segunda-feira, dezembro 31, 2007

DUAS FORMAS DIFERENTES DE TRANSGRESSÃO FEMININA

De entre os livros mais recentes publicados em França avultam dois, que abordam outras tantas formas de expressão da transgressão feminina.
Em «La Passion Selon Juette» a escritora Clara Dupont-Monod dirige o leitor para o século XII, essa época de heresias, em que uma rapariga sentirá bem na pele a sua irreverência.
Juette é obrigada a casar aos 13 anos e enviúva aos 18, alimentando pelo meio um ódio total aos homens, cuja brutalidade nada tem a ver com a imagem mítica dos cavaleiros, que alimentara até à autêntica violação, que significou para ela cada acto sexual.
Por isso agora ela diz não. À Igreja, aos pais, a todos quantos se atrevam a considerá-la um mero objecto de desejo. Daí que se veja condenada num processo, que a vitimará…
Por seu lado Ananda Devi, com o seu «Indian Tango», mostra como, na preconceituosa sociedade indiana, uma mulher cinquentona acorda para o prazer, para a sua feminilidade.
É uma outra verdade interior, que lhe sobrevem, a contracorrente de tudo quanto parecem pensar todos quantos os que a rodeiam.

domingo, dezembro 30, 2007

O FUTURO JÁ NÃO É O QUE ERA

Conheço a frase, mas só agora, ao vê-la recordada no «Público», é que a associo a Paul Valéry:
O problema com o nosso tempo é que o futuro já não é o que era.
E ela enquadra-se, perfeitamente, neste tempo em que perdemos todas as certezas a respeito do que será esse porvir: são tantas as ameaças, que se colocam ao nosso bem estar; são tantas as incertezas a respeito das ideologias, que balizarão os nossos passos, que conformamo-nos com o ir vivendo o dia-a-dia sem aspirarmos a grandes utopias nem nos deixarmos aterrorizar pelos cenários catastróficos enunciados por alguns.
É verdade que essa posteridade me era bem mais aliciante nesse longínquo passado em que acreditava na possibilidade de um homem novo numa sociedade cada vez mais igualitária.
Desconhecia, então, a que dimensões ilimitadas poderia estender-se a cupidez desse minoria, que se apossa sem vergonha de todos os poderes, inclusive o da informação ou o da educação, para fazer crer na normalidade de uma desigualdade congénita a qualquer sociedade humana. Estimulando nos mais explorados, nos mais miseráveis, as suas piores características. Aquelas que nos fazem arrepiar quando deparamos com a cegueira dos que se deixam arrastar por fundamentalismos religiosos, clubistas ou xenofóbicos. Os que aparecem nas televisões a gritarem revoltas inócuas para os seus verdadeiros opressores, sem entenderem o quão manipulados são por estes para dispararem em todas as direcções a sua raiva menos para a que mereceria de facto o seu ódio de classe.
Se o futuro já não é o que era, até posso estar enganado num certo pessimismo ideológico e estar a germinar na Venezuela de Chavez ou na Rússia de Putin - tão odiados ambos pelos opinadores dominantes - algo que signifique o regresso a carris de que, há muito se descarrilou…

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Benazir Bhutto assassinada!

A morte de Benazir Bhutto não surpreende. Afinal ela já escapara a tantas tentativas de assassinato, que era uma questão de tempo até serem coroados de êxito os esforços dos seus inimigos. Os que nunca aceitaram de bom grado, que uma mulher fosse líder num país muçulmano, pondo em causa os seus preconceitos atávicos.
Convertê-la em mártir pode trazer ganhos a curto prazo aos conspiradores islamistas, que terão estado por trás deste crime. Estejam eles próximos ou não do actual poder em Islamabad. Ou escondam-se atrás de Sharif, que apareceu em pose hipócrita a cavalgar em cima dos despojos da rival.
Para já não se perfila no horizonte nenhuma outra mulher tão forte num país, que concentra em si o essencial do que mais se aproxima de um choque de civilizações…
Mas, assumamos um certo optimismo no meio de mais esta tragédia e acreditemos, que esse martírio torná-la-á no símbolo de uma esperança jamais apagada para quem aposta na bondade de porfiar sempre no caminho do progresso, do derrube das barreiras, que se opõem a uma modernidade mais humanizada…

O Dueto das Flores, uma vez mais

É a interpretação de referência da bela área do Delibes pelas vozes sublimes de Anna Netrebko e de Elina Garanca.
Tinha-a posto no outro blogue, mas esse link perdeu-se. Fica aqui outra vez para ver e rever, ouvir e tornar a ouvir...

