sexta-feira, outubro 30, 2015

SONORIDADES: A «Lagrimosa Beltá» cantada por Marie Nicole Lemieux e Philippe Jaroussky

ARTES: os livros esculpidos de Georgia Russell

Georgia Russell é uma escultora de origem escocesa, mas a viver em Paris, que está a ganhar renome no circuito internacional de artes graças às obras criadas  partir de livros recortados.


Quem pensava que os livros só serviriam para ler ou adornar as estantes, tem de rever essa conclusão, porque ela transforma-os em impressionantes obras artísticas a lembrarem plantas silvestres.
Com o bisturi, como se fosse uma cirurgiã, Georgia pega em velhas edições - o que é capaz de horrorizar os bibliófilos! - e dá-lhes uma nova juventude.
No entanto, até há três anos atrás, a antiga estudante do Royal College de Londres, ainda não se conseguira profissionalizar, ganhando o sustento em empregos de ocasião. Foi ao passear pelas margens do Sena, que a atração pelos stands dos alfarrabistas, lhe deu a ideia para o tipo de trabalho entretanto empreendido.
Embora confesse pintar, Georgia ainda não se sente à vontade para mostrar essas obras, que talvez nunca cheguem ao nosso conhecimento nessa forma: é que já considera transformar as telas em causa numa variante do seu trabalho com os livros.
Para ela não se trata de destruir, mas de reconstruir: o que apresenta é o livro como algo de novo, como se fosse uma flor ou uma criatura estranha... 

SONORIDADES: Marie-Nicole Lemieux e Philippe Jaroussky cantam "Pur ti miro" de Monteverdi

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A Última Lição

Nos últimos anos o número de suicídios em Portugal tem sido uma realidade pouco divulgada, mas explicada pela perda de rendimentos e dos apoios sociais como reflexo das políticas austericidas da coligação de direita.
As opções tomadas pelos milhares de desesperados, que decidiram evadir-se do sofrimento quotidiano, foram sempre terríveis: enforcamento, queda de grandes alturas, afogamento, comprimidos, etc.
É evidente que, com outras políticas, muitas dessas vítimas nunca teriam avançado para “soluções” tão extremas. No entanto, quando se conseguir superar esta fase de enormes constrangimentos económicos e financeiros, existe outra causa fraturante, que aguarda a oportunidade de ser coletivamente discutida: o direito a uma morte assistida por opção de cada pessoa dispor do próprio corpo.
Nalguns países europeus esse direito já é respeitado, e volta a estar em causa em França a partir da próxima semana, quando se estrear «La Dernière Leçon», o filme de Pascale Pouzadoux, que adapta o livro de Nöelle Châtelet sobre a sua experiência pessoal com a  mãe em 2002. Como então foi largamente divulgado, e apesar de não ter qualquer doença passível de lhe causar indizível sofrimento, a mãe de Nöelle e do antigo primeiro-ministro Lionel Jospin decidiu ser aquele o momento apropriado para se despedir da vida, serenamente e rodeada de quem mais amava. Daí que tivesse tomado a iniciativa de contratar a clínica suíça onde a sua vontade poderia ser concretizada e anunciado à família essa decisão.
Como escreveu no seu livro confessional, Nöelle não estava preparada para a ideia de ficar sem a progenitora, mas reconheceria depois ter tido dela uma valiosa lição de amor.
O filme agora quase a chegar aos ecrãs, é protagonizado por Sandrine Bonnaire e Marthe Villalonga, ficcionando a história real, de uma forma que lhe é bastante fiel, como se depreende desta sinopse: aos 92 anos, Madeleine decide oferecer aos filhos uma derradeira lição. Por isso, no dia do seu aniversário, e perante toda a família, anuncia ter decidido partir dignamente segundo as suas condições.
Os filhos reagirão muito negativamente a tal escolha, mas não conseguirão demover Madeleine de continuar a ser a dona da sua própria vida, como sempre ocorrera até então.
A exemplo do que ocorreu com Nöelle, a personagem Diane acatará a decisão sem a reação destemperada do irmão. Mas quem acaba por aceitar mais facilmente a expressão dessa vontade são os netos, que olham, algo incrédulos, para as reticências dos progenitores.
Porque subscrevo por inteiro a opinião de Mireille/ Madeleine gostarei de assistir à evolução da legislação sobre a eutanásia e ainda dela vir a beneficiar.
No momento adequado, quando as forças e a lucidez já se revelarem perigosamente periclitantes, desejarei ter o direito a ser-me dada aquilo que Alvaro Mutis designou como “un bel morir”. Transpondo o Letes sem qualquer sofrimento e de mão dada a quem mais amo.
E, se não é pedir demais, numa situação similar à interpretada por Edward G. Robinson num saudoso filme dos anos 70 («À Beira do Fim»), em que o último sopro de vida era vivido perante um ecrã com belas imagens da Natureza e com uma música tranquilizadora…

