terça-feira, agosto 31, 2021

Out of the Clouds, Basil Dearden, 1955

 

Há um quarto de século o cinema americano retomou os filmes corais em que diversos personagens movimentavam-se num mesmo espaço geográfico e acabavam por interagir depois de terem seguido rumos mais ou menos paralelos. Magnolia de Paul Thomas Anderson, em 1999, ou Crash de Paul Higgis em 2004, foram dos títulos mais premiados e elogiados pela crítica internacional. Mas esse processo narrativo tivera antecedentes ao longo da História do Cinema, mesmo que a distância temporal nos faça sentir essas propostas demasiado datadas.  É o caso deste Out of the Clouds, que estreou entre nós em fevereiro de 1956 e teve por cenário quase exclusivo o aeroporto de Heathrow. Mas se boa parte da rodagem foi aí feita, Dearden não se privou de criar um dispendioso cenário nos estúdios da Ealing, contando para tal com o suporte financeiro de duas das grandes empresas de aviação comercial da época, a BOAC e a Pan Am, que não escondiam o interesse de transformarem um negócio ainda orientado para as elites numa grande indústria contando com as classes médias para se rentabilizarem.

Dearden já recorrera ao mesmo tipo de argumento com quem trabalhava no porto de Londres, ou o utilizava, num filme de grande sucesso comercial, Pool of London, em 1951. Para fazer o mesmo relativamente ao cenário de um aeroporto serviu-se de um romance de John Fores - The Springboard - de que extraiu diversos estereótipos de personagens, que lhe serviram de motores da ação: um experiente ator empurrado para uma carreira em terra a controlar o tráfego aéreo por ter problemas de saúde, um outro colega mais jovem interessado em encontrar namoradas em cada escala ou um par de passageiros, que descobre o amor durante uma viagem para que tinham partido como completos desconhecidos. Embora Dearden nunca tenha entusiasmado pela sua originalidade - é o paradigma do artesão, que faz bem o trabalho sem rasgos de imaginação - o filme comporta uma vertente documental sobre os usos e costumes da época em que foi rodado. E é exemplo de como um microcosmos pode servir de espelho alargado do tipo de sociedade em que situou a sua história. 

domingo, agosto 29, 2021

O regresso à Sabedoria

 

Foi por intermédio de Edgar Morin, que cheguei a The Rock, poema de T.S. Elliott para os coros da peça homónima, que assinou em 1934. Nele questiona:

“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?
Onde está o conhecimento que perdemos nas informações?

E embora o filósofo francês desconfie da palavra «sabedoria» a frase ecoa em mim como proveitosa lição, que este dificílimo ano de 2021 está a propiciar. Porque passei anos e anos a acumular conhecimentos e informações das mais multifacetadas proveniências e temas para chegar à conclusão que o Principezinho de Saint-Exupéry nos confidenciara atempadamente: que o essencial é invisível aos olhos!

Desde 17 de junho, data de alforria da Elza do Hospital de Almada, tornaram-se outras as prioridades, mudaram de foco todas as atenções e concentraram-se no que mais importa. Os resultados têm sido exultantes e permitem concluir que, se não cura, o Amor ajuda a superar os medos e angústias inerentes à implacável doença. E essa é esquecida Sabedoria, que se sobrepõe a todos os conhecimentos e informações remetidos doravante para segundo plano.

sábado, agosto 28, 2021

Mais um dia de vida, Raul de la Fuente e Damian Nanow, 2018

 

Pode um jornalista ser ator da realidade, que  apenas deveria testemunhar e reproduzir por palavras ou imagens? Ou pode e deve intervir, quando a consciência lhe dita a necessidade de não se mostrar falsamente imparcial e tomar posição por um dos lados em luta? É uma das principais questões levantadas por esta adaptação do livro publicado em 1975 pelo notável repórter polaco que foi Ryszard Kapuscinski. Até porque procura dar resposta ao epílogo por ele assumido na reedição de 2002 em que manifestava a vontade em saber o paradeiro dos que conhecera durante a guerra civil de Angola no seu ano da independência.

Tratando-se do livro mais amado do jornalista, que terá regressado da ex-colónia portuguesa como autêntico escritor, Fuente e Nanow associaram a animação a imagens de arquivo e a entrevistas com os que então o conheceram para demonstrar a razão dos que muito o admiram. E revelam as vicissitudes por que passaram os angolanos para acederem à independência livrando-se da ingerência direta dos sul-africanos, ou indireta da CIA, ao mesmo tempo que Moscovo os pretendia abandonar à sua sorte, valendo-lhes então a solidariedade internacionalista dos cubanos. Demostra-se a crueldade terrorista da Unita e da FNLA e exalta-se o heroísmo dos comandantes do MPLA em que avulta a coragem de Carlota (tão precocemente desaparecida) ou do português Farrusco, que mudara de trincheira durante a guerra colonial e é quem primeiro enfrenta a invasão do regime do apartheid.

Diferente de Valsa com Bashir com que foi comparado, Mais um dia de vida é exemplo de como a animação pode contribuir para dar da História uma representação aliciante e fiável.

sexta-feira, agosto 27, 2021

Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, Hirokazu Kore-eda (2018)

 

Remetido Takeshi Kitano para obra cada vez mais esporádica e devolvida ao universo dos yakusas, é Kore-eda o realizador japonês cujos filmes mais me interessam atualmente. Não só porque a abordagem das famílias atuais assume dimensão universal, mas também por não se eximir de denunciar a deriva ultraliberal do seu país, sobretudo a partir do modo como os governos de Shinzo Abe precarizaram os empregos e deram machadada fatal no que restava dos direitos laborais.

