domingo, janeiro 31, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «61 horas» de Lee Child

Há umas semanas atrás envolvi-me numa curta discussão no facebook com quem se insurgia por me ver recusar a José Rodrigues dos Santos o qualificativo de «escritor».
Do outro lado acenavam-me com o seu sucesso quanto ao número de livros vendidos, o que me fez logo recordar o meu pai, quando se insurgia contra o meu proclamado ateísmo e as correspondentes blasfémias sobre quem ia em peregrinação a Fátima, disparando-me aquele que julgava ser o argumento inquestionável:
- Mas os muitos milhares que lá vão são todos estúpidos?
Eu, adolescente rebelde, acenava afirmativamente com o gozo próprio de quem se dispunha a sair vitorioso do conflito de gerações com aquela que, segundo Ary dos Santos, tinha sido feita em ceroulas.
Sobre Lee Child pode-se dizer o mesmo que sobre José Rodrigues dos Santos, embora queira acreditar ser-lhe bastante superior na qualidade da escrita: vende livros como pãezinhos e vê-os frequentemente transpostos para o cinema. E também ele foi homem de televisão, já que trabalhou até aos 40 anos na Granada TV até ser despedido numa das suas reestruturações e se viu desempregado aos 40 anos.
Surgiu-lhe assim a oportunidade para enriquecer como nunca imaginara possível: arranjou um pseudónimo (o verdadeiro nome é Jim Grant) e criou um personagem capaz de pôs os norte-americanos a salivar: um antigo polícia militar, que liderara durante algum tempo uma divisão secreta do Exército até ter um conflito sério com um brigadeiro e voltar à vida civil.
Encontramo-lo, pois, na condição do típico cowboy solitário dos westerns, viajando ao acaso por toda a América sem transportar consigo qualquer bagagem: quando a roupa está suja substitui-a por outra entretanto adquirida.
Em «61 horas» ele fica retido em Bolton, no Dakota do Sul, na sequência do acidente com o autocarro em que viajava e não tarda a ajudar a polícia local a proteger Janet Salter, a testemunha de um julgamento com traficantes de droga, cujos cúmplices querem-na eliminar.
Durante uns dias ele faz parceria com Andrew Peterson, o polícia que todos já veem como o futuro chefe, lutando contra a neve, contra os alertas da Penitenciária próxima, que deixa desguarnecida a testemunha, e contra os dealers refugiados junto a uma antiga construção do Exército durante a Segunda Guerra Mundial, donde costumam deslocar-se nas suas impressionantes motocicletas.
As horas vão avançando e, socorrido à distância por quem ocupa agora o seu lugar na secreta 110ª Divisão, ele acabará por compreender que toda aquela história tinha a ver com o que se escondia no subterrâneo dessa construção singular: toneladas de metanfetaminas, que sobrara da Logística de apoio às forças americanas na intervenção contra o nazismo, e uma parte substancial do tesouro de Platão, o chefe dos traficantes, prestes a ali aterrar com o seu avião particular para tudo recolher.
Reacher não consegue evitar o assassinato de Peterson e de Janet Salter, porque descobre demasiado tarde a identidade do assassino ali a soldo de Platão: o próprio chefe da polícia, Holland.
Mas embora no final fique a ambiguidade quanto à sobrevivência do protagonista, quando explode o esconderijo das drogas e dos pertences de Platão, não ficam dúvidas quanto à punição dos mauzões da história.
Assim, voltando ao início e à minha discussão no facebook: é uma história engenhosa e bem contada? É. Vende muito? Upa, upa! Mas é Literatura? Claro que não! Apenas um divertimento competente, que dá para o ex-apresentador da televisão britânica embolsar uma fortuna!

