quarta-feira, abril 27, 2011

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (6)

Nas suas memórias enquanto cidadão da grande metrópole à beira do Bósforo, Orhan Pamuk recorda como, em criança, ia mudando de casa à medida que se sucediam as falências do pai e dos tios e a família empobrecia. Razão para um clima familiar marcado pelas ásperas discussões entre os progenitores.
E, no entanto, o jovem Orhan tinha a sorte de contar sempre com varandas ou janelas com vista privilegiada sobre o Bósforo, o que lhe dava o ensejo de se dedicar ao passatempo preferido: contar os navios que por ali navegavam. Mormente os de bandeira soviética, sempre a transitarem a horas muito tardias para passarem despercebidos.
Influenciado pelos romances infantis e juvenis, o jovem Pamuk chega a encarar a possibilidade de denunciar as manobras militares soviéticas aos seus compatriotas, imitando os heróis mais mediáticos de então.
Mas o que verdadeiramente o entusiasmavam eram as catástrofes marítimas: os incêndios em petroleiros, que chocavam entre si e poluíam as águas calmas do estreito, se não mesmo invadiam as margens tranquilas.
Interesses hoje recordados com a distância temporal, que desculpa muita da irresponsabilidade de então.

Tchernobyl forever - Entretien fleuve avec Alain de Halleux

Documentário: TCHERNOBYL 4EVER de ALAIN DE HALLEUX

Cumpriram-se agora vinte cinco anos sobre a catástrofe de Tchernobyl, a mais terrível de quantas aconteceram com origem nas actividades industriais humanas.
Para não permitir que ela caia no esquecimento e, sobretudo, nos distraiamos dos efeitos terríveis ainda relacionados com a contínua degradação dos seus escombros, Alain Halleux foi à procura de jovens ucranianos animados pelo mesmo espírito de confrontar os seus contemporâneos com essa realidade. Tanto mais que, embora já nascidos depois da explosão, qualquer deles transporta no ADN as condições propícias para o surgimento de doenças incuráveis.
Alguns tornaram-se entusiásticos jogadores de «Stalker», que permite visualizar toda a central e a cidade mais próxima sem incorrer nos riscos de ser afectado pela intensa radiação. Que promete manter os medidores de roengtens em níveis elevadíssimos nas próximas centenas de anos.
Outros passaram para a poesia e para a música rock algumas das suas interrogações sem resposta sobre as causas e as consequências de tal acontecimento.
Nesse 26 de Abril de 1986 os acontecimentos que decorreram no reactor nº 4 da central tiveram um impacto enorme não só em quem vivia perto dele, mas também na própria história humana: a queda do mito soviético, com o derrube do respectivo regime e o advento das independências das repúblicas até então aglutinadas no seu império, acaba por ter consequências nos nossos dias e no aparente domínio incontestado do capitalismo selvagem.
Podemos, pois, considerar Tchernobil como muito mais do que uma catástrofe nuclear: ela destroçou as ilusões num outro tipo de vida, marcado por valores admiráveis, mas pouco consonantes com a realidade. Daí que urja uma recuperação de tudo quanto, então, se perdeu. Com a noção de subsistir muito de irrecuperável, mormente no caso desses milhares de vítimas, que a curto, médio e longo prazo, sofrem as consequências da suas radiações.
Se há quem não tenha colhido lições do sucedido - o governo ucraniano tem um plano energético em que prevê a construção de novas centrais -  há quem ainda passe os dias a imaginar como poderá evitar males maiores. O que poderá passar pela montagem de um novo sarcófago, que cubra toda a zona afectada e remova o combustível ainda existente nos demais três reactores, que continuaram a trabalhar até 2000.
O potencial de destruição de Tchernobyl ainda está longe de estar controlado e não esta excluído o cenário de um reavivar da crise, que ponha em causa toda a subsistência da população ucraniana, que continua a ser das mais pobres da Europa. Nesse sentido, Tchernobyl, e mais recentemente, Fukushima, acabam por dar razão a quem recusa um futuro energético dependente de forças tão incontroláveis como o são as decorrentes das reacções nucleares...


segunda-feira, abril 25, 2011

Documentário: «LA PAZ, LA PLUS HAUTE CAPITAL DU MONDE»

