terça-feira, março 01, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «A Árvore da Vida» de Christian Jacq

Em abordagem anterior à prosa de Christian Jacq questionei a probabilidade de os antigos egípcios pensarem como ele propunha nas suas sagas, já que os via colados aos estereótipos de valores e de reflexões da nossa atual sociedade ocidental. Por muito que o conhecido escritor francês tenha um profundo conhecimento daquela civilização e até consiga ler o que nos chega dos hieróglifos dos túmulos de há três milénios é pouco crível, que consigamos sequer aproximarmo-nos do que eram as idiossincrasias mais íntimas de então.
Podemos conhecer os deuses e os rituais, ter provas de como funcionava a sua economia muito relacionada com o sucesso ou insucesso das cheias do Nilo, e até suspeitamos da rivalidade permanente entre os detentores máximos do poder - de um lado os faraós, do outro os altos sacerdotes dos principais templos de então. Mas o resultado dessa ficção será tão crível quanto o de imaginarmos como vivem os alienígenas de uma presumível civilização humana existente no sistema estelar de Arcturo, na constelação de Boieiro.
Um título como «Os Mistérios de Osíris», que Jacq subdividiu em quatro romances, mais não é do que um entretenimento imaginativo, mas que remete continuamente para o nosso presente. Escrita em 2011, quando a Al Qaeda ainda não tinha dado lugar no seu execrável fanatismo ao autoproclamado Estado Islâmico, esta tetralogia traz esse tipo de organização para o Egito do faraó Senuseret através da personagem do Anunciador, uma espécie de Abu Bakr al-Baghdadi da época disposto a pôr fim ao fausto da civilização existente nas margens do Nilo e a substituí-la por uma ditadura assente no fanatismo religioso de uma forma de monoteísmo, que tanto regula os usos e costumes das populações - sendo particularmente severo com o obrigatório recato das mulheres  - como recorre à violência mais extrema para a afirmar.
A sensação, que tive ao longo da leitura de «A Árvore da Vida», o primeiro dos romances da série, foi mesmo esse: o de estar a repisar o que vamos conhecendo na Síria ou no Iraque através das televisões, e aqui transposto para o passado remoto da região.
Há também outra vertente do livro: a alternativa obtida através do Conhecimento, personificado no aprendiz de escriba, Iker. Embora comece por ver no faraó o seu inimigo fidagal, acaba por aderir sem reservas à sua estratégia política e até se tornará no seu sucessor. Na página 186 encontramos um pequeno trecho sobre a forma como se poderá operar uma alteração significativa do ser humano a partir da escrita:
“o aprendiz de escriba não se cansava de copiar os textos clássicos a fim de os gravar na memória, de adaptar a mão e de conseguir uma escrita tão rápida como legível. Ao desenhar o pensamento, tornava-o tão vivo, que acompanhava os múltiplos contornos. Os hieróglifos eram muito mais do que uma sucessão de imagens, neles ressoavam os atos criadores das divindades para dar a cada palavra a sua plena eficácia.”
Que melhor descrição poderá haver de uma aquisição de conhecimento, que não se cinja à mera cópia e se torne ato criador?

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