SONS: a "Partita No 1" de Bach na interpretação de Francesco Tristano

SONS: Piotr Anderszewski interpreta Bach, Schumann e Janacek

O filme de quase uma hora, aqui linkado (https://www.youtube.com/watch?v=rKxsvkzIVpc), está falado em polaco e não tem legendas, mas merece a nossa atenção, porque, constitui um conjunto de reflexões de Piotr Anderszewski sobre a sua relação com o piano, de que é reconhecido como um dos mais exímios intérpretes atuais, e possibilita a demonstração prática desse talento com sucessivos momentos musicais.
Este domingo, pelas 19 horas, teremos a oportunidade para constatar ao vivo o que o filme mostra, num concerto com obras de Bach, Schumann e Janacek. Ora Anderszewski é, além de um dos intérpretes de referência das célebres «Variações de Diabelli» de Beethoven, um dos mais apreciados quando se trata de ouvir Bach.
Ora será com Bach, que ele iniciará o concerto - a Partita nº 6 em Mi menor, BWV 830 - e será com a Partita nº 1, em Si bemol, BMW825 que o concluirá. Ambas as obras foram compostas entre 1726 e 1730 quando Bach vivia em Leipzig e garantia o sustento com os alunos a quem ensinava.
As Partitas enquadraram-se nessa lógica educativa, porque costumavam ser obras baseadas em variações muito comuns na Itália da época. No entanto, como as cortes andavam entusiasmadas com as danças,  estas obras serviriam esses mesmos propósitos. Daí que, para facilitar a sua divulgação e interpretação, Bach as tenha publicado a expensas próprias em 1731 com o título «Clavier-Ubüng”.
«Papillons, op. 2» é a obra de Robert Schumann, que integra o programa do concerto e foi composta exatamente um século depois das de Bach e na mesma cidade de Leipzig. O tema também é a dança, já que evoca um baile onde dois irmãos competem pelo amor da mesma mulher. E como estamos em pleno Romantismo, a obra enquadra-se na exaltação emocional, que caracterizava a época.
Na outra obra do programa - «Sobre um Caminho Verdejante» de Léos Janacek -, composta na primeira década do século XX, constatamos já o fim do Romantismo e a sua substituição pela estética modernista com influências na música tradicional.
Dado que, na quinta-feira, a mesma sala terá outro grande pianista, Nikolai Lugansky a interpretar Rachmaninov, Saariaho e Stravinsky com a Orquestra Gulbenkian, podemos considerar que, musicalmente, Lisboa tem esta semana excelentes ofertas para os melómanos mais exigentes.


DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: O inesperado efeito de um preconceito

Hoje tivemos a demonstração prática dos equívocos provocados por um preconceito. Que podem trazer vantagens ou desvantagens consoante o ponto de vista.
Passo a explicar: nas últimas semanas, com a atividade militante em prol do candidato presidencial em que acreditávamos (Sampaio da Nóvoa) não tivemos disponibilidade para nos informarmos devidamente sobre a oferta cultural na capital.
Para recuperar o atraso acorremos ao Nimas e vimos o último Moretti, que esteve à altura das sempre altas expectativas colocadas nas obras do italiano.
Foi nos trailers antes da visualização desse filme, que vimos o de outro com bastante interesse: «Sítio Certo, História Errada» do sul-coreano Hong Sang-soo e logo o associámos a outro, que andará, algures por aí, em que só no final se descobrirá estar o protagonista morto e, assim, se possuir uma leitura diferente da sugerida inicialmente.
Pusemo-nos, pois, a ver o filme com essa «chave», que nos permitiria apreciá-lo de forma mais informada e atenta aos pormenores, que a indiciassem.

Inicia-se a primeira cena e deparamo-nos com a história de um realizador conceituado, Ham Cheon-soo, que tem um dia desocupado em Suwon, enquanto espera pela apresentação de alguns dos seus filmes no dia seguinte.

É assim que descobre uma belíssima jovem no templo onde decidira descansar. Ela é Yoon Hee-jeong, uma artista plástica com quem sente imediata empatia. Nas horas seguintes passeiam pela cidade, vão ao estúdio dela, jantam e reúnem-se com alguns amigos. Até que, embriagados, concluem a noitada à porta da casa dela, onde a progenitora a aguardava, angustiada.
Iremos assistir a duas variações dos mesmos jogos de sedução, o primeiro mais contido, o segundo mais descontrolado pela embriaguez.
Chegados ao genérico final, concluímos que estivéramos equivocados todo o filme, associando-o a outro com que nada tinha a ver.
A vantagem do equívoco foi dispensarmos uma atenção acrescida aos pormenores, sempre na expectativa de nos entreolharmos e concluirmos: «cá está!».
A desvantagem foi perdermos de vista um projeto muito minimalista em que se conjugam poucos atores e cenários para ilustrarem uma história, que mais não constitui do que pretexto para justificar a principal característica de Hong Sang-soo, segundo o escreve Jorge Mourinha, no «Público» de 20/1/2016: é “um cineasta para quem o que interessa verdadeiramente são os pequenos momentos a que mais ninguém presta atenção e que acabam por fazer a diferença na nossa vida”.
Foi ainda com a experiência de espectadores surpreendidos (e que bom é constatar esse efeito por algo que vemos, lemos ou ouvimos!), que  procurámos informações sobre o realizador e soubemos já ter assinado 16 filmes em 18 de carreira e todos eles se assemelharem a este na forma como coloca personagens a fazerem e a falarem das coisas simples, mas sempre na lógica de uma comunicação, que se estabelece e os desvia da abulia.

