segunda-feira, março 14, 2016

DIÁRIO DE IMAGENS EM MOVIMENTO: “Os Demónios de Alcácer-Quibir” de José Fonseca Costa (1976)

Já estou a chegar a uma idade em que me apetece rever, reouvir ou reler o que, em tempos, me deu muito prazer. Nesse sentido nego aquele princípio básico, que manda não voltar aos espaços onde se foi feliz pela impossibilidade de reviver esse sentimento. De, amargamente, constatar justificações incontestáveis para tendermos para a passiva desilusão com o presente estado das coisas.
Neste assumido regresso aos «Demónios» que José Fonseca e Costa rodou no Alentejo no Verão Quente de 1975 e estreou quando a festa já dera lugar à «realpolitik» capitalista, confirmo a pertinência de dar largas a este tipo de saudosismo.
Do filme recordava, sobretudo, as canções do Sérgio Godinho, mas também o Beringela a contas com a tralha dos artistas ambulantes, entretanto aprisionados pela GNR ou a travessia do rio pela Ana Zanatti como se fosse uma sacerdotisa. E também o final, quando a jovem negra, armada com uma espingarda, a simbolizar os Movimentos de Libertação das Colónias, era a única sobrevivente do massacre final afastando-se na paisagem ondulante do Alentejo ceifado. Mas já não recordava que aparecia gente muito estimável do teatro e do cinema dessa época, que estão injustamente esquecidos. Os casos de Artur Semedo, de Manuel Gusmão, de Zita Duarte ou de Carlos César.
O realizador, que estagiara com Antonioni, trouxera dele uma enorme mestria no enfoque da paisagem, que António Escudeiro, diretor de fotografia, muito valorizou. Se o Alentejo é de uma irrepreensível fotogenia, como o temos comprovado em tantos filmes portugueses, este é um dos que melhor o reproduziu.
O aspeto mais discutível do filme está na direção de atores, que revelam excessiva teatralização, muito embora explicável por ter artistas itinerantes como protagonistas com a respetiva necessidade de passarem o tempo a ensaiar. Mas todos os textos remetem para o fim do Império, que uma aristocracia decadente não conseguia aceitar na penumbra bolorenta dos seus palacetes.
Há também a lógica revolucionária, muito relacionada com os tempos então vividos, em que o combate aos latifundiários e a imposição de mudanças pela palavra ou pelas armas, eram questões na ordem do dia.
O risco de se ver o filme como um objeto datado, de interesse cingido ao seu potencial museológico, é uma falácia, porque as questões fundamentais ali levantadas - que têm a ver com as relações entre senhores e escravos, exploradores e explorados -, continua a fazer todo o sentido. Quiçá ainda mais tendo em conta a obscena distribuição de rendimentos entre os que tudo têm e os que são obrigados a nada ter.
É por isso que a revisão de «Os Demónios de Alcácer-Quibir» constituiu um regresso feliz a um espaço onde então o fui. Porque se naquela época acreditava que poderíamos mudar o mundo, agora exigimos que ele mude... 

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