconhecer-lhe o papel de revolucionário perante uma sociedade aonde o divórcio ainda funcionava como um estigma. Aliás a opção de não se candidatar à Presidência da República em 1980 contra Ramalho Eanes, tinha como fundamento a noção de estar politicamente fragilizado face a essa sua condição afectiva.
Mas, politicamente, seria Sá Carneiro alguém de quem se pudesse esperar uma mais valia para o bem estar dos portugueses? A insuspeita Agustina Bessa Luís define-o como um político sem essas qualidades excepcionais, que lhe terão querido assacar. E a escolha de um militar de extrema-direita para representar uma direita apostada em apressar a viragem política, que os valores de Abril ainda teimavam em evitar, retrata eloquentemente uma personalidade com tiques de autocrata. Aquilo que alguns definem como coragem, ao afrontar internamente quem com ele não concordasse, era a demonstração de como nele permaneciam interiorizados os valores do regime marcelista, que ele não desdenhou servir como deputado.
Por isso a melhor reportagem televisiva sobre ele é a de Cândida Pinto unicamente polarizada na sua história amorosa. Porque comece-se a falar do seu pensamento político só se lhe encontra um conceito: a contra-revolução contra o que, ainda restava da Revolução. Devolvendo terras a latifundiários e empresas a quem delas fugira para buscar asilo no Brasil.
Seria esse o caminho para almejar o tal desenvolvimento, que nos aproximasse de uma Europa em que pretendíamos entrar? A demonstração fica por fazer, mas podemo-la imaginar em função do que foi a herança de um dos seus dilectos discípulos: Cavaco Silva, que pertenceu aos seus Governos, antes de se responsabilizar por muitos dos caminhos errados seguidos pela economia portuguesa a partir da segunda metade dos anos 80.
Por isso, quando há quem se atreva a compará-lo a Mário Soares ou a Álvaro Cunhal, eles sim com visão para o que pretendiam construir enquanto país possível, só apetece gargalhar…

domingo, dezembro 04, 2005

AS MEMÓRIAS DA GUERRA

Há quem queira apagar as memórias da Guerra Colonial. A não ser os chamados «antigos combatentes», que, ainda se batem por uma compensação monetária dos traumas aí vividos, esse é um período da história recente, que o poder e a generalidade dos cidadãos pretendem esquecer. Porque transformou quem nela participou, seja de forma activa, quer à distância. E, neste último caso, são-nos bem próximos os exemplos de quem esconde angústias por traumas mal resolvidos, que continuam a assombrar as noites de muitos lares.
Ainda assim, Eva Lobo, a protagonista de «A Costa dos Murmúrios» - filme de Margarida Cardoso baseado no romance homónimo de Lídia Jorge—começa por se confrontar com essa transformação de identidade ao chegar a África e constatar que Luís mudara totalmente. O entusiástico aluno de Matemática esquecera todo o seu idealismo e convertera-se no braço direito de um militar odioso, o capitão Forza Leal, a quem segue como uma sombra.
É uma África terrível aquela aonde Evita se verá mergulhada: há quem vá semeando garrafas com veneno, que mata os incautos negros da cidade, enquanto na selva as atrocidades ainda se revelam mais cruéis.
Há uma profunda miopia nos defensores da Guerra: até ao fim irão acreditar numa solução militar, quando já o tempo escasseava para uma honrosa solução política…
Beatriz Batarda consegue transmitir no rosto toda essa angústia de se ver num beco sem saída. E vai repetir, de alguma forma, o percurso da mulher de Forza Leal, cujo adultério se saldaria pela obrigatoriedade em ver o amante meter uma bala na cabeça à sua frente. Mas os amantes de ocasião - dois jornalistas venais, que calam as verdades cada dia mais difíceis de esconder - apenas lhe iludem o desconcerto de se ver sozinha perante um absurdo sem explicação.
Num filme exemplar, quanto à beleza da fotografia, há cenas lindíssimas, que importa evocar. Por exemplo, aquela em que Forza Leal e Luís vão «fazer o gostinho ao dedo» disparando contra flamingos e Helena se coloca à frente da sua mira num esforço vão para evitar esse morticínio. Ou nas cenas de praia, aonde o tédio se engana com longos banhos de sol.
Numa cinematografia aonde o problema colonial está longe de se esgotar, sobretudo, por restar ainda tanto por exorcizar no que a ele se refere, o filme de Margarida Cardoso já constitui uma referência maior, quando se trata de exemplificar a miopia do fascismo português.
E a partitura composta por Bernardo Sassetti para este filme só ilustra de forma mais eloquente os sentimentos, que devassam os equilíbrios precários de duas mulheres...

sábado, dezembro 03, 2005

WILL EISNER: «O COMPLOT: A HISTÓRIA SECRETA DOS ‘PROTOCOLOS DOS SÁBIOS DO SIÃO’»

«Os Protocolos dos Sábios do Sião»: pretensamente autênticos, apresentam-se como o processo verbal de vinte e quatro conferências nas quais um alto dignitário judeu, não identificado, expõe perante um cenáculo de conjurados (“Os Sábios do Sião”) o seu plano secreto de conquista do mundo.
Eles foram publicados no Verão de 1903 no diário anti-semita de São Petersburgo «Znamia» (A Bandeira), e depois em livro em 1905.
Um século depois, esta fraude continua a ter uma vida duradoura. Neste tempo de regresso em força das teorias da conspiração ao universo da Internet, os Protocolos continuam a ser traduzidos, editados, lidos e acreditados em numerosos países, não só árabo-muçulmanos.
E, no entanto, a impostura já foi desmascarada desde muito cedo. Quando se tornou num dos livros sagrados do Apocalipse da nova fé ariana. Hitler, em «Mein Kampf», recomendava vivamente a leitura dos Protocolos: «No dia em que se tornar no livro de cabeceira de um povo, o perigo judeu poderá ser considerado como extirpado».
A exegese dos Protocolos, começada nos anos 20, nunca perdeu força. Como o demonstra o último álbum de Will Eisner, acabado pouco antes da sua morte, aos 87 anos, em 3 de Janeiro de 2005. Para justificar a sua obra ele explica: «Ao longo de todos estes anos, centenas de livros e de artigos fundamentados denunciaram a infâmia dos Protocolos. Contudo, quase sempre, eram obra de universitários e destinavam-se a especialistas ou a leitores já convencidos da fraude.(…) Ora, eu passei a minha vida a desenhar narrativas. Com a aceitação generalizada deste vector da literatura popular, é oportuno atacar de frente esta propaganda numa mensagem mais acessível».
A ambição não espanta da parte de um artista, que sempre defendeu a função didáctica da banda desenhada.
Para expor a história secreta dos Protocolos, Eisner privilegia a simplicidade em vez da subtileza. Apresenta como estabelecidas as hipóteses historiográficas que, apesar de sólidas, não deixam de ser debatidas, quer quanto à identidade do falsário - Golovinski - ou de quem lha encomendou - Ratchkovski, o chefe dos serviços secretos da Okraïna (polícia secreta do czar).
Segundo Eisner, os «maus» têm ideias claras quanto ao que pretendem: «E se aparecesse um documento a provar que a modernização faz parte da conspiração judaica?», pergunta um cortesão conservador de Nicolau II.
«Mas onde encontrar esse documento? Não conheço nenhum!», inquieta-se o seu cúmplice.
«Não há problema! Fabricamos um nos serviços secretos. A Okraïna encarrega-se disso em França!»
Compreende-se que os diálogos vão direitos ao objectivo, mas são essas as leis do género…
A banda desenhada ao serviço da história contemporânea? Este esforço lembra o de Art Spiegelman e a sua série sobre a Shoah, ou Tardi com a evocação do inferno das trincheiras...