Milton's Marilyn

E se Marilyn tivesse escapado ao matadouro holywoodiano. Que pessoa teria germinado de uma personalidade capaz de vencer a sua própria vulnerabilidade e levar até ao fim o caminho que a pôs a defender Arthur Miller contra os caçadores de bruxas e a estudar representação no Actor's Studio?

QUANDO MARILYN QUIS DEIXAR DE O SER!

Um dos grandes admiradores de Marilyn Monroe em França é o realizador Patrick Jeudy. Deve-se a ele uma exposição de referência na Maison Européenne de la Photographie, que mostrava a actriz em poses intimistas, captada pela câmara de quem melhor procurara indagar o que se escondia para além da aparente frivolidade da sua imagem hollywoodesca.
Esse interesse do realizador prolongou-se num documentário intitulado «Marilyn malgré elle», datado de 2002 e em cujos cinquenta e dois minutos de duração, ele aborda esse período lapidar na carreira dela, que decorreu entre 1955 e 1957. O tal em que ela abandona Los Angeles, escondida sob o pseudónimo de Zelda Zonk, e se refugia em Nova Iorque em casa do fotógrafo Milton Greene.
A sua relação com o casal Greene confere-lhe o ambiente familiar, que ela nunca chegara verdadeiramente a conhecer. Enquanto estuda no Actor’s Studio, inicia a relação com Arthur Miller e frequenta sessões de psicanálise, ela posa para o seu anfitrião, que consegue as fotografias mais belas alguma vez dela captadas.
É um tempo em que se chega a acreditar na prevalência de uma outra Marilyn, capaz de virar costas a uma indústria, que a usara e abusara como paradigma de um tipo de pessoa, que ela intimamente rejeitava.
Mas depressa esse esforço se esvai perante a tentação dos dólares e a ilusão da fama. Marilyn regressará ao redil, porventura sem saber que se encaminha afinal para o matadouro…

quarta-feira, dezembro 26, 2007

HENRY DE MONFREID: UM AVENTUREIRO POR CONVICÇÃO

Nos seus noventa e cinco anos de vida, o aventureiro francês Henry de Monfreid aprendeu o suficiente para deixar aos vindouros um lema instrutivo: «Nunca tenham medo da vida, nem da aventura. Confiem no acaso, na sorte, no destino. Partam! Procurem outros espaços, outras esperanças. O resto virá por acréscimo!»
Foi isso que ele decidiu desde muito cedo, quando as inundações do Sena o ameaçaram de miséria, e o forçaram a partir num barco para o Corno de África, deixando-o no que hoje é conhecido como Djibuti.
Na época - estava-se em 1910 - tratava-se do Território francês dos Afars e dos Issas, mesmo à beira do deserto mais absoluto.
Henri Michaud, que passará por ali, definirá essa terra como sendo aquela onde «não há nada para ver e tudo está por interpretar».
Aquele que muitos consideram o maior aventureiro do século XX interpreta todos os sinais desse lugar e torna-se numa referência respeitada, apesar de se dedicar ao ofício de traficante de armas e de haxixe, comprando a mercadoria na Índia e vendendo-a no Egipto. Para ser bem sucedido não hesita em suplantar a concorrência e os ladrões com a construção de barcos sempre mais rápidos.
Mas não é só como construtor naval, que ele se notabiliza: pescador de pérolas, pianista, pintor de aguarelas, Henry de Monfreid também assusta as melancólicas autoridades coloniais com a sua vontade de intervir politicamente. Na Primeira Guerra Mundial decide combater os turcos quase sem qualquer apoio. E, na Segunda, como o imperador etíope Hailé Seilassíé era o seu inimigo de estimação devido às suas tentações expansionistas em relação ao Djibuti e ao Iémen, Monfreid acaba como aliado das tropas italianas, sendo colocado pelos ingleses em prisão domiciliária no Quénia.
Mas já antes Monfreid escapara ao envenenamento, que Selassié procurara conseguir através de uma caneca de café. Diz-se que exagerou na dose, já que Monfreid acabaria por vomitar a beberagem.
Já tinha, entretanto, iniciado os relatos das suas aventuras, primeiro como continuação das cartas ao próprio pai. Depois, terá sido Joseph Kessel quem o instigou a passar a papel tudo quanto conhecia.
Surgiram assim «Os Segredos do Mar Vermelho», primeiro de vários tomos, que ele escreveu, a propósito das suas viagens, contactando vagabundos, aventureiros, caçadores de prémios e funcionários coloniais numa atmosfera apocalíptica.
Amigo de Teilhard de Chardin, ele torna-se numa espécie de D. Quixote orgulhoso e rude, que não prescindia de três cachimbadas de ópio nos dias normais e o dobro naqueles em que se visse obrigado a dar entrevistas...

