quinta-feira, dezembro 31, 2015

ARTES VISUAIS: um Caravaggio e a sua réplica

Em 1969 o quadro “Natividade com S. Francisco e S. Lourenço», de Caravaggio, foi roubado do Oratório de São Lourenço, em Palermo, provavelmente pela Mafia.
Do que dele se sabe teme-se que já não exista, porquanto o próprio ato de retirá-lo da moldura tê-lo-á seriamente danificado.
Quase meio século depois foi agora recolocada uma réplica digitalizada do mesmo quadro no local onde se encontrava, e com uma qualidade tal que os próprios peritos de arte teriam dificuldade em encontrar diferenças entre ela e o original, se por acaso fosse encontrado. A nova tecnologia, aplicada num laboratório madrileno, recorre a pigmentos de tinta como forma de ir preenchendo a tela com cada pixel da reprodução.
Mas, tendo em conta que, ao contrário do quadro verdadeiro, Caravaggio nunca terá posto um dedo nesta réplica, terá ela valor artístico ou reduzir-se-á ao papel decorativo do espaço religioso onde outrora estivera o original? 

DIÁRIO DE LEITURAS: «Mulheres de Cinza», o meu livro do ano

De todos os livros, que li este ano, - e foram muitos! - «Mulheres de Cinza» de Mia Couto é indiscutivelmente a escolha para o de Melhor do Ano.
Primeiro título da trilogia «As Areias do Imperador», tem duas personagens principais: a adolescente Imani, que vive em Nkokolani, uma pequena povoação nas margens do rio Inharrime e vê com grande apreensão a chegada das hordas invasoras do imperador Ngungunyane, lestos em roubar as colheitas do seu povo e violar-lhe as mulheres e as raparigas.
Ela também servirá de criada ao sargento Germano de Melo, um republicano condenado à deportação depois da insurreição de 31 de janeiro de 1891, e enviado para aquela região do sul de Moçambique, como forma de ali dar prova da presença portuguesa.
Quando o romance decorre está-se em 1895 e os colonizadores brancos não mostram capacidade para conter, quanto mais superar, o ímpeto belicista dos invasores nguni. E nada no romance deixa transparecer o facto de, em dezembro desse mesmo ano, Mouzinho de Albuquerque ter conseguido vencer a batalha de Chaimite, fazendo prisioneiro esse mesmo Ngungunyane.
Pelo contrário Mouzinho é frequentemente citado como uma espécie de D. Sebastião, com existência concreta (ou imaginada?) numa manhã de nevoeiro.
O romance vai evoluindo a dois ritmos nas suas quatrocentas páginas: por um lado lemos as longas cartas  de Germano ao conselheiro José d’Almeida, que é a sua quase exclusiva ligação com o poder colonial, não imaginando ser afinal lido por Aires d’Ornelas, que vê como inimigo político; por outro temos as perspetiva de Imani, por quem vamos conhecendo as peculiaridades do seu povo, que começa por ver de forma distanciada, já que fora educada numa missão religiosa, mas com quem se irá identificar progressivamente.
Pelo olhar da rapariga vamos testemunhar o medo dos aldeões ao verem vagas sucessivas de invasores ameaçarem as suas terras, sem que consigam a paz necessária para semearem e colherem os frutos do seu labor no tempo adequado para tal. Conhecemos a passividade de Katini, seu pai, que continua à espera da proteção dos portugueses e a lerdice do irmão Mwanatu, tão escrupuloso a servir de guarda-costas a Germano, como a quem a ele se opõe. Há também a valentia de outro irmão, Dubula, que decide juntar-se aos aparentes vencedores, mas acaba morto no campo de batalha, ou a insensatez de Musisi, o tio, que nunca chega a compreender a inocuidade das suas manifestações de rebeldia.
Sobra o avô Tsangatelo, que parte de Nkokolani e se vai enfiar terra adentro nas minas mais a sul. Quando dele se sabem notícias, compreende-se que tomou por amante outro homem, um tema-tabu que Mia Couto não enjeita tratar neste seu romance, em que se tornaram mais raros os neologismos, mas se manteve um certo realismo mágico bem patente quase no final, quando a terra começa a multiplicar as armas nela enterradas, sendo difícil cavar um palmo de terra para semear algo para comer e não se encontre um paiol pronto a usar.
A leitura de Mia Couto causa um enorme prazer, porque sentimo-nos frequentemente tentados a parar aqui e acolá para melhor apreciar o engenho com que traduziu em palavras a originalidade da história, burilando-as de forma a ganharem uma sonoridade bem percetível se optarmos por uma leitura em voz alta.
Acabado o primeiro volume da trilogia, pois que venham os outros dois...