(excertos de um artigo do «Le Monde»)

sexta-feira, dezembro 02, 2005

FRUSTRAÇÕES E CORAGEM POLÍTICA

Na ARTE um documentário sobre o homem que matou John Lennon. Abordando em paralelo o percurso de ambos: a vítima e o seu algoz. Para compreender como é demasiado perigoso lidar com quem sente a frustração da mediocridade. Sobretudo numa América, aonde todos são empurrados para um tipo de individualismo, que privilegia o sucesso, a notoriedade.
Marc Chapman não tinha condições nenhumas para alcançar esses minutos de glória: não tinha qualquer talento, nem vontade para se livrar das suas depressões quase crónicas. Até encontrar uma alternativa no assassinato de alguém famoso. O passaporte para se tornar notícia de jornal. Mesmo que pelos piores motivos… Mas Chapman lembra aqueles publicitários, que defendem o princípio de que, bem ou mal, o importante é falar-se do que se quer enfatizar.
Ainda assim seria possível encontrar uma história deste tipo em Portugal? A probabilidade é escassa: o que sucedeu naquela noite de há vinte e cinco anos atrás tem a chancela de uma sociedade especificamente norte-americana. Aonde a facilidade de arranjar armas coincide com o aparecimento de frequentes exemplos de serial killers, apostados em fazer pagar aos que cirandam à sua volta a sua incapacidade para se adaptarem à terra das oportunidades … afinal tão escassas para quem nelas se ilude…


***
Entrevista com Mário Soares na RTP. Com Judite de Sousa a repetir uma vez mais o seu comportamento acintoso para os seus convidados de esquerda. No caso do ex-presidente e actual candidato a estratégia passou por passar mais de metade do tempo a falar do filho do gasolineiro. Como se o importante nesta candidatura não sejam os seus valores e o que representa para quem nela aposta, mas a única e exclusiva vontade em confrontar um inimigo fidagal.
Mas o velho senhor da política nacional saiu-se bem da prova, confirmando o vigor dos seus oitenta e um anos. E lembrando, sobretudo, que tem estado na primeira linha dos principais combates políticos nacionais nos últimos sessenta anos, sempre em defesa dos valores essenciais da liberdade e da democracia. Alguma vez o candidato da direita poderá invocar um tal currículo?
Só que o resultado das eleições de Janeiro continuam a ser problemáticos: se muitas vezes o eleitorado português, na sua essência abstracta, denota inesperada sapiência, noutras deixa-se arrastar pelos mais inverosímeis cantos de sereia. E teme-se que, depois de correr com a direita do Governo, acabe por a fazer, de novo, levantar a cabeça através desta inconveniente oportunidade!

quinta-feira, dezembro 01, 2005

A EXPERIÊNCIA VISUAL DA COMPANHIA HERVIEU/MONTALVO

Já os conhecíamos de alguns espectáculos transmitidos pela Mezzo.
Fora primeiro o «Babel Heureuse» a situar-nos na estratégia artística dos dois criadores (José Montalvo/ Dominique Hervieu): o multiculturalismo, a integração de diversos tipos de dança (desde a clássica à contemporânea, incluindo nestas o he hop), a interligação entre os bailarinos e as imagens projectadas em fundo e uma proposta de espectáculo assente na alegria e nas piscadelas de olho ao público.
Com «Paradis», cronologicamente anterior, confirmavam-se esses pressupostos para além de uma presença constante de diversos animais, ora evocados nesse fundo, ora presentes nos próprios movimentos dos artistas.
Este «On Danfe», agora visto na Culturgest, confirma tudo isso, com a vantagem de obter a tridimensionalidade desse testemunho, enriquecendo-o pela escolha de tantas perspectivas facultadas pelos diversos planos de leitura do espectáculo.
Retoma-se aquela ideia de quão é desnecessário ter corpo de bailarino para dançar: alguns dos artistas são o oposto desse paradgma convencional. E adopta-se a belíssima música de Rameau para servir de esqueleto aglutinador do que se vê durante hora e meia.
Como se trata de música de corte do século XVIII é evocada a atmosfera de Versalhes, quer nalguns estilos de dança, mas sobretudo pelo carácter edénico dos seus jardins. Aonde primavam as aves. E daí os muitos sons de diversos pássaros, que aparecem depois nas imagens projectadas: pavões, cisnes, pintainhos,etc.
Mas essa ligação entre homens e bichos tem outros exemplos curiosos: leões, tigres, elefantes, coelhos sucedem-se em diálogo com os movimentos dos bailarinos, como se entre uns e outros as fronteiras se esbatessem…
Quando, enfim, o espectáculo se conclui - numa parafernália de corpos a movimentarem-se no palco e na cama elástica do filme projectado, a sala - já de si a abarrotar -explodiu numa sucessão de vibrantes aplausos. Nesta época tão parca em experiências artísticas estimuladoras da alegria e do prazer, essa hora e meia representara uma benesse para todos aqueles espectadores.
A dupla Montalvo/Hervieu consegue sempre esse resultado em nós...

PINGUINS



Impressionante o esforço dos pinguins no seu esforço de reprodução da espécie. O documentário, por muitos considerado, como um sério candidato aos Óscares não merecia a má fama, que lhe deu a direita troglodita norte-americana ao fazê-lo paradigma dos seus valores mais retrógrados.
«A Marcha dos Pinguins» de Luc Jacquet é, afinal, um conjunto de várias marchas. Existe a primeira que, todos os anos, leva os pinguins imperadores a saírem das ricas águas antárcticas para se lançarem nos rituais de acasalamento na imensa planície situada a vinte dias de laboriosa caminhada. Porque existem muito mais fêmeas, que machos, cada escolha mútua de um casal, faz com que as preteridas se envolvam em verdadeiras cenas de estalada com as felizes contempladas…
Quando nasce o volumoso ovo começa uma tarefa muito complicada para ambos os progenitores: mantê-lo aquecido, o que implica conservá-lo sobre as patas, tapado pela espessa plumagem. E demorando o menos possível na transição de um para o outro. O que serve para demonstrar a diferença entre a habilidade dos mais experientes e a imperícia dos mais novos...
O frio intensifica-se à volta da colónia. Os dias vão-se tornando mais curtos e as fêmeas empreendem o caminho inverso ao de algumas semanas atrás: é urgente alimentarem-se, porque, tão-só ecludam, as crias exigirão rápido repasto. São os machos, quem ficam a responsabilizar-se pelos últimos dias dessa gestação. Apesar de já passarem várias semanas desde a última refeição e estarem tão famintos quanto as já saudosas fêmeas. Muitas das quais nunca irão aparecer, vítimas das focas e lobos-marinhos, que as esperam na perspectiva de constituírem presas fáceis…
Cada fêmea, que não regressa, significa a condenação da respectiva cria… Que deparam com outros sérios riscos à sua sobrevivência: o esmagamento entre adultos em disputa, os ataques das gaivotas, as quedas nas fissuras abertas no gelo…
Quando chegam as mães, é a vez dos pais regressarem ao mar na procura de merecida refeição. Mas muitos estão já tão exauridos, que nunca lá chegarão…
Verifica-se, nessa altura, um verdadeiro corrupio entre o mar e a planície–maternidade. Ora há fêmeas a chegar, ora machos a partir. Ocasionalmente pai e mãe acabam por se reencontrar uma vez mais junto ao filhote para uma iminente despedida: é que o Verão avança, os gelos vão fundindo e o percurso definitivo até ao mar torna-se, enfim, acessível aos jovens pinguins, que começam a ganhar a sua plumagem definitiva…
É o fim deste ciclo: toda a colónia mergulha nas águas geladas desfazendo-se as efémeras ligações de parentesco. Alguns meses depois surge o novo ciclo de acasalamento…
O filme dá-nos o esperado: a beleza de uma paisagem, que sabemos quase inacessível ao Homem e uma excessiva «humanização» do comportamento destes animais, sobretudo, merecedores da sua capacidade de adaptação a condições tão extremas.