terça-feira, dezembro 25, 2007

OS CRIMES DE UM CRÁPULA

Não é que a notícia surpreenda, mas o facto de Edgar Hoover pressionar Truman para que, em 1950, fossem presos doze mil suspeitos de traição aos Estados Unidos devido às suas eventuais simpatias comunistas, é bem demonstrativa da dimensão comportamental do crápula, que chefiou o FBI entre 1924 e 1972.
Para além de ser o superpolícia, que prendeu e humilhou homossexuais por o serem, enquanto vivia um escaldante romance com o seu próprio adjunto, Hoover conseguiu limitar os danos à sua imagem pública ao transferir para o alcoólico McCarthy todo o odioso da tremenda campanha de «caça às bruxas», que acabava por comandar na sombra.
Para Hoover esses suspeitos deveriam ser presos em campos de concentração, sem lhes ser formulada qualquer acusação nem possibilidade de recorrerem ao habeas corpus. Algo, pois, semelhante ao que a Administração Bush levou por diante em Guantanamo.
Para os paladinos da «democracia» norte-americana aqui está mais um exemplo da cultura e dos valores, que ela representa: o poder abusivo de gente sem escrúpulos muito raramente confrontada com o merecido castigo, que lhes caberia...

segunda-feira, dezembro 24, 2007

OS ESTADOS DE ALMA DOS EUA

Não é só por ser o autor de «Elephant», um dos filmes que tomaram o massacre de Colombine como tema: o cinema de Gus Van Sant espelha um enorme mal estar na juventude norte-americana.
Embora as notícias vão dando conta de uma América política bastante conservadora, que chega a ter fundamentalistas cristãos como candidatos credíveis à Presidência pelos maiores partidos, os estados de alma dos personagens dos filmes deste realizador lembram aquela época distante, em plenos anos 60, quando o macartismo parecia ter dobrado a espinha a quem se posicionava ideologicamente à esquerda e o poder económico tomava de assalto todas as instituições do poder político e social. E, no entanto, a explosão da segunda metade dessa década não tardaria - com a luta pelos Direitos Cívicos, pela contestação à Guerra do Vietname, com a revolução sexual e o ambiente de guerrilha nos campus universitários.
«Paranoid Park» confirma isso mesmo: há toda uma geração insatisfeita, que está pronta a virar de pantanas a América conservadora, mas ainda não sabe como fazê-lo. Até porque a assaltam pruridos morais, que lhe tolhem a compreensão dos impasses deixados pela gestão Bush em tempo de despedida.
É por isso que os filmes de Van Sant são extremamente políticos: mesmo sem comportarem uma mensagem (como o faz Michael Moore), eles são o testemunho de uma transformação, que se pode pressentir, mesmo que ainda não tenha verdadeiramente começado a explicitar-se...

terça-feira, dezembro 18, 2007

TICIANO: «DANAE»

O quadro de Ticiano, «Danae», pintado entre 1544 e 1546, surgiu de uma encomenda do cardeal Alessandro Farnese, nele representando-se, para além da cena mitológica, a própria amante do comprador.
A história é a da filha do Rei Acrísios, que a manda encerrar numa torre ao saber do presságio, que o dá como futura vítima mortal das acções do neto.
Ora, apaixonado por ela, Zeus fecunda-a com um jacto de ouro, nascendo assim Perseu.
O quadro mostra Danae de olhos lânguidos e pernas abertas, disponível para facilitar a penetração da semente divina, com a cumplicidade de Cupido.
Num quadro de grandes dimensões (120 x 172 cm) em que tudo é sugerido, os tons escolhidos por Ticiano pretendem reforçar essa sensualidade pecaminosa, que tantos engulhos causou aos pudicos de então e de agora...