LEITURAS AVULSAS: O que é a arte?

Ao apreciarmos muitas das manifestações artísticas dos nossos dias somos levados a formular uma pergunta frequente: “mas a arte, agora, é isto?”.
Habituados aos cânones instituídos pelos museus, que não se dedicam à arte contemporânea, ainda levamos muito a sério as estratificações entre pintura, escultura ou o desenho, sem darmos às artes performativas e às novas linguagens suscitadas pelo vídeo e pela informática, o nível de seriedade, que elas reivindicam.
Voltei a ponderar em tudo isso ao ler o longo artigo de Cláudia de Carvalho a respeito de Wasted Rita, a única artista portuguesa convidada por Banksi a integrar a exposição «Dismaland», que é para muitos o grande acontecimento de 2015 no campo das artes visuais.
A artista reconhece que não foi levada a sério durante vários anos, inclusive pelos próprios pais, quanto à exequibilidade do seu projeto de vida. Por isso mesmo a chancela garantida por Banksi e por Vhils, que a convidou igualmente para um projeto de referência exposto na “Underdogs” vieram corresponder a esse ceticismo alheio.
Até pode acontecer que, daqui a um par de anos, ela esteja completamente esquecida, sem ter conseguido ir além da originalidade das obras agora conhecidas, mas o contrário é igualmente viável. Porque, nas artes visuais , torna-se cada vez menos óbvio o que serão os cânones de aceitação de tudo quanto as compõem ou as excluem. 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Ai eu e as minhas contradições!

O que ontem me valeu foi já ter garrafas de espumante a mais em casa, porque podia lá deixar em claro os muitos casamentos e nascimentos concretizados, ou em perspetiva, no derradeiro episódio de «Downton Abbey»?
O que verdadeiramente me chateia na série do conservadoríssimo Julian Fellowes - por isso mesmo deputado do partido de David Cameron na Câmara dos Comuns - é que corresponde àquele tipo de veneno, que fui ingerindo lentamente, sempre ciente da sua verdadeira natureza e lá fui acompanhando as dezenas de episódios agora concluídos.
Gostaria de me arrogar de uma sólida coerência, mas que se há-de-fazer quando nos mistificam tão bem aquilo que execramos? Por exemplo as instituições monárquicas tão incensadas numa história cheia de duques e de condes são o que de mais absurdo ainda constato no mundo atual: haver alguém que nasça logo no topo da escala social por razões genealógicas é algo, que só pode merecer o repúdio de um democrata. Daí o meu arreigado republicanismo. E, no entanto, em Londres, vi-me frequentemente na longa avenida entre o St. James Park e o Palácio de Westminster a ver o desfile dos guardas reais.
Numa lógica semelhante sou um ateu impenitente e, em Roma, não prescindi de visitar o Vaticano sob o alibi de ver, pelo menos uma vez na vida, a Capela Sistina.
Voltando a «Downton Abbey» há também a corroboração de uma velha quadra do nosso poeta Aleixo, que dizia ser preciso misturar qualquer coisa de verdade a uma mentira para que ela fosse segura e atingisse profundidade. Temos assim uma classe aristocrática com costumes pouco vitorianos na alcova.
É verdade que a moral imposta pela puritana rainha era uma enorme mistificação, porque não faltam dessa época os exemplos mais rocambolescos de gente da nobreza envolvida em escândalos sexuais, mas «Downton Abbey» suscita o êxito de audiências com os mesmos condimentos das telenovelas, multiplicando afinidades eletivas quase sempre no respeito pelas castas: os aristocratas vão para a cama com aristocratas, enquanto os criados permanecem maioritariamente cingidos a situações platónicas.
Para Fellowees a boa convivência entre patrões e empregados quase nunca passa pela cama: quando isso sucede, entre Sybil e o motorista Tom, rapidamente este é assimilado à família para se tornar num semi aristocrata mais ou menos tolerado entre os que mandam e os que são mandados.
Dirão os mais convictos defensores da série, que se sente nela o mundo a mudar, com o previsível abandono de todo aquele folclore do passado. Mas o intento do autor é óbvio: evocando o título de um velho programa da BBC ele procura criar uma nostalgia por aqueles «good old days»!
Quer tudo isto dizer que foi um tormento ver a série? Claro que não, tendo ela a qualidade de todas as séries inglesas e o portento de algumas interpretações como é o caso da sempre excelente Maggie Smith, cujas aparições suscitam invariavelmente um sorriso, quando não mesmo um riso desbragado.
Mas será estranho que quer ela, quer Penelope Wilton (que faz o papel da prima Isobel) confessem aos jornais nunca terem visto um episódio da série em que entram como atrizes? É que, elas próprias conotadas com a esquerda inglesa, não têm paciência para verem a triste figura a que se viram condicionadas para ganhar a vida...