quinta-feira, outubro 29, 2015

A alienação dos objetos

Datado de 1957, «Mythologies» é um livro admirável sobre a forma de extrair a eternidade do transitório. Com uma questão pertinente: qual é o sabor do sabor?
Para Barthes o mito é uma ferramenta idológica, concretizando as crenças do sistema no discurso. Por isso o mito é um signo, cujo significado pode ser qualquer um: “Cada objeto pode passar de uma existência fechada, muda, para um estado oral, aberto à apropriação da sociedade.”
É que, ao colocarmo-nos perante um bife mal passado, não temos a consciência imediata de estarmos perante um artefacto simbólico sobre o qual se criou a ideia de se tratar de algo de apetecível.
No livro, Roland Barthes agarra em objetos do quotidiano - do bife à stripper - e aborda-os como exemplos da camuflagem da carne em ambos os casos exposta. Assim, perante a mulher que se desnuda sugestivamente à nossa frente, reagimos em função do que sentimos ou do que, socialmente, fomos motivados para tal?
A imagem que criamos desses objetos é a imposta pelo poder, que nos dissocia da realidade porquanto não os vemos senão através da cobertura da iconoplastia.
Vivemos, assim, num universo, que não questionamos na sua essência: somos alienados pelo social com a ideologia a ser-nos imposta pelas coisas cuja verdadeira substância ignoramos.
Barthes teoriza o neutro, que permite afastar-nos da mitologia pequeno-burguesa, remetendo-nos para o questionamento dos artifícios onde os objetos se escondem.
Ele dá o exemplo da pluralidade de sentidos das coisas: quando alguém põe uns óculos escuros para esconder as lágrimas que verteu, é esse o seu verdadeiro fito, ou mostrar aos outros que se colocou os óculos com esse mesmo fim?
Em sua opinião os objetos existem independentemente da utilidade que lhes damos. Por exemplo, quando se interessou pelos haiku japoneses, não quis aprender a língua em que eles se construíam.  E ao ouvi-los na versão original, sem a noção do seu sentido, rendia-se exclusivamente ao poder do signo. Tinha dessa forma a oportunidade de inexprimir o que era inexprimível.
Para Barthes existiria um instante puro capaz de exprimir uma memória sem recordações. Como se tratasse da poesia do real projetado em múltiplos fragmentos até ao infinito, mas apreendido na totalidade no momento em que se despojava definitivamente de uma qualquer conotação associada.
O mundo era algo de abstrato que o incitava a tudo procurar traduzir em texto. Por isso a sua escrita era torrencial e fragmentária, mesmo quando a dedicava à mãe com quem vivera uma relação muito próxima, quase com o seu quê de incestuoso. E nunca sem se deixar tentar pela estrutura do romance. Algo que os seus discípulos não acataram, porque têm sido muitas as tentativas de dar forma ficcional aos conceitos filosóficos do mestre. 

segunda-feira, outubro 26, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Que fazer senão desmentir quem anunciou irreversível decadência dos ideais socialistas?