Metêssemo-nos num avião e escolhêssemos como derradeiro destino o de La Paz, capital da Bolívia.
O mais provável seria que nos sentíssemos mal ao sairmos do avião. Porque, situado a 4300 metros de altitude, esse aeroporto obrigar-nos-ia a uma adaptação brusca do organismo para condições de pressão a que não estamos habituados. Fosse naturalmente, fosse com recurso a respiração artificial, os pulmões dificilmente começariam por encontrar ritmos adequados de expiração e de inspiração.
Mais abaixo quinhentos metros, La Paz é a capital situada a maior altitude. E espaço de tais extremos, que não se cingem a essa especificidade geográfica: transformada numa imensa megalópole de dois milhões de habitantes, o seu crescimento descontrolado suscitado pela imigração das populações rurais transformou-a num imenso barril de pólvora pronto a explodir.
As colinas circundantes ao vale aonde ela se situava, foram ocupadas por casas paupérrimas, muitas vezes de tijolo à vista, já que não sobrara dinheiro para o devido reboco, e em que a água canalizada, a electricidade ou a rede de esgotos constituem uma fluida miragem.
Desregulada nos seus equilíbrios, a cidade conhece mortíferas enxurradas, quando a pluviosidade aumenta, afectando quase sempre os mais pobres. Aqueles que, sonhando com um mundo novo a sério, apostaram na promoção à presidência do índio Evo Morales em quem vêem um dos seus, ou seja, alguém capaz de lhes compreender os sonhos e motivações e de lhes dar algum seguimento.

Júlia Uma Vida de Sombras

Filme: «JÚLIA, UMA VIDA DE SOMBRAS» de ERICK ZONCA

Que espantosa actriz é Tilda Swinton! É a conclusão a retirar deste filme medíocre de Zonca, mas que garante a ela um espantoso desempenho.
Se alguma outra qualidade tem o filme, ela radica no incómodo do espectador com uma realidade, que não vai ao encontro do gosto normalizado a que se aspira por uma questão de tranquilidade mental. Pelo contrário vemos Júlia como uma alcoólica inveterada, a acordar todas as manhãs ao lado de efémeros parceiros de ocasião e a perder sucessivos empregos mal pagos.
Um dia deixa-se aliciar por uma mexicana meio enlouquecida a raptar-lhe o filho, confiado à guarda do sogro, conhecido milionário local. Mas em vez de confiar o miúdo à progenitora, Júlia vê a oportunidade de dar a volta ao caos em que transformara a sua vida. Só que a única parte do seu projecto a correr bem será o rapto em si.
Doravante ela conhecerá uma sucessão infindável de percalços, que a deixam cada vez mais exposta ao desastre de todas as suas ilusões. Mormente, quando atravessa a fronteira do Rio Grande e vai desembocar na perigosíssima cidade de Tijuana.
Aí raptam-lhe o miúdo e ela vê-se na iminência de ficar sem dinheiro nem criança. Embora nesta parte a lógica do filme roce o inconcebível, ela conseguirá salvar o miúdo, mesmo ficando despojada da redenção em forma de maços de dólares. Não será um happy end que satisfaça a generalidade dos espectadores, mas salvaguardam-se pelo menos os aspectos mais relevantes para a sua aceitabilidade enquanto entretenimento ...

domingo, abril 24, 2011

Engineering the Impossible: Chartres Cathedral

Documentário: «AS CATEDRAIS DESVENDADAS» de CATHERINE LE GOFF e GARY GLASSMAN

São edifícios soberbos, que justificam a nossa visita de turistas interessados pelos aspectos culturais das sociedades visitadas. Mas, quão pouco sabemos delas apesar de nos julgarmos especialistas em arcobotantes e em ogivas, em vitrais ou em disposições em cruz de tais construções. O documentário de Catherine Le Goff e de Gary Glassman demonstra-nos o quanto as catedrais góticas francesas a norte do rio Loire ainda estão longe de nos revelarem todos os seus segredos.
Quando a primeira delas surgiu, a partir da Abadia de Saint Denis em 1154, o objectivo era dar uma última morada de maior dignidade aos reis franceses, numa altura em que a nação ainda era tão pequena e frágil.
Mas, nos dois séculos seguintes, as catedrais ganharam outra ambição, quando nasceram do desejo de misturar à religiosidade dos seus espaços à presença da luz e ao desafio às leis da gravidade.
Saint Denis surpreenderia, de facto, os seus contemporâneos pelos efeitos visuais causados no seu interior pelos seus vitrais.
Seriam três as grandes inovações arquitectónicas, que possibilitariam o aumento da dimensão desses edifícios: o arco quebrado, a abóbada ogival e os arcobotantes. Mas, estes últimos, verdadeiros suportes de toda a construção, não surgiram de imediato: foi quando se detectaram os primeiros sinais da incapacidade para manter o equilíbrio das novas catedrais, que os arquitectos da época decidiram apoiá-las nesses elementos construtivos destinados a uma melhor divisão dos esforços causados pelo peso da abóbada.
Depois, quando sentiram o completo domínio da sua técnica os construtores de catedrais foram capazes de bater todos os records de construção, demorando apenas trinta anos para darem por terminada a catedral de Chartres, ainda hoje a mais bem preservada de quantas sobram dessa época.
As catedrais eram então a Casa de Deus, uma espécie de Jerusalém Celeste. Os materiais aplicados tanto importavam pela sua qualidade, como pelo seu significado místico, já que se buscava a desmaterialização do espaço.
Mas, para a história da tecnologia, as Catedrais irão trazer, igualmente, dois avanços significativos:  a estandardização das peças, que eram trabalhadas nas pedreiras, de forma a chegarem ao local da construção já prontas a aplicar, e a mecanização de algumas tarefas como as da forja, utilizando para tal a água dos rios como fonte de energia dos moinhos de maré.
Constituindo verdadeiras jóias arquitectónicas da herança cultural da Idade Média, as catedrais góticas significaram um avanço científico e cultural, mesmo descontando a sua função religiosa...