segunda-feira, dezembro 28, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: A pirâmide de Wallander

De todas as prequelas escritas por Henning Mankell na série de romances dedicados ao inspetor Wallander - escritas e publicadas já ele se reformara após sucessivas investigações! - «A Pirâmide» é a mais interessante.
O título tem a ver com as Pirâmides do Egito, e particularmente a de Quéops, que o pai de Wallander quis escalar, obrigando o filho a partir para o Cairo a fim de o libertar.  Na teimosia do velho pintor naturalista já haverá algo do alzheimer que, anos depois, o vergará.
Mas a pirâmide é também a da geometria complexa de uma investigação, que parece interligar três situações invulgares sem que nelas se descortine facilmente um nexo com sentido.
A primeira situação invulgar é a da queda de um velho monomotor, que se despenhara na região de Ystad e causara a morte aos seus dois tripulantes. Por voar a baixa altitude, de forma a passar despercebido aos radares do controle aéreo, presume-se facilmente o seu envolvimento numa atividade ilícita, mormente de transporte de droga.
A segunda situação tem a ver com o assassinato á queima-roupa de duas irmãs, que tinham uma pequena retrosaria na cidade, mas mantinham um estilo de vida muito acima do que aparentavam as suas possibilidades. Wallander descobrirá, que passavam períodos de férias assaz frequentes em Marbella, para onde viajavam invariavelmente em classe executiva.
A terceira situação é a do assassinato de um traficante de droga há muito na mira de Wallander, sem que este alguma vez tivesse conseguido incrimina-lo com provas consistentes. 
A metodologia destes  dois casos de homicídio tinha sido a mesma e, provavelmente, com recurso à mesma arma.
Existem, assim, três vértices bem definidos para a base de uma pirâmide, só passível de ser erguida com a descoberta do quarto em falta.
Como de costume nos romances de Mankell o protagonista, ora está com a cabeça toldada pelo excesso de álcool, ora com os pulmões afetados pela forte gripe, de que padece. E o ânimo amoroso também não é o melhor: definitivamente separado de Mona, Wallander vai mantendo uma relação meramente sexual com uma enfermeira a quem tarda a declarar-se dela desapaixonado.
Noutra vertente esta é a Suécia imprevisível onde atrás das aparências mais anódinas escondem-se realidades insuspeitáveis: quem diria que duas mulheres já idosas, e sem nada que as distinga de vulgares cidadãs, pertenciam a um bando organizado de tráfico de heroína? E que a sua morte seja devida à mesma ganância do outro traficante, assassinado nas mesmas circunstâncias.
Só nas páginas finais é que Wallander consegue compreender o sentido do pensamento, que andara quase todo o romance a espicaçá-lo das profundezas da mente concluindo pela culpabilidade comprovada de um disc jockey, cuja atividade noturna nas boîtes de Malmö ou de Lund mais não serviam do que de cobertura para o seu verdadeiro negócio.
De leitura fácil, «A Pirâmide» não é, nem pretende ser uma obra literária ambiciosa, mas propiciou-me umas boas horas de entretenimento compensador...

domingo, dezembro 27, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: não é excentricidade, mas simplesmente estupidez!