sábado, janeiro 30, 2016

SONS: «Turandot» de Puccini na Metropolitan Ópera de Nova Iorque

Hoje à tarde, dia 30 de janeiro, às 18 horas, o Grande Auditório da Gulbenkian apresenta mais um espetáculo no âmbito da sua parceria com a New York Metropolitan Opera. Desta feita é a «Turandot», de que falávamos aqui mesmo há alguns dias atrás, quando abordámos sucintamente o percurso biográfico de Giacomo Puccini.
Nessa altura dissemos ter sido esta a última obra do compositor, que a deixou inacabada ao morrer. Razão para ter sido concluída por Franco Alfano.
Nesta versão temos o berlusconiano Zefirelli a assinar a encenação e um conjunto de intérpretes em que se destacam Nina Stemme no papel principal, coadjuvada por Marco Berti (Calaf), Alexander Tsymbalyuk (Timur) e Anita Hartig (Liú).
O libreto de Giuseppe Adami e Renato Simoni tentou ser tão fiel quanto possível à peça homónima de Carlo Gozzi. Nele conta-se como, assemelhando-se a Shariar em «As Mil e uma Noites», Turandot é a filha do imperador da China, que exerce uma vindicta cruel contra os homens como vingança por ter visto uma antecessora, a princesa Lo-u-ling, sequestrada e morta por um príncipe conquistador.
Muito bela, recebe frequentes propostas de casamento, mas os pretendentes são sempre confrontados com este dilema: ou respondem a três enigmas por ela colocados e desposam-na ou são executados a seu mando.
A prova de que muitos arriscam vemo-la logo no início do primeiro ato, quando se prepara a execução do Príncipe da Pérsia, que falhara na prova a que aceitara sujeitar-se.
Apesar da tentativa dos amigos em dissuadirem-no de candidatar-se, Calaf, o filho do antigo rei da Tartária, arrisca-se e responde acertadamente às três perguntas de Turandot:
- O que nasce todas as noites e morre todas as madrugadas?
- é a Esperança!
- O que cintila vermelho e quente como uma chama, e contudo não é uma chama?
- é o Sangue!
- O que é como o gelo, mas queima?
- é Turandot!
Ao ver-se derrotada. Turandot tenta negar o prémio a Calaf, mas instada pelo pai, aceita-lhe a contraproposta: se adivinhar qual o seu nome até ao nascer do dia, ele entrega-lhe a vida.
Ganha, então, importância a jovem Liu, que cuidava de Timur, pai de Calaf e se apaixonara, entretanto, pelo principe ao ponto de se suicidar para não o trair quando torturada a mando de Turandot.
Calaf força a nota e beija impetuosamente a princesa que desperta para emoções desconhecidas e exuberantes, de que não mais quererá prescindir.
Apesar dos dramas de permeio, a história acaba num happy end reconfortante.
A versão aqui apresentada é a de 2009 no mesmo teatro novaiorquino e está dividida em cinco partes.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: A ocupação nazi da Bélgica (I)