UMA LIGAÇÃO PORNOGRÁFICA

Tinha sido uma ligação pornográfica, apenas baseada no sexo. Pelo menos é o que uma mulher (Nathalie Baye) diz para a câmara ou para um entrevistador invisível ali postado ao lado desta…
Mas a sua história nem sempre condiz com a do seu cúmplice (Sergi Lopez) nessa experiência amorosa: enquanto ela afirma tê-lo conhecido pelo minitel, ele garante ter-lhe respondido a um anúncio numa revista pornográfica…
No que convergem é no local do primeiro encontro: um café. E no desconforto suscitado pelo nervosismo da ocasião.
O mesmo nervosismo, que os leva ao hotel ali próximo, aonde começam a realizar os seus fantasmas… Durante três ou quatro meses, ao ritmo de uma ou duas vezes por semana, sobretudo ás quintas-feiras…
Quando ela se arrisca a deitar-se por cima dele estão subvertidos os estereótipos do cinema erótico. Por natureza maculados por uma excessiva misogenia na forma de explicitar as relações. Aqui é ela, a mulher, quem toma a iniciativa, quem ensaia formas de ir além… A forma de alcançar orgasmo poderoso, que o emociona. Por nunca ter acreditado possível um desiderato tão eloquente…
Mas que os assusta: na vez seguinte, em vez de se sentirem mais cúmplices, nota-se-lhes uma certa frieza. Temerosa de uma caixa de Pandora, que terão apenas aberto um pouco sem se arriscarem a retirar toda a tampa…
A única vez em que o exterior vem confrontar-se com eles é quando um outro hóspede do hotel sofre um ataque no corredor e o socorrem. Lignaux, esse desconhecido, sempre fora um mulherengo, mas como lhes confidencia a sua repudiada mulher, não deixaria de significar para ela uma perda irreparável. Ao ponto de acabar por se suicidar, quando a viuvez se lhe torna uma realidade.
Essa entrega ao Outro é algo, que os surpreende, que os inquieta. Por isso de nada lhes adianta a declaração de Amor, que a mulher acaba de confessar ao amante. Pelo contrário: esse gesto só precipita a ruptura, quando ambos se equivocam quanto ao sentido das suas mútuas reacções no encontro seguinte: imaginando no Outro uma vontade de ruptura, que era manifestamente falsa, eles acabam por se separar de vez...

O que um filme como «Uma Ligação Pornográfica» equaciona é a fragilidade de relacionamento entre duas pessoas, que são capazes de apostarem numa entrega física quase sem entraves, mas mantêm um distanciamento cauteloso quanto à expressão dos seus verdadeiros sentimentos. Chegando ao ponto em que podem vir a ser tudo, e acabam por consensualizar o nada. Sem nunca compreenderem quanto o seu desejo de arriscar era o mesmo, que o outro em segredo alimentava.
Com um título ambíguo, do qual se pode esperar o pior, o filme de Frédéric Fonteyne vive do notável desempenho de Nathalie Baye e de Sergi Lopez. Que verbalizam para um entrevistador invisível como tudo poderia ter sido diferente se o medo os não tivesse tolhido no momento culminante dessa relação...

terça-feira, novembro 29, 2005

O DIREITO À INDIGNAÇÃO

Dizem-nos as notícias: um tal Conselho de Ética emitiu um parecer a contestar a utilização de células estaminais na investigação científica. Ora sabe-se que é dessa investigação, que se perspectivam as mais animadoras expectativas de solução para doenças como a de Alzheimer ou a de Parkinson. Inviabilizar esse tipo de investigação na linha do que a própria Administração Bush vem defendendo, assume foros de irracionalidade económica pelos custos inerentes à galopante despesa social com esse tipo de doentes - que o aumento incessante da esperança de vida tornará muito mais frequentes - e pela injustiça cometida com essas futuras vítimas (e seus familiares), que verão proteladas as possibilidades de contornarem esse drama.
Não podemos adivinhar o que levará alguém a arrogar-se do direito de considerar com legitimidade para se considerar a referência ética dos valores sociais. Numa sociedade eivada de diversidades morais, religiosas, sexuais e étnicas, o que é ético para uns pode não o ser para outros. A exemplo do que se passa por exemplo com o aborto: posso admitir que para um católico essa prática seja um pecado. Mas para um ateu ou um agnóstico esse conceito de pecado não faz qualquer sentido. Ora, numa sociedade democrática, em que se possa até admitir que os católicos sejam maioria, aonde existe em tal premissa o respeito pela minoria, que não se identifica com esses códigos éticos?
É o que se passa com este parecer sobre as células estaminais: uma vez mais confrontamo-nos com os preconceitos de um conjunto de pessoas, que à luz exclusivamente dos seus valores, decidiram condenar a investigação científica em causa. Como se o embrião fosse já uma pessoa, como se aquilo que aqui querem inviabilizar não venha a ser exequibilizado noutros países, que como tal ganharão primazia numa área científica ademais de boas perspectivas económicas para quem vier a registar as futuras patentes.
O direito à indignação tem a ver com a permanência na sociedade portuguesa desse tipo de novos inquisidores, que pretendem travar a evolução científica como se a História não tivesse já demonstrado a vacuidade dessas intenções.
É claro que a investigação sobre as células estaminais será uma realidade, aqui ou fora daqui! Por muito que estes epígonos do espírito neoconservador tão nefasto para a Humanidade nestes últimos anos, continue a dar sinais de teimosia sempre que a oportunidade lhes conceda tempo de antena...

sábado, novembro 19, 2005

Élisabeth CORONEL: «Saburo Teshigawara, danser l’invisible»

Saburo Teshigawara, homem secreto, aceitou trabalhar em frente da câmara de Elisabeth Coronel durante vários meses, em Tóquio, em Paris, em Lille e em Yokohama. Entra-se na dança com os ensaios de Kazahana (literalmente flor/vento), coreografia criada em 2004 na Ópera de Lille de que se descobrem alguns extractos no fim do documentário.
Começa-se com os primeiros passos de Prelude for dawn, para o qual o coreógrafo trabalha com crianças amblíopes da escola de Loos, espectáculo igualmente apresentado em Lille. É a entrada para o «rio subterrâneo», que anima a arte de Saburo Teshigawara, peça após peça.
Imersão no movimento e na respiração, a felicidade de partilhar um instante de beleza.
É-se tomado por um irresistível desejo de dançar por entre os corpos, que ele dirige com a voz ou com o gesto.
Apresentadas em voz off, as suas palavras, ora concretas, ora misteriosas, sempre evocadoras, guiam-nos para a contemplação do seu universo. Kazahana, tentativa para represnetar a «duração», corresponde assim para o coreografo à imagem de um céu sem nuvens, límpido, donde caem flocos leves de neve.
Entre os ensaios e as representações, a realizadora prolonga a dança com as imagens contemporâneas do Japão: barcos na baía de Tóquio, jogos de praia, chuva de flores de cerejeira nos jardins, lagos e montanhas.
Passo a passo, de encantamento em encantamento, as experiências e as descobertas de Teshigawara são-nos transmitidas, e permitem-nos uma abordagem desse lado inconsciente a que a sua dança dá acesso.