Uma vez mais justifica-se recordar a resposta dada por Truffaut a quem o acusava de só emitir críticas positivas, senão mesmo elogiosas, aos filmes sobre os quais escrevia. Ele só investia tempo em pronunciar-se sobre os filmes de que, efetivamente, gostava, porque aos outros, aos maus filmes, limitava-se a ignorá-los.
Se me pusesse nessa posição, «O Excêntrico Mordecai» não mereceria sequer um par de linhas. Mas, porque estiveram envolvidos apreciáveis recursos de produção, nomeadamente ao nível do elenco, podemo-nos interrogar como é possível criar algo de tão indigente e como Johnny Depp não teve a noção de como lhe fica mal a faceta de canastrão.
Se Peter Sellers conseguia fazer-nos rir em comediazinhas sem grande imaginação era porque possuía um talento superlativo, que Depp não tem. O resultado é, assim, uma história completamente idiota com um conjunto de estereótipos - o aristocrata falido, o polícia apaixonado, o russo estalinista, o ricalhaço americano, o criado imprescindível, etc. - apenas capaz de entreter quem vai ao cinema mais pelas pipocas e pela coca-cola do que pelo que se vê no ecrã.
Num ano em que vi excelentes filmes apetece parafrasear o título de uma comédia italiana dos anos 60: como me foi possível chegar a tão baixo patamar?
Se tivesse de escolher o pior filme do ano este ganhava lugar garantido entre os primeiros classificados...

sábado, dezembro 26, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «O que significa amar» de David Baddiel

Há livros merecedores de apreciações muito favoráveis, mas me deixam quase indiferente, mesmo esforçando-me por levar sua a leitura até à última página.
À partida «O que significa amar» tinha tudo para justificar o interesse em lê-lo, se me limitasse a considerar a biografia do autor. De facto, David Baddiel tem origens judaicas, mas assume-se 100% ateu e socialista, e foi ator de stand by comedy, o que daria expectativas quanto à possibilidade de suscitar alguns sorrisos inteligentes.
Depois há o início prometedor: o equívoco em que se inicia a relação adúltera entre Emma e Vic. Está-se, então, no auge da crise paroxística em torno da morte de Diana Spencer e essa protagonista interpreta erradamente os olhares lacrimejantes dele - devidos à febre dos fenos - como reflexo de uma sensibilidade dela desconhecida. Porque eros  e tanatos, andam frequentemente relacionados ei-los de imediato na cama a satisfazerem as mútuas necessidades: dele as sexuais, dela algo mais do que isso, porque se confunde com o amor.
Não viria mal nenhum ao mundo se Vic não fosse o melhor amigo de Joe, o marido de Emma por quem ela sentiu arrefecer-se o entusiasmo desde o nascimento de Jackson, o filho de ambos.
A relação clandestina torna-se numa rotina das terças-feiras, muito embora perpassada pelos problemas de consciência de uns e a inexplicável sensação de desconforto dos conjugues traídos. A de Vic chama-se Tess, e só tem estatuto de namorada, mas sente produzirem-se mudanças, que a fazem desconfiar de algo perturbador e a levam, uma noite, a dormir com … Joe.
Esta relação dos traídos resulta, igualmente, de um equívoco: sendo cientista num laboratório, Joe fizera as análises a uma biópsia de tecido cerebral, onde detetara uma versão particularmente maligna  identificada como pertencendo à namorada de Vic. Fora ao pretender confortá-la e descobrira não existir aparente nexo entre ela e a dona da amostra, que Joe se embebedara e acordara na cama com Tess.
É claro que a amostra pertencia a Emma: ela quisera esconder os exames a que se submetera devido a dores de cabeça e a perder-se no caminho para casa e escolhera, maliciosamente, o nome da rival para se identificar no hospital.
Por essa altura o final torna-se imprevisível para quem vai acompanhando as vicissitudes amorosas do quarteto em causa e, convenhamos que Baddiel não aposta em nenhum happy end, que o tornasse mais conotável com a literatura cor-de-rosa: Emma morre num acidente de viação, quando regressa a casa, depois de uma relação fracassada com Vic, a quem a sua doença privara de capacidade de ereção e Joe descobrirá tudo quanto se passara, muitos meses depois, quando vivia a culpabilização de não ter feito quanto estava ao seu alcance para não se despedir da defunta, com quem o relacionamento conjugal se tornara comprometedor.
Resta a novidade de Vic estar com sida e ter sido em parte culpado pelo desenvolvimento anormalmente rápido do tumor de Emma, deixando aqui uma certa ambiguidade sobre o castigo do adultério. Se Baddiel não se afirmasse totalmente ateu, poderia pensar-se que tal castigo teria algo de divino…
Mas, concluída a leitura, podemo-nos interrogar: está tudo muito bem construído e razoavelmente escrito, mas que mais? Para além dos jogos de equívocos e das personalidades complexas das personagens, o que sobra? O que nos faz relembrar este romance daqui a um par de meses? Pessoalmente acredito que depressa o esquecerei...