Um homem sentado numa cadeira tendo atrás de si um fundo completamente negro. Adivinhamo-lo septuagenário e ouvimo-lo recordar os três filhos de 2, 5 e 6 anos. Herman, Isaac e Andris, de quem ainda lhe custa falar, tantos anos passados, porque tivesse-os vivido com eles, e a Vida teria sido muito bela.
Disseram-lhe que num museu está exposta  uma fotografia com eles e a progenitora, mas ele nunca a quis ver. Porque sabia-se incapaz de suportar o reencontro com o momento em que eles tinham posado para a câmara.
Entre 1942 e 1944 foram deportados 24915 judeus da Bélgica para Auschwitz, dos quais apenas 1206 sobreviveram.
Se as prisões e o transporte dos prisioneiros foram planificados pelos nazis, a execução foi conseguida com a colaboração voluntária ou inconsciente das autoridades belgas de então.
A Bélgica foi invadida em 10 de maio de 1940, com bombardeamentos, que semearam o pânico na população e causaram um número elevado de vítimas mortais.
Henri Kichka, então uma criança, lembra agora como os pais logo decidiram fugir para França, pois adivinhavam os perigos resultantes da sua condição judaica.
A 28 de maio as tropas belgas capitulam e o governo começa por se refugiar em França para, logo a seguir, estabelecer-se em Londres. Ao partir cada um dos ministros confiou aos funcionários hierarquicamente mais bem colocados nos respetivos ministérios - normalmente os secretários-gerais - os destinos do país, doravante ocupado.
Os alemães decidem sujeitar a Bélgica a uma administração militar, nomeando Alexander von Falkenhausen para governador, e Eggert Reeder para seu adjunto.
A missão principal destes dois homens era a de garantir recursos necessários ao custeamento do esforço de guerra nazi, mas também impor uma paz musculada, que evitasse a necessidade de ali estacionar demasiadas forças militares, que seriam prioritárias noutras frentes.  Por isso começaram por utilizar inteligentemente a eficiente máquina administrativa belga. E, como a população depositava uma grande confiança na polícia, seria na capacidade para a colocar ao seu serviço, que o ocupante garantiu o cumprimento do seu objetivo.
Nos primeiros meses existiu uma colaboração sem grandes sobressaltos, dir-se-ia mesmo uma coexistência pacífica entre a administração militar e a administração civil.  Coube a esta última organização do racionamento e o pagamento dos prejuízos causados durante as operações de ocupação.
Alexander von Falkenhausen, cujo pai administrara a Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial, sabia que não deveria repetir a brutalidade então imposta aos belgas, sob pena de os ver reagir como então.
Durante esses primeiros meses de Ocupação a ordem resumiu-se a «sossegar» os ocupados e conseguiu ter sucesso. Nas ruas as bandas de música do Exército nazi davam concertos para as populações, que se resignavam com a nova ordem a que devem obedecer.
Mas os alemães tinham outro inconfessado objetivo: resolver a questão judaica.
(texto baseado no documentário «Modus Operandi» realizado por Hugues Lanneau, com argumento de Diane Perelsztejn)


quarta-feira, janeiro 27, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «O Livro de Camaleões» de José Eduardo Agualusa (I)

Gosto de ler contos, muito embora poucos sejam os que me ficam na memória tão breves são os estímulos por eles suscitados. Na maioria dos casos considero-os uma espécie de exercícios em que os escritores treinam frases e enredos no intervalo entre projetos mais ambiciosos.
No caso de «O Livro de Camaleões» de José Eduardo Agualusa poderá ter-se justificado tal explicação nalgumas das histórias nele inseridas, muito embora nelas caibam igualmente o cumprimento de encomendas para alguns projetos bem específicos como são exemplo os dois mais extensos e interessantes.
Em simetria, o livro inicia-se com «A Primeira Noite» e conclui-se com «A Última Noite».  No primeiro encontramos o abúlico narrador numa comemoração da passagem de ano. Ao contrário de todos quantos os que o rodeiam ele sente-se como uma lagosta num aquário, sem ideais nem desejos para o futuro. Até que conhece Dandara, uma desconhecida apostada em, com ele, partilhar passas e desejos.
A sua letargia persiste o tempo suficiente para a ver despedir-se e tomar um táxi em direção indefinida. Descobre estar então na primeira noite da sua ressuscitada existência, por já ter finalmente um desejo: o de a reencontrar!
Em «A Última Noite», Agualusa dá largas à imaginação com a inquietação crescente de uma jovem a quem gente desconhecida avisa, ao vivo ou por telefone, para ter cuidado por ser «uma das últimas»!
Quando a avisam para fugir por já não ser possível beneficiar da proteção até então pressentida, ela vai cair na armadilha de sair de casa sem direção definida acabando empurrada para a linha do metropolitano, quando uma composição estava prestes a chegar à estação.
Outra história inserível no género fantástico é «A sombra da mangueira» em que um Construtor de Castelos entedia-se perante a paisagem imutável. Há um rio inalcançável, e pássaros ruidosos, ainda que escondidos, na densa folhagem da árvore. Só mudam as pessoas, que com ele vêm partilhar alguns momentos, tão só feche momentaneamente os olhos.
A exemplo do Principezinho de Saint-Exupéry vemos desfilar sucessivamente o Menino que vendia Amendoins, o Escritor Cego, a Atriz do Vestido Vermelho, o Marinheiro, a Engenheira de Pontes, vacas, comerciantes chineses ou indianos, cirurgiões e tantos outros desconhecidos, que o fazem imaginar-se num limbo postmortem, uma espécie de Inferno mais agradável do que o convencional.
De todos quantos conheceu na sombra da mangueira é a atriz que perdura na memória e o leva a desejar revê-la. O Marinheiro também o avisara, que o rio só poderia ser atravessado se existisse uma ponte … que a engenheira o ajuda a projetar.
Assim, quando consegue reencontrar a atriz, ambos saem da sombra e avançam, luz adentro, na direção do rio, decididos a tudo recomeçar. 