Saburo Teshigawara nasceu em Tóquio em 1953 e é o mais importante coreógrafo japonês contemporâneo. Igualmente bailarino, ele cria a sua própria linguagem, resolutamente inovador e baseado numa investigação permanente sobre a liberdade. Gozando de um prestígio significativo no mundo da dança, é convidado para os principais palcos mundiais com a sua companhia Karas (que significa «corvo», um pássaro benéfico na cultura japonesa)

sexta-feira, novembro 18, 2005

A PASSAGEM DO GRANDE NORTE


A passagem do Noroeste é a zona, a norte do Canadá, que fica mais próxima do Oceano Árctico. No Verão como no Inverno, ela está bloqueada pelos gelos.
Desde o século XVI constituiu uma terra de aventura para os exploradores à procura de uma via, que ligasse a Europa à Ásia.
Desde os finais dos anos 90, por acção do aquecimento climático, esses gelos estão a liquefazer-se com progressiva rapidez. Daqui a vinte anos, os gelos poderão já não servir de obstáculo para essa passagem do Noroeste.
Por trás das consequências económicas, que se adivinham imensas, dois parâmetros arriscam-se a ficar secundarizados: o equilíbrio ambiental e o modo de vida dos Inuits.
Jean Christophe Victor, investigador em geopolítica e autor da emissão «Les Dessous des cartes», faculta-nos aqui as suas reflexões sobre este paraíso branco ameaçado:
Daqui a dez ou vinte anos as consequências geopolíticas inerentes à libertação da pssagem do Noroeste serão diversas, a começar pelas relacionadas com os recursos minerais. A abertura dessa passagem facilitará o acesso às minas de níquel, de cádmio, talvez de urânio, e muito certamente de diamantes. E também ao petróleo.
A segunda consequência, de ordem jurídica, é o estatuto que será o das águas norte-canadianas.
Há um litígio: para o Canadá são águas territoriais, que lhe pertencem, enquanto para os EUA são águas internacionais.
A terceira consequência diz respeito ao transporte internacional: ter-se-á um novo estreito, mais curto que o do Panamá ou o do Suez, que implicará óbvias alterações à situação actual.
E o quarto desafio, que deveria ser o primeiro, é que constitui uma péssima notícia a nível ecológico.
Regularmente vamos tendo estatísticas sobre a modificação da calote glaciar da Groenlândia: os glaciares retraem-se a um ritmo facilmente detectável.
Os Inuits são duramente influenciados pelas poluições vindas do Sul. A passagem de cargueiros pelas suas costas apenas piorá o que se passa hoje. Será que se deve explorar o petróleo para que os habitantes da região tenham melhores proventos, mesmo sem se imaginar como eles poderão vir a ser distribuídos? Quando vejo o que se passou, a partir de 1953, com os Inuits da Groenlândia, já não sei que responder. A Dinamarca decidira que eles eram cidadãos com os mesmos direitos de quaisquer outros dinamarqueses. A priori trazia vantagens, a nível médico, escolar, etc… Mas quanto à economia local, constatou-se a destruição da sociedade tradicional. E depois, ao mesmo tempo que os medicamentos, chegou a cerveja e a destruição de aldeias inteiras. (…)
Interesso-me pelas expedições actuais ao Grande Norte, porque me atiça a curiosidade a evoução da sociedade Inuit. Por muito que os tempos tenham mudado. O meu pai fazia parte daquela geração, que conseguira aliar a exploração geográfica aos aspectos exclusivamente científicos.
Hoje, já não há mais exploração geográfica enquanto tal. Há sobretudo feitos individuais.

segunda-feira, novembro 14, 2005

IRMÃOS COEN: «O QUINTETO DA MORTE»

«The Ladykillers», o filme que os irmãos Coen realizaram no ano transacto, tendo Tom Hanks como protagonista, é um divertimento inteligente, embora se cinja a esse mero objectivo de provocar uma noite bem passada a quem o vê.
Tudo começa quando uma velha senhora Marva Munson, aluga um quarto ao erudito Professor G.H. Dorr (Tom Hanks) para ele aproveitar o seu ano sabático a dedicar-se ao seu grupo de música renascentista. Estamos no Estado do Mississipi, aonde a questão racial está omnipresente e as igrejas negras vivem a alegria dos seus «gospels».
O que Marva desconhece é que Dorr lidera um quinteto de ladrões apostados em escavar um túnel até ao cofre forte do casino mais próximo para dele extorquir 1,6 milhões de dólares.
Num filme destes autores cada um desses assaltantes teria de constituir por si mesmo um estereotipo tratado de uma forma quase caricatural. Pelo menos assim vem sucedendo nos filmes mais recentes destes autores. Existe, assim, um General, que não é mais do que um vietnamita especialista em escavação de túneis desde o tempo em que a Indochina ainda era uma colónia francesa. Há um brutamontes, que fracassara como jogador de futebol americano. Acrescenta-se-lhes o assistente de realização de filmes publicitários, autêntico pinga-amor por uma cinquentenária ainda penteada com tranças e sobrevivente dos Freedom Riders, que nos anos 60, haviam vindo da Pensilvânia enquanto promotores dos direitos cívicos das pessoas de cor. E, sobra, enfim, o negro Gawain, representante da geração do he-hop e capaz de arriscar o sucesso colectivo pelas curvas concupiscentes de uma qualquer cliente do Casino aonde se conseguira infiltrar como empregado da limpeza.
Se o roubo em si não tem história - salvo o dedo perdido por um deles numa explosão acidental - já o que vem a seguir é muito complicado: Marva descobre o que eles fizeram e ameaça-os com a polícia se eles não derem provas de arrependimento, devolvendo o dinheiro e acompanhando-a no domingo seguinte à Igreja.
As tentativas de matarem a senhoria não resultam: Gawain recusa-se porque ela lhe lembra a própria mãe e morre no disparo ocasional da sua própria pistola durante uma disputa com Garth. Este procura ficar com o pecúlio só para si e para a sua amada Mountain Girl e são os outros que os eliminam.
Segue-se o General: um susto, quando se preparava para estrangular a adormecida Marva, redunda numa queda precipitada - e fatal … - pelas escadas abaixo.
O brutamontes Lump e o Professor Dorr morrem acidentalmente em cima da ponte donde costumavam lançar o entulho, e mais recentemente os cadáveres, para as barcaças destinadas à ilha, que servia de aterro sanitário, na embocadura do rio. O primeiro é vitimado por uma inesperada repetição da cena de «O Caçador» referente à roleta russa. E a Dorr, como bom apreciador de Edgar Allan Poe, é sob a égide de «O Corvo», que tem encontro com as águas do rio.
Acaba, pois, por constituir uma história moralmente inatacável: o crime não compensa, acabando premiada a virtude. Mesmo que vestida de ironia…