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: as memórias de Polanski

Apesar de «Por Favor Não me Morda o Pescoço», «Chinatown» ou «Frantic» serem três filmes de que muito gostei, Roman Polanski nunca foi realizador, que me suscitasse grande simpatia. Independentemente da razão, que lhe atribuo no caso de abuso sexual de que foi acusado nos EUA e pelo qual passou por vicissitudes inacreditáveis nos anos mais recentes.
Este documentário de hora e meia procura dar-nos as chaves interpretativas do seu cinema e trabalho criativo através da respetiva biografia.
Construído a partir de uma longa entrevista entre Polanki e Andrew Braunsberg, que lhe produzira «MacBeth» e «O Inquilino», o projeto evoca a infância no gueto de Cracóvia, os primeiros filmes na Polónia comunista, a carreira em vários países europeus e nos EUA, incluindo o assassinato de Sharon Tate e a controvérsia em torno da sua prisão em 1977 culminando nos anos mais recentes, vividos em França com a mulher, Emmanuelle Seigner.
Essas conversas foram registadas no chalé suíço de Gstaad, quando estava em prisão domiciliária, e aguardava o resultado do pedido de extradição para os EUA.
Como de costume as conversas são entrecortadas com extratos dos filmes, imagens de arquivo, títulos de jornais e fotografias inéditas, que ilustram mais aprofundadamente a vida do cineasta.

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Roman Polanski, a film memoir» de Laurent Bouzereau

SONORIDADES: do verismo ao realismo poético

Herdeiro de quatro gerações de organistas e de mestres de capela, Puccini parecia vocacionado para dedicar-se à música religiosa, tanto mais que começou logo em criança a evidenciar-se na classe de órgão do Instituto Pacini.
Assim sucederia se não passasse por um momento revelador: a representação de “Aïda” em Pisa, em 1876. Foi essa experiência que o convenceu a orientar-se para a arte lírica, mudando-se então para Milão onde, durante três anos, estudaria com Antonio Bazzini e Amilcare Ponchielli.
A crítica assinala-lhe o talento quando lhe conhece a primeira obra: «Capriccio Sinfonico». Depois, embora não consiga vencer o concurso lançado por Edoardo Sanzogno para uma ópera num ato, consegue que Arrigo Boïto lhe apadrinhe a estreia no Teatro dal Verne, em Milão, para essa obra, intitulada “Le Villi”.
Estava-se em 1884 e ela revelava um tal sentido dramático, que Giulio Ricordi convida-o para compor outra ópera, de maior fôlego, destinada ao Scala.
Infelizmente para o jovem Giacomo, «Edgar», baseado numa história de Alfred de Musset, é um fracasso clamoroso, que ele atribui à falta de consistência do libreto.
Houve, então, mérito em Giulio Ricordi em não perder confiança nele, pois vê-lo-ia compor de seguida uma das suas primeiras obras-primas: «Manon Lescaut» (1893), baseado em Massenet.
Estreado logo após a “Cavalleria rusticana” de Mascagni (1890) e a “Pagliaci” de Leoncavallo (1892), e oito dias antes da récita inaugural de “Falstaff”, tudo indicava que Puccini integraria o lote dos compositores veristas, influenciados pelo grande mestre da ópera italiana. Assim o indicava o terrível exemplo da força das paixões, que o Abade de Prévost evocava, ao mesmo tempo que se revelava um testemunho sedutor da época da Regência.
Puccini não se mostraria tão pouco ambicioso, que se deixasse encerrar numa escola ditada por regras, que não fossem as suas. A obra seguinte já será de rutura com tal cânone:  «La Bohème», apresentada em Turim, sob a direção de Arturo Toscanini.
Estava-se em 1896  e era a primeira vez que a poesia do realismo acompanhava um cenário contemporâneo, contrapondo a imponente fantasia à terna emoção, pós-romântica colorida com alguma sensualidade.
Puccini criara a obra na sua nova residência de Torre del Lago, construída nas margens do lago Massaciucoli, e intuira a fulgurante carreira, que com ela iniciaria. É que nunca sentira alcançar tal justeza de tom  e a uma tão harmoniosa estética da angústia, apesar do inato domínio das leis da encenação e da direção musical. A indissociável união da melodia com a harmonia teve nessa obra um exemplo eloquente.
Na versão, que aqui se linka, realizada em 2009 por Robert Dornhelm, o protagonismo cabe ao “casal” então na moda constituído por Anna Netrebko e Rolando Villazón. E é espetáculo em que vale a pena investir duas horas  pela garantia de se revelarem compensadoras... 