sábado, abril 23, 2011

Stephen King´s The Dark Tower

Novela: STEPHEN KING: «AS IRMÃZINHAS DE ELURIA»

O meu prazer pela leitura de livros de Stephen King já tem muitos anos, por muito que considere uns muito entusiasmantes e outros não tanto.
Uma das mais gratas memórias relacionadas com este autor aconteceu há uns vinte e tal anos, quando comprei uma edição de bolso de «Cujo» em Buenos Aires e passei toda a madrugada seguinte a devorá-lo por inteiro, apesar de ter umas centenas de páginas e estar escrito em espanhol.
Nunca outro livro me causou essa sensação de me comprometer apenas na leitura de mais um capítulo e, acabado esse, logo me decidir a passar para o seguinte movido pelas mesmas «boas» intenções.
Esse sucesso de Stephen King tem a ver com os nossos medos, sejam os mais conscientes - relacionados com a morte ou as diversas formas de agressão social - sejam os que nem sequer conseguimos verbalizar por se situarem nos densos territórios atávicos da mente.
No caso desta novela, publicada em 1998 na antologia «Legends», organizada por Robert Silverberg, encontramos uma mistura de géneros a interligarem-se numa ficção consistente: há o território mítico do faroeste aonde o cowboy solitário anda em perseguição solitária montado num cavalo à beira de estoirar.
Há a conotação medieval do nome do protagonista (Roland de Gilead)a remeter para a gesta dos cavaleiros da Távola Redonda e a sua eterna busca do Graal, que redima uma época apocalíptica aparentemente irreversível.
Há esse ambiente de ficção científica traduzido em mutantes verdes, com comportamento bizarro (quais zombies assassinos) derivado da sua exposição a radiações tóxicas.
Há a vertente vampírica protagonizada nessas Irmãzinhas, que não são mais do que uma espécie de freiras apostadas em cuidar dos feridos até eles estarem suficientemente fortes para terem o seu sangue sugado até à última gota. Sem faltar nesta última estratégia o surgimento de Jenna, a vampira, que por amor ao protagonista  tenta ser quem não é e não encontra outra forma de o salvar do que ajudá-lo a fugir do tenebroso hospital para se desintegrar em seguida em milhentos insectos rastejantes.
Se buscamos entretenimento nesses diversos géneros é por eles remeterem para a nossa necessidade de catarse em relação a muitas das nossas angústias e frustrações. E King, enquanto hábil intérprete dessas carências do inconsciente colectivo dos nossos dias tem garantido uma produção em série de textos, que o consagram como um dos mais bem sucedidos escritores norte-americanos...

sexta-feira, abril 22, 2011

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (5)

Chegamos ao capítulo em que o Nobel turco recorda o prazer com que a mãe lia as rubricas de coscuvilhices nos jornais, lamentando que o seu estatuto de remediada não pudesse suscitar o mesmo interesse desse tipo de jornalismo.
E, no entanto, quando o jovem Orhan ainda vivia os seus mais verdes anos, o estatuto de riqueza ainda era vivido com alguma contenção, . Na memória colectiva desse estrato, figuram ainda as espoliações prepotentes de paxás e outros governantes do defunto Império Otomano, que não se coibiam de olhar com cobiça para quem arranjara forma de acumular bens materiais.
O sinal mais evidente dessa condição era o gosto cosmopolita, que levava os seus titulares a desprezarem as tradições em proveito dos mais recentes sinais da cultura ocidental.
Não contestando essa atracção pela modernidade, Pamuk não deixa de lamentar o parolismo desse tipo de comportamento e o que ele implicou na perda de valioso legado histórico, votado ao abandono e, consequentemente, ao fogo destruidor.
Istambul surge, assim, como um espaço de contradição entre dois tempos e duas culturas, atraindo os estrangeiros precisamente por essa simultânea sensação de familiaridade com a do incontornável exotismo.