sábado, novembro 05, 2005

CARROS, FADOS E ESTADOS DE ALMA

Já foi publicado há uma semana, mas mantém toda a actualidade: num artigo do «Expresso», o seu colunista Jorge Fiel recordava como, há uns anos atrás, com os filhos ainda crianças, ia para o Algarve na saga de todos os Verões, quando fazia o jogo das cores dos carros vindos em sentido contrário.
Era um tempo em que a auto-estrada entre Lisboa e aquela província meridional ainda era uma miragem e em que as crianças punham os pais à beiram de um ataque de nervos com as repetitivas perguntas: «Nunca mais chegamos?», «Ainda falta muito?»
Mas também era um tempo em que esse jogo de recurso era imprevisível nos seus resultados. Porque o parque automóvel nacional era multicolorido…
Hoje, lamenta-se o cronista, não acontece assim: a maioria dos automóveis são cinzentos, nos seus diversos matizes (claro, escuro, mais claro que escuro, mais escuro que claro, etc…). E as alternativas imediatas são as que se podem esperar de tal contexto: brancos e pretos…
Eu que disso não me havia dado conta, fiz a experiência ontem, enquanto atravessava a ponte 25 de Abril no sentido Sul-Norte. E corroborei tal constatação sem margem para qualquer dúvida…
Ora, Jorge Fiel, parte de tal conclusão para outra, que a ela surge associada: nas cores dos seus automóveis, os portugueses reflectem os seus próprios estados de alma. Que estão cinzentos, acabrunhados, desesperançados em relação ao futuro imediato...
Os carros coloridos de outrora corresponderiam a um outro tempo, quando a Revolução dava azo a todas as Utopias, e o risco era encarado como algo natural…
Talvez por este desânimo presente aconteça o ressurgimento do fado: através dos discos de Marisa, de Mísia ou de Mafalda Arnauth. E que reflectem sentimentos de nostalgia, de saudade de algo que se perdeu ou que nunca se encontrou…
Deseja-se um outro tempo mais colorido e de sons bem mais animadores…

quinta-feira, novembro 03, 2005

AS VIAGENS DA COLECÇÃO DO MUSEU DO PRADO

Uma das mais curiosas histórias relacionadas com o Museu do Prado diz respeito às reviravoltas por que passou a sua colecção durante o segundo quartel do século XX: durante a Guerra Civil de Espanha, a Sociedade das Nações convenceu as partes beligerantes a porem o fabuloso espólio aí guardado a recato de eventuais bombardeamentos. Depois de diversas vicissitudes, a cidade escolhida foi Genebra.
É imaginável o que terá sido essa sucessiva viagem de milhares de obras-primas, primeiro de Madrid para Valença, daí para Girona, e enfim para a cidade Suiça.
Mas, idêntica aventura terão vivido essas mesmas obras quando, em plena Segunda Guerra Mundial, elas tomam a direcção contrária, viajando de comboio por território francês até se verem, uma vez mais salvaguardadas no Museu madrileno.
Uma aventura, que só por si merecia um tratamento cinematográfico com a ensanguentada Espanha por fundo…

quarta-feira, novembro 02, 2005

SIGNORET E ARENDT: DUAS TESTEMUNHAS DO SEU SÉCULO

Huguette Bouchardeau era-nos conhecida de outras actividades. A de ministra, por exemplo, em governos socialistas… Mas, retirada da política activa, ela dedicou-se à biografia de Simone Signoret a quem muito admirou. Não apenas pelo seu talento enquanto actriz, mas também pelo seu papel activo nos grandes combates do seu tempo.
Ainda hoje ela continua a ser a única actriz francesa a alguma vez ser galardoada com um Óscar. Apesar do sucesso, acompanhá-la-á uma contínua culpabilização: primeiro, pelas suas origens burguesas; depois, por ter trabalhado, aos 18 anos, num jornal colaboracionista, cujos colegas eram-lhe muito simpáticos, apesar de ignóbeis. Enfim, por ter acreditado nas virtudes de uma União Soviética, cuja deriva totalitária não deixaria, depois, de condenar…
Numa época de maior militância, ela era capaz de chatear todos quantos a rodeavam para garantir mais um assinatura numa qualquer petição. Nesse sentido manterá, até ao fim, uma espécie de genuína ingenuidade…
Outra biografia, agora publicada em França, é a de Hanna Arendt («Dans les pás d’Hannah Arendt», Gallimard). Da autoria de Laure Adler, que reivindica a capacidade de associar as ideias da filósofa alemã à interpretação do caos actual do mundo, localize-se ele no Médio Oriente, na crise dos sem papéis ouda globalização. A sua vida, que percorre grande parte do século XX (de 1906 a 1975), será consagrada a todas as questões morais, sociais e políticas com que se depara. A filosofia será a sua resposta para os tormentos existenciais por que passa. Tanto mais que, adolescente, ela vive o drama de não se conseguir aceitar no seu corpo. Mesmo que a orgulhem as suas raízes judaicas, que a levam a perfilhar o sionismo, antes de inflectir para um convicto anti-sionismo. E será ela, um dos primeiros intelectuais de esquerda a pressentir o perigo, que Hitler viria a constituir…
Laure Adler enfatiza, igualmente, a desadequação de Arendt em relação às convenções, reivindicando uma permanente independência ideológica. Que a levará a entrar em polémica durante o julgamento de Eichmann com quem dele adoptava uma perspectiva meramente maniqueísta. Nesse torcionário nazi ela via explicitada a banalidade do mal, por não só ele se mostrar incapaz de entender o monstro em que o tornara a opção por cumprir as ordens recebidas, como sobretudo por nunca ter sentido a volúpia da transgressão.
Mas, numa figura tão complexa ficará por perceber como Hanna Arendt nunca se libertará da sua paixão por Heidegger, de cujo passado nazi depressa se deixou de poder duvidar...