terça-feira, janeiro 26, 2016

ARTES VISUAIS: A arte têxtil de Sheila Hicks

Sheila Hicks já parece ter conquistado prestígio no panorama das artes plásticas há várias décadas, mas só agora descobri a sua obra, quase toda concretizada com materiais têxteis: lãs, linhos, sedas ou acrílicos.
Nascida em Hastings, Nebrasca, há mais de 81 anos, ela chegou a ser discípula de um dos grandes nomes da Bauhaus, Josef Albers, quando estudou em Yale nos anos 50.
No final dessa mesma década ela ganhou uma bolsa e iniciou a vida de globetrotter no Chile em 1957. Desde então tem trabalhado pelo resto da América Latina, pelo México, pela África do Sul, pela Índia e por Itália, muito embora passe a maior parte do tempo entre Nova Iorque e o ateliê de St. Germain des Près no centro de Paris.
A crítica salienta-lhe, sobretudo, o domínio da cor em peças que vão oscilando entre o escultórico, o pictórico ou o espacial, sem possibilitarem uma classificação bem definida.
Para ela tudo começa no papel branco e nos lápis a que recorre para conceber as suas coloridas composições. Depois, com a ajuda de assistentes, trata de as concretizar na prática.
O seu sucesso já é tão notório, que podemos encontrar obras suas nas mais importantes coleções museológicas a nível mundial.

LEITURAS AVULSAS: A falsa neutralidade das imagens

Num artigo da semana passada, publicado no «The New York Times Magazine», Teju Cole insurge-se contra a opinião do editor da revista «Foreign Policy», que negou o lado glamouroso da fotografia a preto e branco de Marion Maréchal-le Pen destinada a acompanhar um artigo sobre a sua crescente relevância na política francesa ao rivalizar em xenofobia com o famoso avô.
Contestando quem lhe apontava os riscos de a apresentar de forma tão atrativa quanto a das que eram utilizadas pelas celebridades do passado, Benjamin Parker não quis aceitar a evidência da dessincronia entre o texto crítico e a leitura dada pela fotografia que o pretendia ilustrar. Nesse sentido uma outra imagem a cores, em que se a vê no meio de um grupo de pessoas, tendo bandeiras francesas como fundo, corresponde mais adequadamente ao sentido do que se pretendia abordar.
Mas Cole recorre a outros livros sobre, e de, fotojornalismo para corroborar a tese em como existe sempre uma parcialidade no que se dá a ver. Por exemplo David Shields publicou «War is Beautiful» em que fundamenta a tese de se tender a dar um sentido estético aos cenários de guerra. E, quando se trata de apresentar corpos feridos, ou mesmo já desprovidos de vida, Susan Sontag constatara como eles eram mais facilmente mostrados se correspondessem a quem vivia noutras latitudes distantes, já que se se tratassem de gente próxima os fotógrafos tornavam-se muito mais discretos.
Outro autor citado por Teju Cole é Peter van Agtmael, autor de «Disco Night, Sept 11», onde apresentou muitas das imagens colhidas nas viagens ao Afeganistão ou ao Iraque. Uma delas é a de sete soldados vistos de cima a varrem o chão com detetores de minas no cenário lindíssimo do deserto de Helmand.
Segundo somos informados, momentos depois ocorria uma violenta explosão, o que se enquadra no conceito do autor: captar uma realidade pouco antes de algo a alterar. O que lhes confere um dramatismo, que não tinham se não recebêssemos a informação complementar.
Mas esse efeito das palavras a acompanhar a aparente neutralidade de imagens, ainda se torna mais pertinente no projeto de Adam Broomberg e Oliver Chamerin, «War Primer 2», em que são associadas fotografias muito conhecidas - as torturas em Abu Ghraib, a execução de Saddam Hussein, a sala da Casa Branca em que vários colaboradores acompanham Obama no iminente assassinato de Bin Laden - a textos de Bertolt Brecht, que lhes acentuam o lado maligno de todas as guerras.
Brecht dissera em 1931 que “a câmara é tão capaz de mentir como a máquina de escrever”. Tratava-se para ele de uma ferramenta desonesta capaz de tornar mais bonito, horrível ou suave o que dá a ver. Mentindo inevitavelmente sobre a realidade, apesar dela revelar a violência, o ódio, o preconceito, que tende a refrear na sua verdadeira dimensão.
É por isso mesmo que se justifica a utilização constante do nosso sentido crítico perante as imagens dadas diariamente por jornais e televisões.