domingo, abril 10, 2011

Conto: «HISTÓRIA DO PEIXE-PATO» de Jorge de Sena

Escrito em 1959, quando Salazar estava a lamber as feridas da derrota política, que Humberto Delgado lhe conferira, este conto deverá ser entendido à luz do que se passava na época já que o protagonista é um homem que vivia numa pequenina cabana à beira-mar, lá para as bandas das Áfricas, das Índias ou dos Brasis, onde o calor é tanto que o mar parece de vidro azul, e as florestas crescem tanto que se apertam, apertam, e chegam mesmo ao pé da água.

Solitário e amiúde obrigado a proteger-se das tempestades, o protagonista acaba por tomar-se de afeição por um estranho peixe-pato, que não só lhe traz comida saborosa em forma de peixes por ele pescados, como se enrosca carinhosamente nas suas pernas. E fica aqui a suspeita de uma ambiguidade sexual, que faz algum sentido em função do que se vai conhecendo do escritor.
Nessa linha de abordagem faz Antão todo o sentido a castração a que esse homem solitário é sujeito, quando, após mais uma dessas violentas tormentas, aparecem pássaros saídos do conhecido filme de Hitchcock e rapidamente põem um ponto final naquela suspeita empatia...

quinta-feira, abril 07, 2011

Conto: «RAZÃO DE O PAI NATAL TER BARBAS BRANCAS» (1944) de JORGE DE SENA

No prefácio à edição, que ando a ler de «As Antigas e Novas Andanças do Demónio», Jorge de Sena enfatiza o seu valor de escritor em detrimento de outros, rapidamente caídos no esquecimento pelo inevitável envelhecimento dos seus temas e estilos.
Sabe-se que ele sempre lamentou não colher da pátria o merecimento a que se julgava com direito, morrendo tão exilado quanto tinha estado durante a ditadura salazarista-marcelista.
E, no entanto, o conto que inicia o livro, escrito ainda a guerra lavrava por essa Europa fora, dificilmente passa o teste dos anos entretanto decorridos. Há uma personagem, que me é pouco simpática, mesmo com sete anos (Jesus Cristo) e as suas ânsias de prendas para o dia de Natal. Mas com o Diabo a ameaçá-lo, qual lobo para os três porquinhos, ao descer pela chaminé como se fosse o ofertante das prendas anuais.
A colocação de barbas brancas seria assim uma invenção para que não se confundisse esse Satanás com o venerável ancião nórdico.
Mesmo dando tratos à imaginação à procura de metáforas reconheço-me incapaz de a elas chegar com um mínimo de consistência.
Desinteressante, o conto parece-me muito mais um ensaio surrealista do que uma história com cabeça., tronco e membros...

sábado, abril 02, 2011

ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (4)

Orhan Pamuk continua a viver no mesmo prédio em que já cirandava cinquenta anos atrás. Aquela aonde foi assistindo às frequentes disputas domésticas entre a mãe e o pai ou pressentiu as dificuldades por que ia passando a família à medida que o pai e o tio iam falhando na tentativa de evitar a falência das suas empresas.
A casa, para mim, é menos importante pela beleza das suas salas, quartos, mobílias e objectos do que por ser efectivamente um centro do meu universo espiritual. (pág. 95)
Universo espiritual, que se configura igualmente nas ruas da cidade, muito pitorescas para os turistas, mas não para os turcos para quem sugerem a decadência civilizacional de quem julgou ser mais poderoso do que o era na realidade.  Daí a tendência para suscitarem uma espécie de depressão colectiva em vez do orgulho chauvinista tão cultivado alhures.
Em Istambul, as pessoas  limitam-se a viver no meio desses vestígios históricos. Isso é algo que muitos visitantes ocidentais perceberam e muito apreciaram. No entanto, para os habitantes da cidade mais sensíveis, isso lembra-lhes que a força e a riqueza passadas desapareceram, levando com elas toda uma cultura, e que o presente é incomparavelmente mais pobre e mais baço do que o passado. (pág. 107)
Ler sobre todos os assuntos, mas também sobre esse passado mítico, foi uma tentação em que Orhan incorreu desde muito cedo. Sem saber que essa condição de leitor o levaria a receber, muitos anos depois, o mais prestigiado dos prémios literários.
Logo que aprendi a ler e a escrever, acrescentaram-se de imediato ao imaginário constelações de letras. (…) E lia automaticamente tudo o que me caía nas mãos: os nomes das empresas nos cinzeiros, nos cartazes murais, as informações nos jornais, a publicidade, e tudo o que se encontrava nas paredes, nos restaurantes, nos camiões, nos papéis  de embalagem, nas placas rodoviárias, no pacote de canela em cima da mesa, na lata de óleo e nos detergentes da cozinha, e nos maços de cigarros e nas caixas de medicamentos da minha avó. (pág. 134)