terça-feira, novembro 01, 2005

LISE SARFATI

Em 2003, Lise Sarfati esteve duas vezes nos EUA durante dois meses. De carro percorreria vários Estados (Texas, Geórgia, Carolina do Norte, Oregon, Califórnia…), com a ideia de fotografar seres humanos nas paisagens, e não separados como nos seus trabalhos precedentes na Rússia. Mas, ao fim de uma semana de viagem, ela constatou não ter conseguido até então um único encontro: «A única altura em que vi pessoas foi quando meti gasolina. Aquilo é um cenário de ficção científica: não está lá ninguém. A geografia dos EUA é muito simples. Os Americanos contentam-se em sairem de casa para o local do trabalho ou ao supermercado. Então perguntei-me: como poderei ver pessoas. E a única maneira era ir-lhes bater à porta».
A fotógrafa francesa, que em tempos de fobia anti-francesa, se dizia belga, abordou os seus futuros personagens em motéis baratos, à saída das escolas, nos supermercados, raramente na rua. Depois negociou com os pais (todos viviam com os pais) para os fotografar em casa, em interiores, ora de caravanas, ora de casas hollywoodescas.
Mas, em Lise Sarfati, não se encontra um trabalho sociológico sobre a juventude norte-americana. As suas imagens são ficções, que se credibilizam na forma como os «teenagers» solitários, cientes da fotogenia da sua idade, se expuseram perante a câmara, tornando-se dela cúmplices.
Há perucas, acessórios, roupa vestida à pressa.
A maioria não olha para a câmara , como se fixassem um lugar imaginário apenas deles conhecido.
Pelas páginas do portfolio passam três dezenas de raparigas e de rapazes em supermercados, em parques de estacionamento..
Explica Lise: «Eu queria que os personagens olhassem com aquela expressão carregada de emoções, que viremos a questionar o resto da vida».
Numa enorme cama de madeira, um rapaz prepara mentalmente o seu dia, como um Oblomov (do escritor russo Gontcharov) a arranjar argumentos em favor da inacção.
Numa cozinha uma rapariga está com um ar perdido, como se fosse uma poetisa reclusa vestida de longos panos brancos. Uma outra está deitada no sofá, com uma expressão derrotada. Como se sentisse a decepção de se ver no seu próprio corpo dentro daquele salão vazio.
«Quando os visitava, eles perguntavam: “O que é que fazemos?”. Eu respondia: “Não sei”. Deixava as coisas evoluírem, decomporem-se.
Lise Sarfati, assumida fã de Robert Bresson, cita de memória o cineasta a respeito dos seus actores não profissionais: «É preciso deixá-los agirem por si, para seres então tu a agires neles».
«Com tais personagens conseguia chegar aos meus objectivos. A jovem e a morte, a jovem em fuga… Quando fiz este trabalho oscilava entre personagens um pouco perversas e as do tipo das de Emily Dickinson».
Janelas, enquadramentos de portas, espelhos, um frigorífico aberto, a barreira de uma varanda… Lise Sarfati adora os cenários fechados, que se interligam com o enclausuramento dos corpos. Sem céu, mesmo nos jardins. Mas uma densidade de cores, detalhes que enriquecem cada micro-história, enunciada antes da fotografia e que prossegue para além dela...

segunda-feira, outubro 31, 2005

A CARMEN COMO PRETEXTO

As iniciativas do Ginásio Ópera começam a ganhar consolidada relevância na forma de inventarmos os fins-de-semana. Desta feita o local do evento foi o Hotel Vila da Galé Ópera, junto à antiga FIL, e tinha a «Cármen» de Bizet como tema. Primeiro, sob a forma de conferência com José Maria de Freitas Branco e José Atalaya. Oportunidade para evocar a injustiça de jamais Georges Bizet ter recebido o reconhecimento por esta obra maior da sua criatividade, tanto mais quanto a estreia foi tumultuosa no repúdio público e da crítica em relação ao apresentado em palco. Uma prova reiterada de como a genialidade custa a ser quantas vezes reconhecida…
E, no entanto, quer Tchaikowski, quer Mahler, viriam a elogiar «Cármen» como uma obra perfeita. Quanto a Nietszche, servir-se-ia dela como arma de arremesso contra Wagner numa polémica, que incendiou a intelectualidade alemã nos finais do século XIX.
Na assistência o já retirado tenor Álvaro Malta trouxe algumas recordações deliciosas sobre o seu passado artístico, mormente quando co-interpretou esta Ópera com uma idosa e gordíssima soprano em quem seria difícil descortinar a sensualidade previsível da protagonista. Até porque, sendo um espectáculo tão popular quanto possível, a ópera deverá assumir-se, à partida, como credível.
Seguiu-se a interpretação de algumas das árias mais conhecidas da ópera, a cargo da meio-soprano ucraniana Laryssa Savtchenko e do tenor Pedro Chaves. Acabados de chegar de um ensaio de «Otelo» no «São Carlos». Ela com um intenso vozeirão, que Álvaro Malta viria a conotar com as suas apreciadas vozes búlgaras, mas só voz, sem qualquer expressividade quanto aos estados de alma supostamente ilustrativos das suas palavras. Ele, pelo contrário, uma muito boa surpresa, quer quanto à pujança da sua voz, quer no respeitante à tentativa de encenar as contraditórias reacções do ciumento Don José.
Ao jantar a conversa com o António Rebordão, um dos responsáveis do Ginásio Ópera, deu para entender como é possível fazer tanto com tão pouco: um orçamento de vinte cinco mil euros tem dado para mais de vinte iniciativas distintas. E já se sonha com a expansão para o Porto e para os Açores…
A concluir a noite ficámos perante o filme realizado por Francesco Rosi e com Júlia Migenes, Placido Domingo e Ruggero Raimondi nos principais papéis. Para apreciar em quase três horas como Bizet concebeu, de forma visionária, uma mulher livre, capaz de exigir do Amor uma dedicação quase absoluta, mas resoluta - sem olhar a consequências - na rejeição quando decepcionada com a qualidade desses afectos.
Apesar de muitas defecções, os resistentes que chegaram até quase à uma da manhã, tiveram o privilégio de constatar a tal sensualidade, que quer José Maria de Freitas Branco, quer Álvaro Malta haviam referido como um dos principais requisitos para uma intérprete desta personagem. Lamentando-se que Migenes tenha perdido as suas qualidades vocais de forma tão inglória e tão precocemente.
Mesmo com o corpo a reclamar da incomodidade das cadeiras, saímos dali com a sensação de termos vivido algo de excepcional...

sexta-feira, outubro 28, 2005

DE JUÍZES, DE MEDIDAS ANTIPOPULARES E DE UM EDIFÍCIO SIMBÓLICO

Ainda que quase todos os agentes ligados à Justiça estejam em greve contra o Governo - juízes, magistrados, funcionários dos tribunais - não sobram dúvidas quanto à falta de popularidade de tal contestação. Sendo uma luta corporativa cinge-se exclusivamente ao universo dos que se dizem prejudicados pelas medidas do Governo como se lhes sobrasse alguma razão do facto de se pretenderem acima dos demais cidadãos na distribuição de sacrifícios exigíveis a todos neste momento difícil.
É uma verdadeira vergonha o comportamento desses agentes da Justiça em tudo quanto têm sido os casos mais mediáticos dos últimos anos, a começar pelo ocorrido na Moderna, passando pela Casa Pia e desembocando, mais recentemente, com o saco azul de Felgueiras. Com tantas provas de dúbio profissionalismo, os senhores juízes e os senhores magistrados vêm defender que a sua «independência» só se revelará possível se forem lautamente pagos e usufruírem de melhores condições de assistência médica do que os demais cidadãos. Dá para citar um ministro deste Governo: «Haja decoro!!!»

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Que as medidas tomadas pelo Governo são essenciais para solucionar a crise de consolidação orçamental herdada dos anteriores (e não esqueçamos que os dois imediatamente anteriores a este foram da responsabilidade do PSD e do CDS, pelo que se revela inqualificável o ar de virgem virtuosa representado por Marques Mendes e Ribeiro e Castro!!!), demonstram-no as palavras publicadas pela economista Teodora Cardoso no «Diário Económico» de 27 de Outubro: Quando uma economia exige a adopção de medidas difíceis, o pior que pode acontecer-lhe é convencer a opinião pública de que o ajustamento é imprescindível, mas não conseguir completá-lo. (…) O país tem condições para uma recuperação bem sucedida se perceber que não pode continuar a suportar assimetrias e ineficiências, que não só têm custos insustentáveis, como apoiam o imobilismo.