Naeem Mohaiemen é um artista do Bangladesh, que tem trabalhado ultimamente nos EUA, e está em Portugal pra apresentar os seus três filmes mais recentes no DOC Lisboa - «The Young Man Was, United Red Army” e «Afsan’s Long Day» passam no dia 29 na Culturgest às 19.30, enquanto «Last Man in Dhaka Central» será exibido no Cinema Ideal no dia 30 *as 22.15.
Essa trilogia tem a ver com os movimentos da esquerda revolucionária dos anos 70, quando pretenderam pôr cobro ao capitalismo pela via armada. A questão fundamental é esta: o que terá levado as Brigadas Vermelhas, o Baader-Meinhof ou o Exército Vermelho japonês à derrota, apesar de terem conseguido pôr em pânico os governos que contestavam? Que futuro se coloca aos movimentos de esquerda tendo em conta a forte improbabilidade de voltarem a conseguir mobilizar a juventude da forma como foi possível há cinquenta anos atrás? Estaremos condenados à derrota definitiva das ideias revolucionárias?
Tais questões são muito pertinentes numa altura em que há quem afiance a decadência irreversível do ideal social-democrata e socialista. Mas, se as próprias ideologias de direita parecem finar-se perante o avanço dos populismos, que futuro será o nosso, senão o de desmentirmos quem se apressou a anunciar o enterro antecipado das ideias mais igualitárias?

DIÁRIO DE LEITURAS: Uma guerra esquecida em África

Tive desde muito cedo a perceção do que se estava a passar em África: a Guerra Colonial surgiu quando tinha quatro anos, mas as notícias de mortes e esquartejamentos de brancos em Angola foi tema de conversas a que não podia ficar alheio.
Um par de anos depois, já na escola primária, um professor indignava-se com a forma como a Índia ocupara Goa, Damão e Diu e procurava associar-nos ao ódio aos terroristas e aos comunistas.
Curiosamente nunca me senti contagiado por essas emoções primárias. Pelo contrário o que comecei a interiorizar foi a forte possibilidade de vir a ser alistado no exército, calhando-me igualmente a sina de matar e morrer, duas ameaças a evitar tanto mais que ouvira do meu avô materno as provações da sua campanha na Flandres.
Foi das suas palavras que intuí a razão para as sucessivas derrotas sofridas pelos exércitos lusos e nada condizentes com as palavras enfáticas do regime para dourar os brasões do Império: em La Lys tudo resultara da incompetência dos políticos e generais, que tinham mandado jovens incultos para a carnificina das trincheiras.
Nunca mais me abandonou essa versão da História: ao contrário da mitologia em torno da grandeza dos heróis da Pátria, criada em torno dos Descobrimentos, nunca aceitámos que, após essa época relativamente dourada, continuámos a ser um povo sem as competências e as capacidades para os projetos megalómanos em que nos quiseram envolver. Como a de querer preservar intocado um Império Colonial, quando todos eles se iam dissolvendo em sucedâneos de neocolonialismo mais ou menos bem sucedidos. Ou, atualmente, pagar a dívida, que sabemos impossível de o fazer nos termos em que ela está formatada.
Os séculos mais recentes têm sido pródigos os exemplos de nos vermos metidos em camisas de onze varas sem que os nossos políticos se mostrem à altura dos desafios. Como se viu com passos coelho nestes últimos quatro anos!
O livro, que Manuel Carvalho agora apresenta - «A Guerra que Portugal quis Esquecer» - é elucidativa de em exemplo, que vale a pena recordar: durante a I Grande Guerra os exércitos enviados para Moçambique, a fim de confrontarem os invasores alemães, sofreram pesada derrota, não tanto pela capacidade dos inimigos, mas pela impreparação dos oficiais e dos soldados para as agruras climáticas e as doenças correspondentes. No final morreram bem mais portugueses naquela colónia do que na Flandres. Algo que o Estado Novo sempre quis esquecer... 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A supremacia dos cínicos