La notte brava - La bellissima scena finale

Filme: PIER PAOLO PASOLINI, «NOITE BRAVA»

Em 1959 já os efeitos da Guerra se iam diluindo, enquanto as ideologias políticas se iam cristalizando em conceitos cada vez mais rejeitados por uma juventude decidida a tudo querer, com o mínimo de trabalho.
«Noite Brava» é um filme interessante a esse nível, mesmo que de construção ainda imberbe por parte do seu realizador, Pier Paolo Pasolini.
Começamos por assistir à rivalidade entre duas prostitutas, que acabam embarcadas no mesmo carro por Ruggero e Scintillone, dois ladrões apostados em venderem rapidamente as armas armazenadas na bagageira.
Se antes quase se tinham esgadanhado, as duas mulheres, Anna e Supplizia, vêem naqueles clientes a possibilidade de colherem dinheiro suficiente para iludirem a fome nos dias seguintes.
A primeira tentativa de encontrar receptor falha: Mosciarella está a enterrar a mulher, Emma, e adia a compra do material para o dia seguinte. Mas o quarteto passa a quinteto com a inclusão de Gino (ou Bella Bella), o sobrinho do viúvo, que projecta levá-los a outro possível cliente daquela mercadoria. Mas constatam que ele está tão falido quanto eles e, portanto, não é alternativa.
Vale-lhes as duas raparigas, que os levam a Fiumicino à desolada casa de um surdo-mudo, que compra de facto as armas e lhes faculta o aumento do grupo para sexteto com a inclusão de Nicoletta, outra prostituta, que aí acabara de prestar os seus serviços.
Mas, sem quaisquer escrúpulos, os três rapazes contam (e conseguem) levar as raparigas para um ermo, servirem-se delas, e depois deixá-las sem sequer lhes pagarem. O que não prevêem é que, conscientes quanto ao seu carácter, uma delas lhes fique com a carteira.
Bem podem eles procurá-las para reaver o dinheiro, que só virão a reencontrar, e a punir Nicoletta, embora ela não o tivesse consigo.
Mas encontram outro terceto, constituído por três rapazes da burguesia, de sexualidade algo equívoca. Agridem-nos, fogem com eles à polícia, convivem na casa de um deles (oportunidade para Ruggero se apaixonar fulminantemente pela bela Laura, irmã do anfitrião) e roubam-lhes a carteira com mais de cem mil liras.
Mas, porque não conhecem o valor de qualquer sentido de amizade, Ruggero quer expulsar Gino sem lhe dar qualquer dinheiro, distraindo-se o suficiente para que Scintillone se escapule num táxi com o dinheiro.
A noite parece correr bem a este endinheirado, que vai buscar a amada Rosanna aos braços do namorado para a levar para um dos bairros chiques, e possam cear e dançar. Mas a sua fama é ali conhecida pelo que acaba expulso de um restaurante e levado pela polícia. Surge então Scintillone a aproveitar o dinheiro e a rapariga, acabando a gastar todo o dinheiro numa extravagância: manda abrir um restaurante de hotel e contrata uma mini orquestra.
Quando a madrugada desponta, deixa Rosanna na casa dos pais e vai atirar ao leito seco do ribeiro a última nota de mil liras que lhe resta. Na noite seguinte logo verá como arranjar dinheiro para outra sucessão de aventuras inconsequentes. Porque o que está aqui em causa é a perda de valores éticos num tempo de capitalismo exuberante em que o consumo se começa a transformar numa prioridade, independentemente da forma de arranjar dinheiro para o usufruir…
Um filme ainda actual neste tempo de capitalismo exangue, em que prometida está uma assustadora redução dos nossos padrões de qualidade de vida.