sexta-feira, março 04, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Amuleto» de Roberto Bolaño (1999)

Quase no final de «Amuleto» a protagonista do livro vai a casa do pintor Carlos Coffin para lhe transmitir um recado da mãe, Lilian Serpas, que não voltaria para casa nessa noite.
É assim que Auxílio Lacouture consegue penetrar no espaço misterioso de um misantropo há muito nele enclausurado.  E dá-me a possibilidade de exemplificar o que faz a originalidade da escrita de Roberto Bolaño, feita de longos parágrafos sem quase nenhuns diálogos, e onde vai intercalando muitas observações pertinentes sobre a realidade
“Na América Latina ninguém (salvo talvez os chilenos) se envergonha de ser pobre. Só que esta pobreza possuía uma característica abissal, como se penetrar na casa de Lilian equivalesse a mergulhar nas profundezas de uma fossa atlântica. Ali, numa quietude que não o era, o intruso era observado pelos restos carbonizados e cobertos de musgo ou plâncton do que tinha sido uma vida, uma família, uma mãe e um filho reais e não inventados ou adotados no meio da incomensurabilidade como acontecia aos meus filhos, um inventário ou um anti-inventário subtilíssimo que se desprendia das paredes e que falava com um murmúrio como que saído de um buraco negro dos amantes de Lilian, da escola primária de Carlitos Coffeen Serpas, dos pequenos-almoços e dos jantares, dos pesadelos e da luz que entrava de dia pelas janelas quando Lilian abria as cortinas, umas cortinas que agora pareciam imundas, umas cortinas que eu, sempre diligente, teria logo tirado e lavado à mão no lava-louças da cozinha, mas que não tirei porque não queria fazer nada brusco, nada que pudesse turvar o olhar do pintor, um olhar que, à medida que passavam os segundos e que eu continuava quieta, se foi apaziguando, como se aceitasse provisoriamente a minha presença no último reduto.
Auxílio partira da sua Montevideu natal no final da adolescência e estabelecera-se  na Cidade do México, decidida a conviver - e até a sentir-se mãe - dos poetas aí existentes -, alguns dos quais se tinham exilado dos campos de Castela depois da derrota republicana.
O momento culminante da vida de Auxílio acontecera em 1968, quando o Exército invadira os campus universitários para cortar cerce a autonomia aí vivida, e ela ficara escondida na casa de banho como única resistente de uma luta de antemão perdida.
Bolaño mistura personalidades reais, com outras ficcionadas, entre as quais o chileno Arturo  Belano, já conhecido noutros títulos do autor como seu alter ego. Impera a pobreza e a boémia, os amores breves e intensos e a nostalgia de um tempo acelerado sem retrocesso possível.
Não é que a prosa de Bolaño me entusiasme, mas o sentido de urgência que, comandou a sua criatividade, merece-me o maior dos respeitos. Afinal poucos autores terão vivido tão intensamente a literatura como uma desenfreado corrida contra a morte.

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