sábado, janeiro 23, 2016

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Minha Mãe» de Nanni Moretti

É possível viver este presente sem estar deprimido? É esta uma das questões, que o filme de Moretti levanta e não consigo imaginar o efeito devastador, que teria ao vê-lo se ainda estivéssemos naquele Março de 2013, quando claudicou a tentativa de repetição da grande jornada de contestação de 15 de setembro de 2012 ao governo de Passos Coelho que quase parecera o início de um movimento insurrecional equivalente ao da tomada do Palácio de Inverno em 1917. Os poucos milhares de resistentes, que percorram as ruas de Lisboa com uma expressão derrotada no rosto, eram gémeos de Margherita e de Giovanni, que veem a realidade transformar-se nos escombros de todas as suas remanescentes ilusões, ademais agudizadas pela iminente morte da respetiva mãe.
Felizmente vi «Minha Mãe», quando os nossos rostos já espelham as expectativas de um tempo novo, que classificar de pesadelo assustador esse passado em que nos víamos tão desesperançados.
Mas o filme de Moretti levanta questões, que as últimas semanas de campanha eleitoral se me colocaram quase todos os dias: quando sentimos abúlicos, desinteressados ou até agressivamente reativos os que deveriam estar mais interessados nesse tempo novo, como estabelecer com eles o canal assertivo de comunicação, que o antigo cinema militante nunca conseguiu verdadeiramente descobrir? Como convencê-los do seu interesse objetivo em que ganhe um ou outro candidato à presidência da República?
Enquanto realizador de filmes militantes Margherita não consegue compreender sequer as variáveis de que se compõem as suas vivências individuais quanto mais criar na tela do cinema uma história de mentalização dos oprimidos para as razões e efeitos da globalização, que os desemprega e miserabiliza?
Há, é claro, a questão da catarse do luto como tema preponderante de um filme, que se desenha em três planos distintos: o da história do filme, o das contradições na equipa de filmagens e o do relacionamento dos dois irmãos com a mãe quase moribunda. Singularmente, por me ver protagonista de história semelhante, poderia ser este último o que melhor atrairia a minha atenção. Mas, porque esse luto já foi feito por antecipação há muitos anos, o filme de Moretti questiona-me , sobretudo, quanto aos impasses atuais entre uma esquerda disposta a retomar a flâmula de mudança do mundo e a sua base social de apoio, mormente os jovens, que se alhearam desse imperativo histórico. E as respostas tardam em surgir...

sexta-feira, janeiro 22, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «American Darling» de Russell Banks (2004)