SONORIDADES: «La Bohème» de Puccini, com Netrebko e Villazón

SONORIDADES: «Capriccio Sinfonico» de Puccini

«Capriccio Sinfonico» é a primeira obra de Puccini que a crítica elogiou, muito embora se tratasse ainda de um trabalho escolar...



sexta-feira, dezembro 25, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: ser ou não ser herói, eis a questão...

Julgo que todos os rapazes colocam a si mesmos uma pergunta existencial antes de chegarem à ininterrupta sucessão de provas na vida adulta: em situações limite como me comportarei? Como cobarde? Como herói?
Quando passei por esse dilema o fascismo ainda existia e a questão punha-se de uma forma muito específica: se for torturado pela pide, saberei calar-me ou bufarei tudo quanto sei e não sei?
O imperativo da heroicidade está colocado aos rapazes desde muito cedo. Mesmo que os genes o predisponham para a fraqueza! E ele ainda mais se acentua, quando se chega à condição de pater familias, aquela em que se é responsável pelo bem estar e sobrevivência da família.
O protagonista de «Força Maior» falha estrepitosamente quando as circunstâncias revelem a sua verdadeira natureza: trata-se de um momento muito curto, mas aquele súbito terror de se ver engolido por uma avalanche, quando estava a almoçar no terraço de um restaurante alpino, leva-o a fugir sem se preocupar com a salvação da mulher ou dos filhos.
Aquelas que seriam uma férias memoráveis na neve transformam-se num prolongado calvário, porque Ebba não tolera a atitude do marido. Ela que o julgava capaz de priorizar os valores em relação á sua própria sobrevivência, constata o contrário. E a situação torna-se ainda mais complicada, porque ela não hesita em denunciá-lo aos amigos com quem jantam enquanto ele entra em processo de negação, desmentindo aquilo que a câmara por si empunhada nesse momento registara sem margem para dúvidas.
Temos, assim, colocada a questão da confiança no casal, sem que Östlund se preocupe me dar-nos respostas definitivas. O final em aberto, com todas as ambiguidades nele subjacentes, deixa o espectador na perplexidade do questionamento das suas íntimas convicções.

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Força Maior» de Ruben Östlund

quinta-feira, dezembro 24, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: ««Frederico II, Rei da Prússia» de Jan Peter

Há três anos a Alemanha festejou o tricentenário do nascimento de Frederico II, que, enquanto rei da Prússia, procurou ser um amigo das artes, um grande estratego militar e um déspota iluminado.
Nesse século XVIII a Europa imitava o brilhantismo, que Luís XIV associara à coroa francesa, e os monarcas seus contemporâneos rivalizariam quanto á contratação dos melhores filósofos e compositores da época.
Foi para dar a conhecer a personalidade de tal rei, que Jan Peter rodou uma ficção documental de longa metragem.
«Frederico II, Rei da Prússia» inicia-se em 1763, quando a Guerra dos Sete Anos está a chegar ao fim. Liderando as suas tropas na direção de Berlim, ele passa por Kunersdorf, onde ocorrera uma batalha ali perdida quatro anos antes.
Outrora  conhecido pelo seu garbo, o soberano é então um homem fatigado, desencantado, solitário e misantropo, que se entrega às recordações associadas ao pai obcecado pelo rigor e pelas virtudes militares. E que, amiúde, o humilhava.
Apesar do afeto da mãe e da irmã, o jovem Frederico só pensa em fugir. Depois surge outro tipo de encantamento quando, já no serviço militar, encontra Hermann von Katte, um oficial com quem partilha o prazer pela literatura e pela música.
Quando ambos decidem escapar, são capturados e acusados de alta traição. Se Frederico escapa à pena capital, o pai obriga-o a assistir à decapitação do amante.
Doravante o futuro soberano compreende as vantagens da duplicidade para escamotear o feitio efeminado. E, quando chega ao poder manterá essa estratégia pessoal conciliando a intransigência nos campos de batalha com a sensibilidade e a elegância, quando estava nos seus castelos.