Em Shoplifters conhecemos uma família nada tradicional, constituída por um casal, uma avó e um filho adotivo a que se junta uma outra miúda, ainda mais nova, recolhida na rua, porque negligenciada pelos seus verdadeiros pais. Nenhum deles tem laços biológicos com os demais, mas todos criam empatias fortes, demonstrativas de como o conceito de família a  eles não se podem cingir. Naquela casa situada num dos mais pobres bairros de Tóquio persiste aquela beleza antiga de coabitarem três gerações  sob o mesmo teto criando uma espécie de oásis indiferente à selva urbana, que domina lá fora. Dela retiram a magra pensão da velha anfitriã, os proventos de trabalhos precários em que não existe qualquer proteção para os acidentes deles colhidos e o que conseguem surripiar nos pequenos roubos em que o pai e os miúdos se especializam. Uma vez por ano vão ao mar num momento de rara, mas superlativa felicidade.

Sabermos que, hoje em dia, 40% dos empregos no Japão, obedecem a essa lógica ultraliberal de não comportarem qualquer garantia para quem os desempenha, e explica que o governo de Abe e os seus apoiantes tenham ficado incomodados com o filme e, sobretudo, com a Palma de Ouro por ele recebida em Cannes. Até porque o ilusório suporte garantido pelas nossas sociedades judaico-cristãs - a caridadezinha ao jeito das tias Jonets - não existe na cultura nipónica: um pobre, um sem abrigo, é abandonado à sua «sorte», porque não teve «mérito» para escapar a esse «destino». A brutalidade dos patrões japoneses é impiedosa, sendo os mais velhos, as mulheres e as crianças as suas maiores vítimas. Não é por acaso, que são essas as categorias sociais mais glosadas nos personagens do filme.

Não deixa de ser curioso o processo criativo de Kore-eda, que relativiza a importância do argumento e faz da rodagem um contínuo work in progress em que os atores são chamados a colaborar, incumbindo-se dos seus próprios diálogos e modelos de interpretação. A ideia geral vai sendo trabalhada e é assim que chegamos ao desiderato em que, morta a avó e enterrada clandestinamente para não ficarem em causa os proventos colhidos da sua reforma, a família se estilhaça. Aparentado com o cinema social de Ken Loach, Kore-eda assume não conseguir uma tão demarcada estratificação entre explorados e exploradores, porque a sociedade em que vive tem uma complexidade, que escapa aos nossos cânones ocidentais. 

quinta-feira, agosto 26, 2021

Frances, Graeme Clifford (1982)

 

Tal qual existem obras de pintores amadores, que alcançam a qualidade de muitos dos profissionais, mesmo que estejam cientes de não se lhes poderem equiparar, também existem filmes de esforçados artesãos, incapazes de alcançarem o prestígio dos reconhecidos como talentosos autores.

Graeme Clifford é um caso paradigmático desse tipo de constatação: de origem australiana fez boa parte da carreira na televisão onde se incumbiu de episódios tão diversos quanto o foram as séries «Os Vingadores» ou «Twin Peaks». Mas tem, igualmente, o currículo marcado pelas colaborações com Robert Altman que não prescindiu da sua ajuda em muitos dos mais interessantes títulos que realizou.

O ponto alto da filmografia de Clifford foi Frances em 1982, que retratou o trágico destino de Frances Farmer, uma atriz muito conhecida dos anos 30, quando contracenou com Bing Crosby ou Cary Grant em filmes de grande sucesso. E, no entanto, logo se viu presa na teia lançada pela sinistra mãe, Lillian, que a fez internar em vários manicómios ao assumir-se como sua tutora legal. Quando recuperou a liberdade nos anos 50, Frances ainda tentou relançar-se, mas só conseguiu trabalhos esporádicos na televisão até o cancro a vencer em 1970, contava apenas 56 anos. Para trás tinham ficado anos de rebeldia na adolescência, chegando a causar escândalo com a negação da existência de Deus num concurso de oratória.  Depois, dentro da Paramount, prosseguiu a via anticonformista até por se ter ligado a Clifford Odets, um dos dramaturgos conotados com o Partido Comunista e que seria investigado pela Comissão de Atividades Antiamericanas, embora tenha-se então comportado com a mesma insidiosa conduta de Elia Kazan. Para Frances, porém, a desilusão, fora anterior, porquanto ele demonstrara-lhe ser um daqueles esquerdistas de salão mundano cuja coerência desaparecia, quando dele saía. Por essa altura Hollywood surgia-lhe como a impiedosa e alienante fábrica de mentiras atirando-a para os precipícios psiquiátricos.

No filme Sam Shepard faz de Harry York, o amigo que tenta livrar Frances da deriva mental sem o conseguir, porque, a exemplo de Voo sobre um ninho de cucos, os manicómios eram infernos carcerais, que agravavam o periclitante estado mental dos que tinham a desdita de neles serem internados. A exemplo do personagem de Jack Nicholson no filme de Milos Forman, também Frances foi agredida e lobotomizada.

Inscrevendo-se num tipo de cinema, que estava a desaparecer dos ecrãs pelo crescente sucesso dos blockbusters, Frances foi exemplo de um debate muito aceso na época sobre os excessos da psiquiatria.