Depois de «O Coração das Trevas», a África nunca deixou de ser o espelho aumentativo dos terrores e das crueldades do Ocidente. É certo que a Libéria de Russell Banks não coincide com o Congo de Joseph Conrad, mas a protagonista de «American Darling» descobrirá ali a mesma abominação.
O romance começa por ser uma confissão, a de Hannah Musgrave, então com 59 anos e a viver numa quinta dos Apalaches: antes de se dedicar às suas galinhas, teve outras vidas quando, filha única de um célebre pediatra, militara nos anos 60 pelos direitos cívicos dos Negros e contra a guerra do Vietname.
Herdeira rebelde da burguesia puritana e liberal da costa leste militara na organização radical Weather Underground até se ter de refugiar na Libéria para escapar à perseguição do FBI. Assim que viu-se casada com Woodrow Sundiata, ministro da Saúde do governo de William Tolbert, de quem teve três filhos.
 Durante alguns anos viverá em Monróvia a existência fútil da mulher de um dos principais ministros do regime. Mas, em 1980, Tolbert foi assassinado na sequência do golpe de estado do sargento Samuel Doe e Sundiata é pressionado para se separar da sua mulher branca. Ela regressa sozinha aos Estados Unidos.
Porém, seis meses depois é autorizada a voltar à Libéria, conseguindo do novo presidente a autorização para criar um santuário destinado a acolher os chimpanzés sobreviventes de experiências médicas em laboratórios americanos.
A oposição à ditadura de Doe é então conduzida por Charles Taylor e a família de Hannah encontrar-se-á no centro do furacão, que é a guerra civil: em 1990, na presença da mulher e dos filhos, Woodrow é executado à machadada pelos esbirros de Doe, ele próprio sujeito ao mesmo destino algumas semanas depois, quando se verifica a vitória dos rebeldes.
Com o marido morte e os filhos desaparecidos, Hannah regressa aos Estados Unidos.
Dez anos depois regressará pela última vez a Monróvia para compreender as razões da sua fuga dali. Sem encontrar os filhos, consegue saber que se terão, entretanto, convertido em temíveis carrascos.
Fica a questão: quem é afinal Hannah?
A exemplo de muitos outros romances norte-americanos, «American Darling» é uma variação do tema da reinvenção da sua própria identidade. O verdadeiro sonho americano passa por aí: voltar a partir do zero, mudar de aspeto, desaparecer e ressurgir mais tarde na pele de outrem.
Durante toda a sua vida, Hannah procura-se e foge, sempre estranha a si própria, partilhada entre as suas múltiplas identidades: Hannah Musgrave, Scout, Dawn Carrington, Mrs. Woodrow Sundiata.
Russell retrata-a como uma dessas temíveis idealistas capazes de matarem os pais em nome dos seus princípios. Ela ama a humanidade de uma forma fria e abstrata: na sua individualidade os homens são-lhe indiferentes.
Tal como, em jovem, abandonara os pais, também não sentiu escrúpulos em deixar para trás os amantes, os amigos, o marido e até os filhos, porque nunca cuidara de se ligar profundamente a ninguém. As capacidades de afeto só se restringiram aos seus adorados chimpanzés.
Através das vicissitudes por que Hannah passa, Banks denuncia os desvios de toda uma geração, que se julgava capaz de mudar o mundo, nem que para tal se visse obrigada a recorrer à violência.
Revisitando o seu próprio passado Banks leva a julgamento o radicalismo dos anos 60. Mas, a exemplo de Philip Roth em «Pastoral americana» exagera: tal qual se conta e descreve, Hannah torna-se tão monstruosa no seu narcisismo, que acaba por parecer pouco verosímil. Em nenhum momento, consegue emancipar-se do autor que, através dela, exorciza os seus próprios fantasmas, e a sua voz de narradora nunca consegue sentir-se como autónoma.
»American Darling» não se limita a ser uma ficção autobiográfica, assumindo-se, igualmente, como a narração de uma das mais atrozes guerras civis ocorridas na África do século XX. Mas a escolha da Libéria para cenário de uma parte significativa do romance não constitui um acaso: é que trata-se de uma invenção norte-americana, uma terra colonizada no século XIX por escravos alforriados nos Estados Unidos.
A história de Hannah denuncia a miséria crónica do povo liberiano, a corrupção descontrolada dos seus líderes sucessivos, etambém o elo perverso do país com os EUA, como se demonstra no papel decisivo sempre desempenhado pela Embaixada em Monrovia.
Russell Banks conhece muito bem a África, e aborda o imperialismo e o colonialismo sem concessões, mas «American Darling» não é o seu romance politicamente mais contundente. Pelo contrário, ele até permite constatar que Banks sente-se menos constrangido nas denúncias, quando toma por tema os desfavorecidos dentro dos próprios EUA.