Em 1963 a criação de histórias em torno do mundo da espionagem conheceu dois títulos, que não podiam ser mais opostos na forma como a descreviam: «007, Ordem para Matar», o primeiro filme da longa linhagem do espião criado por Ian Fleming não podia ser mais maniqueísta. Os serviços secretos ocidentais eram os bons (em tudo, até na cama com a inserção das concupiscentes Bond girls), enquanto os russos eram ruins como as cobras.
Pelo contrário, o romance «O Espião que veio do frio» de John Le Carré demonstrava que, nesse mundo clandestino, a falta de escrúpulos funcionava para os dois lados, e, porventura, até se poderia considerar mais crapulosa no que ao Ocidente dizia respeito.
Tive agora a oportunidade de rever a sua adaptação para cinema, rodada há precisamente cinquenta anos, por Martin Ritt. E, mais do que o mérito em si da realização ou das interpretações dos atores (sobretudo Richard Burton e Claire Bloom), continua a prevalecer a engenhosidade da intriga.
O protagonista é Alex Leamas, chefe dos serviços britânicos em Berlim, que vê um dos seus agentes no lado oriental a ser assassinado quando buscava passar para ocidente. A culpa é de Mundt, o homólogo comunista, que tem sucessivamente eliminado os melhores contactos de Leamas, frustrando-lhe os intentos de conseguir informações relevantes do inimigo.
Quando os seus chefes em Londres o desafiam para uma missão destinada a matar esse inimigo, Leamas não hesita em aceitar. Cria, assim, a imagem de um alcoólico depressivo, que acaba despedido do emprego e só consegue outro, de recurso, na biblioteca de uma fundação particular. Tem aí a oportunidade de conhecer Nancy Perry, uma colega assumidamente comunista, com quem começa a namorar.
Na sequência de uma briga, Leamas vai parar à prisão, sendo então esperado por um agente da Alemanha de Leste, que o insta a colaborar com o seu país mediante um generoso pagamento.
A missão parece encaminhar-se para o almejado sucesso, quando, já em território alemão contacta com Fiedler, o adjunto de Mundt a quem fornece informações, aparentemente irrelevantes, mas que o conduzem a suspeitar do seu chefe.
Se Mundt começa por prender Fiedler e Leamas acusando-os de traição, vê-se por sua vez julgado devido às suspeitas, que eles tinham suscitado a seu respeito e que o inculpariam como espião a soldo dos britânicos.
Quando Leamas já julgava a sua missão coroada de sucesso, dá-se o golpe de teatro: o advogado de Mundt convocara Nancy Perry e, involuntariamente, ela desmascara a verdadeira razão da presença do amante ali.
Resta a Leamas salvá-la com a confissão do objetivo da sua aproximação aos serviços secretos alemães. Mas, na mesma noite, Mundt possibilita a fuga de ambos, demonstrando a razão das suspeitas de Fiedler.
A exemplo do  espião ocidental, que Mundt mandara matar quando estava prestes a chegar à salvação, também Leamas e Nancy chegam ao muro e acabam alvejados, porque já não tinham qualquer préstimo para a espionagem britânica .
Há, pois, uma lógica matemática e perversa, sem espaço para os estados de alma. Todos os personagens estão encerrados nos seus labirintos sem hipótese de deles se libertarem. Os muros estão por todo o lado e os personagens são meros peões movimentados por instâncias superiores sem terem disso consciência. E as vítimas são os mais ingénuos, os que acreditavam sinceramente em valores e não se conseguem aperceber da supremacia dos cínicos. 

domingo, outubro 25, 2015

PALCOS: Até onde iremos abster-nos?