JEAN ÉCHENOZ: «RAVEL»

O livro que Jean Echenoz escreveu em 2006 subordinado à figura de Ravel mereceu-me atenção interessada, mas sem chegar aos entusiasmos de alguns críticos, que o incensaram como romance bem escrito e equilibrado.
O escritor francês pega em alguns factos conhecidos da vida do compositor do «Bolero», acrescenta-lhe algumas suposições credíveis e traça assim o retrato de um homem eivado de um imenso cansaço existencial.
Sobretudo neste final de ano de 1927, quando se desloca à América e sente iminente o declínio, que o fará arrastar-se até à morte, dez anos depois, durante uma operação falhada à sua atrofia cerebral, responsável pela sua progressiva perda de capacidades (de entendimento, de falar e de escrever).
No final ficamos a conhecer um pouco melhor este homem singular, que quanto mais não fosse pela sua famosíssima peça ficaria duradouramente nas nossas memórias…

segunda-feira, dezembro 17, 2007

NOVAS LINGUAGENS NO MUSEU DO CHIADO

O Museu do Chiado está com uma exposição muito interessante sobre as novas linguagens possibilitadas pelo vídeo.
Oriundas do Centre Pompidou, essas obras reflectem um quotidiano aonde o direito à privacidade se perdeu em proveito de uma vídeo vigilância generalizada em conformidade com as idiossincrasias de um tempo pós-11 de Setembro.
Há, igualmente, a interacção entre o criador e o espectador das obras que, de mero sujeito passivo, assume nelas o papel de protagonista. Há peças emblemáticas como as dos movimentos de direcção de uma orquestra, que interpreta a banda sonora do «Vertigo» de Hitchcock. Ou o relato do verdadeiro assaltante do Banco, que deu origem ao filme «Um Dia de Cão», que relata na primeira pessoa como tudo se terá passado. Ou a reflexão de Jean Luc Godard a propósito de um dos seus mais conhecidos filmes.

domingo, dezembro 16, 2007

O SABOR DA CEREJA

Este foi o filme que tornou Kiarostami conhecido a nível internacional. Desde então, o que vem com a sua assinatura, sejam filmes, sejam fotografias, trazem a marca de uma inquestionável qualidade...

ABBAS KIAROSTAMI E O ESPAÇO PRIVADO

A reportagem com que começa o programa cultural do canal franco-alemão ARTE diz respeito a Abbas Kiarostami, realizador iraniano, tornado conhecido com a Palma de Ouro em Cannes atribuída, em 1987, com «O Sabor da Cereja».
Essa consagração internacional leva-o a dizer-se muito mais livre hoje em dia, já que não depende de ninguém para levar por diante o seu trabalho.
Mas convirá notar que Kiarostami evita filmar o espaço privado, aquele sobre o qual a censura do seu país mais facilmente encontraria motivos de rejeição.
Cineasta do tempo, a paisagem é protagonista dos seus filmes, mediante o recurso frequente aos planos-sequência.
Isso não significa que o seu cinema seja menos político. Porque o espaço privado aparece representado nos carros, quase sempre presentes nas suas obras. Sinónimos de movimento, eles acabam por permitir a abordagem dos temas caros ao realizador como o da violência entre homens e mulheres.
Mas a verdadeira razão porque Kiarostami é muito menos incomodado pelos censores do seu país do que alguns dos seus colegas de profissão, reside no facto de ter ganho a reputação de ser um realizador de filmes para festivais, que internamente só interessarão a uma pequena elite, incapaz de pôr em causa o poder dos ayattollahs.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

O fim dos tapetes de Arraiolos

Há condicionalismos incontornáveis causados pela globalização. A redução dos preços na generalidade dos produtos e serviços, que possibilitou o crescimento exponencial do consumo característico dos dias de hoje, só foi possível com a deslocalização dos principais custos de mão-de-obra.
Uma das vítimas dessa realidade é a produção dos tapetes de Arraiolos. Senão vejamos os factos: um tapete genuíno, com quarenta mil pontos, custa 200 euros e 15 dias de trabalho a oito horas.
Isto significa que, mesmo na melhor das hipóteses, essa operária nunca conseguirá auferir o salário mínimo nacional.
Ora, da China, vêm agora tapetes exactamente iguais, com lã de melhor qualidade, a custarem metade desse valor. Está ditado assim o epílogo de um produto tradicional da nossa cultura…
É claro que há quem culpe as grandes superfícies por terem fomentado essa concorrência, culpando-as por estarem por detrás de todo o circuito de contrafacção. Há quem queira garantir medidas proteccionistas!
Mas a realidade será outra: acabam-se os tapetes associados à conhecida terra alentejana… e afirmam-se no mercado os tapetes made in China.
É quando os operários chineses tiverem melhores salários do que os portugueses, que a produção virá de outro lado.
Até, possivelmente, de Arraiolos se a globalização nos tornar ainda menos abonados do que já somos…