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O movimento de indignação popular pela construção no local do antigo edifício da PIDE/DGS de um condomínio de luxo, mas tende a crescer como o demonstra mais um artigo publicado pela professora Clara Queiroz na edição de 28 de Outubro do «Público». Em que ela questiona:
E nós, portugueses e lisboetas, que memória tão curta e irresponsável teríamos se não protestássemos com todas as nossas forças contra este imenso roubo da nossa memória da história recente? Do edifício que corporiza a repressão que sofremos durante quase meio século, mas, sobretudo, da resistência que lhe fez face? Por que não lutarmos para que, à semelhança do que se fez em tantas cidades europeias, se transforme aquele edifício num museu de resistência ao fascismo?

segunda-feira, outubro 24, 2005

CULTURA AO CUBO

Que grande fim-de-semana a nível cultural!
Ontem, no Solar dos Zagallos, decorreu o penúltimo dos recitais subordinado ao Romantismo.
O conferencista voltou a ser o André Cunha Leal, a controlar melhor os nervos do que da primeira destas iniciativas. Ao demonstrar a passagem do Classicismo para o Romantismo ele evocou essa revolução estilística, que tornou obsoletas as regras canónicas até então dominantes no condicionamento da criatividade artística. Ao virarem-se para o seu íntimo, os compositores permitiram-se liberdades até então impensáveis. Explorando os seus estados de alma em comunhão com uma natureza tumultuosa em que a noite e as tempestades correspondem quantas vezes aos seus sentimentos angustiados.
Ou explorando o exotismo das civilizações orientais, muito embora para eles até os cenários ibéricos assumiam essa característica.
Para deleite dos nossos ouvidos contámos com o talento de dois jovens de 23 anos: Eduardo Regula no piano e Ricardo Mendes no violino. Interpretando a Sonata nº 1 de Beethoven, a Introdução e Rondo Capriccioso de Camille Saint Saens e o Zigueunerweisen do Pablo Sarasate.
Á nossa volta a sala estava cheia de ouvintes atentos. No único dos recitais deste ciclo aonde isto se verificou…
Hoje tivemos teatro e, outra vez, música.
No primeiro caso, «Animais Domésticos», a mais recente produção dos Artistas Unidos sob a direcção do Jorge de Silva Melo. Um texto difícil sobre a condição dos seres humanos numa sociedade aonde o direito à felicidade nem sequer é pressentido.
Há um idiota, que é capaz de o não ser, mas vive obcecado pelo desejo de, pelo menos por momentos, conseguir exilar-se da sua própria cabeça. Uma mãe que passa o tempo a contar barcos … ou carros. Uma mulher, que se rira de um rapaz muitos anos atrás, perseguindo-a hoje o sentimento de culpa por ser a responsável pela sua presente cegueira. Uma prostituta, que ensina palavras a quem as não sabe. Um empregado de jardim a quem o encarregado gosta de mostrar «ternura». Dois cães castrados, que nem sabem se são machos ou fêmeas.
É a grotesca comédia humana a desfilar perante os nossos olhos. Com notáveis interpretações de todos - mas todos - os actores, a maioria desconhecidos dos nossos habituais percursos teatrais. Mas deu para reconhecer a Elsa Galvão e o José Airosa, a Sylvie Rocha e o Gonçalo Waddington…
A acelerar atravessámos a ponte para comparecermos no último concerto do ciclo sobre o Romantismo no Solar dos Zagallos.
O conferencista era, uma vez mais, o fascinante José Maria de Freitas Branco, cuja erudição é mais sentida, que meramente colada.
Voltou-se a falar de Schubert e dos lieder, mas também desse canalha chamado Richard Strauss, cuja arte nada tem, porém a ver, com o seu comprometimento activo no nazi-fascismo.
Para interpretar umas treze canções voltámos a ter a soprano Ana Madalena Moreira. E, uma vez mais, à pujança da sua voz, capaz de chegar a registos extremamente exigentes, aliou uma expressividade muito sua, como se o seu coração batesse ao compasso daqueles lamentos perante a ausência do seu objecto amoroso.

terça-feira, outubro 18, 2005

A MORTE DE PA KIN

Pa Kin, o ultimo gigante da geração de escritores chineses anterior à era comunista, morreu em 17 de Outubro, em Xangai, com cem anos. Nunca se saberá se sucumbiu à doença, como o anuncia a agência Nova China, ou se a família e as autoridades chinesas terão enfim acedido à sua vontade de eutanásia, como o reclamava há muito.
As suas obras mais importantes foram escritas antes da chegada dos comunistas ao poder em 1949, em particular a sua célebre trilogia largamente autobiográfica: «Família» (1937), «Primavera» (1938) e «Outono» (1940).
Pa Kin nascera em Chengdu (Sichuan) em 25 de Novembro de 1904, sob o nome de Li Feigan. O seu pseudónimo era em si um verdadeiro programa: a contracção dos nomes de dois anarquistas russos, Bakounine e Kropotkine! Porque Pa Kin foi anarquista, chegando a corresponder-se com Bartolomeo Vanzetti, quando este aguardava execução nos Estados Unidos.
Pa Kin vivia, então, em França para estudos, que nunca chegaria a levar até ao fim, e revoltara-se com o caso Sacco e Vanzetti, que o influenciará profundamente.
Esta tentação anarquista custar-lhe-ia caro: em 1958, Yao Wenyuan, futuro membro do «Bando dos Quatro» durante a Revolução Cultural, publica um texto intitulado «Sobre a ideologia anarquista no romance “Destruição“ de Pa Kin». Durante esse período controverso, os guardas vermelhos irão desfilar sob a sua janela a gritar: «Abaixo Pa Kin, o anarquista mal-cheiroso».
No entanto, Pa Kin fora um comunista disciplinado desde 1949. Aceitara reescrever toda a sua obra para a expurgar da influência anarquista. O herói de «Destruição», Du Daxin muda de ideologia nas edições dos anos 50, convertendo-se num “socialista revolucionário”.
A Revolução Cultural foi cruel para Pa Kin, mesmo que não chegando aos extremos do sucedido com o grande Lao She, «suicidado» em 1966 depois de se ver perseguido. Mais tarde, ele escreverá:
«Fui escravo durante dez anos. (…) Éramos joguetes de uma imensa burla. Essa descoberta foi um choque terrível, que muito me doeu. Nem queria acreditar, porque me fez perder todas as ilusões».
A mulher, Xiao Shan, sucumbe em 1972, vítima de um cancro impossível de tratar devido ao assédio então padecido por Pa Kin às mãos dos Guardas Vermelhos. Num texto comovente de 1979, quando o pesadelo já terminara, ele confiará o seu sentimento de culpa: «Ela ainda estaria viva se não fosse considerada a “cúmplice infame de um intelectual malcheiroso”. Em suma, fui eu a causa do seu sofrimento e da sua morte».
O escritor reclamará, a partir de então, a criação de um Museu da Revolução Cultural. Em vão, já que esse período negro da história maoísta continua muito apagado.
Enfraquecido pela doença, Pa Kin converteu-se progressivamente num ícone mudo, num monumento à glória da literatura comunista, que ele, efectivamente, serviu antes de se tornar sua vítima. Resta a sua obra, anterior a 1949, testemunha da sociedade chinesa feudal e dos tormentos de uma juventude atraída pelo ideal revolucionário.

domingo, outubro 16, 2005

«CHARLIE E A FÁBRICA DE CHOCOLATE»

Demorámos, mas acabámos por ver «Charlie e a Fábrica de Chocolate» do Tim Burton. Foi no Seixal, num Fórum cheio de miúdos, que depararam com um filme algo diferente do que poderiam estar à espera.
Apesar de se tratar de um conto infantil, com as características enunciadas por Bruno Bettelheim para os caracterizar: com a magia operada pelos seus cenários psicadélicos, mas também com o terror suscitado pela forma como se castiga o mal.
Um mal personificado em quatro miúdos particularmente odiosos: um glutão, uma presunçosa, uma mimada e um teledependente. E pelos progenitores, que os acompanham, quanto mais não sejam enquanto responsáveis pela sua má educação.
Mas, como sucede nesses contos educativos, o bem sai premiado e enaltece-se o valor da família: os pais e os avós de Charlie juntam-se-lhe enquanto novo proprietário da fábrica aonde os Oompa-Loompas prosseguirão o seu infatigável labor na criação de inexcedíveis chocolates.
Nesse sentido o filme é muito capaz de gerar alguns sonhos buliçosos nalguns dos miúdos, que enchiam a plateia. Consoante as suas pulsões mais subconscientes eles tanto poderão, adormecidos, sorrir com a ideia de um rio feito de chocolate como rebolarem entre os lençóis com a possibilidade de serem atirados para uma conduta de lixo ou sugados por um tubo…
Para um adulto o prazer situa-se mais no processo narrativo, mais contido na sua mensagem moralista do que a versão do mesmo conto de Roald Dahl dos anos 70, e no esplendor visual da fotografia de Rousselot. Ou aceitando as piscadelas de olho à sua cinefilia, que Burton vai semeando pelas suas sucessivas cenas. Quer invocando os seus próprios filmes - desde «Beetlejuice» a «Big Fish», passando pelo inevitável «Eduardo Mãos de Tesoura» -, quer invocando os alheios, com particular destaque para «2001, Uma Odisseia no Espaço», «O Silêncio dos Inocentes» ou «Psico».
A personalidade de Willy Wonka é, a esse título, ambivalente: caracterizada por paragens catatónicas, ela parecerá tão desconcertantemente simpática numas ocasiões, como indefinidamente inquietante em tantas outras. A vocação para servir de veículo da justiça, aliada à sua condição de filho do personagem desempenhado por Christopher Lee (como esquecer a sua ligação aos papéis de «Drácula») fazem prever um desenlace igualmente trágico para o jovem Charlie.
Não é isso que acontece, porque o final feliz é condição quase obrigatória nas histórias destinadas a um público mais jovem. A recompensa a Charlie acaba por descansar os espectadores com ele identificados, enfim reconfortados com o equilíbrio obtido no final.
Altura em que enquadramos a produção neste tempo em que os princípios de cidadania são recorrentemente violados, muitas vezes por quem maiores responsabilidades deveria assumir na sua defesa.
Por isso mesmo este filme é tão relevante, merecendo uma divulgação muito mais extensa. Porque poderia contribuir para exigir comportamentos mais construtivos dos seus jovens espectadores. Tornando-os melhores, mais exigentes com um futuro tão problemático.
A esse respeito, «Charlie e a Fábrica de Chocolate» vale por milhentos tratados de boa educação.

sábado, outubro 15, 2005

SCHUMANN, BEETHOVEN E BACH NO SOLAR DOS ZAGALLOS

Mais um concerto do «Outono Romântico» no Solar dos Zagallos.
Desta feita o conferencista era um cego, Paulo Nazareth, que procurou polvilhar a sua palestra com alguns exemplos curiosos, mas sem conseguir o efeito pretendido. Começou por falar do caranguejo violinista, prometendo para mais adiante enquadrar a razão de ser da sua citação, e não voltou a lembrar-se dele. Quis crismar Beethoven de «Beethoffen» e foi posto na ordem pelo atento José Maria de Freitas Branco.
Mas, no demais, esteve bem, exemplificando ao piano os acordes fundamentais do romantismo na música, e como dele derivaram tantas e tão criativas variações.
A pianista, uma jovem chamada Joana Gama, de apenas vinte e dois anos, mostrou um talento ainda em maturação, mas que faz prever uma ulterior confirmação com o evoluir da sua carreira. Tanto mais que as três peças executadas - de Schumann, de Beethoven e de Bach - não lhe exigiram qualquer recurso a pauta…

quarta-feira, outubro 12, 2005

UM CONCERTO DESCONCERTADO

Tinha tudo para ser um concerto memorável. Para começar havia o discurso entusiasmado do José Maria de Freitas Branco sobre o papel de Franz Schubert no Romantismo. A lembrar a mesma convicção esclarecida do pai, quando antes e depois do 25 de Abril assumia um papel quase quixotesco de divulgação da grande música universal.
E ficámos, assim, informados sobre a curta vida do compositor, a sua contínua opção pelas tertúlias boémias, aonde apresentava muitas das seiscentas canções, que compôs em tão curto intervalo de tempo. E também sobre a sua adesão aos ideais da Revolução Francesa em contracorrente à tentativa de repor o Ancien Regime na sequência da derrota de Napoleão Bonaparte. E sobre a arte do «lied» em si: a equiparação em importância entre pianista e barítono, entre as palavras poéticas e os sons musicais, que as ilustravam.
Para complementar essa explicação o conferencista mandou entrar Manuel Pedro Nunes e Vera Prokic. Que em pequenos trechos demonstraram essas prévias explicações. Num momento mais confessional, José Maria contaria como uma das canções desse ciclo do «Canto do Cisne» havia desempenhado tão importante papel na sua história de amor pessoal. Com a ausente amada com quem cumpria neste dia vinte e nove anos de felicidade conjugal. E por isso dedicando-lhe esse tema à distância…
Mas, nessa altura, já a sala estava a ser perturbada por alguns sons inaceitáveis num concerto: crianças acabadas de desmamar para quem um concerto deste tipo se revela uma insuportável provação iam fazendo barulho com os seus super heróis e as suas barbies perante a exagerada complacência dos seus irresponsáveis progenitores Atrás de nós havia quem andasse sempre a mexer em papéis, perturbando uma audição, que mereceria ser mais atenta.
E às costumadas tosses juntou-se o inevitável toque de telemóvel numa reiterada demonstração da falta de civilidade de tais espectadores, que desmereciam, sobretudo, do apreciável esforço do cantor e da competência inatacável da pianista.
Claro que as catorze canções do ciclo em causa foram lindíssimas, mesmo que distantes da interpretação de referência de Dietrich Fischer Dieskau…
E ainda tivemos direito a mais dois encores, durante os quais aconteceu o mais inimaginável: o aparecimento de um cão pela porta lateral, que logo se dirigiu à pianista e ao cantor, antes de ser atraído pelas festas do João Maria de Freitas Branco.
O concerto ficou, pois, seriamente prejudicado por tais factores. Porquanto Schubert - e os seus intérpretes de ocasião - mereceriam uma atenção exclusiva, única forma de apreciar devidamente uma obra de génio...