Quem ainda não viu um dos mais impressivos espetáculos teatrais atualmente em cena nos palcos da Grande Lisboa tem mais uma semana para o fazer já que o sucesso de «Abstenção», que O Bando leva à cena nas suas instalações do Vale dos Barris em Palmela, justificou o seu prolongamento por mais uma semana. E se a peça não suscita o entusiasmo, que o grupo nos criou com «Quarentena» no ano passado e com «Ensaio Sobre a Cegueira» em 2004, não deixa de questionar muito oportunamente a nossa realidade.
À partida existia o texto «Cruzeiro» de Abel Neves sobre uma família a viver numa mansão arruinada no campo e em que o pai exercia um poder autoritário sobre a mulher e os filhos, que silenciavam ou não resistiam às suas humilhações. A partir dele João Brites e Miguel Jesus trataram de lhe dar forma dramatúrgica e remetê-lo para o que nos sugerem as diversas formas de abstenção: porque não corremos nas urnas eleitorais com quem nos tem maltratado no governo? Porque calamos a nossa revolta? Porque não resistimos?
Se esse trabalho preparatório da peça foi feito ainda antes das eleições de 4 de outubro, o seu desiderato pôde ser visto a partir do dia 8, quando já se colocavam as novas possibilidades abertas pela previsível concertação das diversas forças de esquerda.
Mas o cerne da questão continua em aberto, porque devemos compreender o que leva alguns - como a mulher do lavrador - a preferir o silêncio como forma de contestação, por muito que ele a nada conduza. E, quando se coloca a possibilidade de ver os filhos prepararem-se para contestar esse poder totalitário, até é capaz de sair do seu mutismo para lhes lembrar que não podem fazer isso por se tratar do seu pai.
E, no entanto, esse poder - que é o dos governos capitalistas, que nos oprimem - já está quase cego e  depauperado por um acidente: o trator que conduzia tombara e atropelara-o, o que condiz com a forma como a História está a cuidar de demonstrar a degenerescência progressiva deste tipo de sistema.
Mas que dizer desses filhos, que detestam o pai, mas continuam a cumprir com o que ele lhes ordena? O mais novo vai afiando uma faca - que poderia servir para degolar o ditador - mas  vai devolvendo-a a ele para inspecionar se já estará tão aguçada como a sua gadanha. E o mais velho até está disposto a casar com a rapariga da aldeia a quem o pai engravidara, só para que se salvem as aparências.
Há, pois, a tensão de muita revolta contida, mas quando ela explode é para vitimar quem  seria inocente em tudo quanto se passara: a criança no ventre de Rosa.
Acabamos, assim, com o ditador cada vez mais agrilhoado na sua fortaleza, mas ao mesmo tempo protegido de quem a queira assaltar. Exceto da Morte, que virá, no final, ao seu encontro.
Mas fica a questão: estaremos dispostos a deixar que este sistema de exploração morra de morte natural, abstendo-nos de lhe acelerar o fim?


DIÁRIO DE LEITURAS: A desconhecida literatura indonésia

O meu desconhecimento sobre a literatura indonésia é quase total, pelo que a sua divulgação na Feira do Livro de Frankfurt constituiu a oportunidade para me inteirar - mesmo que à distância e por interpostas reportagens - da diversidade cultural e da longa tradição literária do país que se define como constituído por “17 mil ilhas da imaginação”.

Mas o arquipélago possui uma história recente terrível  - e os timorenses que o digam! - a conjugar-se com sérios problemas ambientais por solucionar. Razão para que alguns dos seus mais emblemáticos autores assumam um olhar extremamente crítico sobre o ambiente em que cresceram e vivem.
Okky Madasari denuncia a crescente influência do fanatismo religioso. Apesar dela própria se definir como muçulmana e trajar sempre com a cabeça coberta, sente-se inquieta pela permissividade das autoridades para com grupos minoritários, muito ativos na organização de manifestações de intolerância. Estão, assim, a romper-se equilíbrios entre comunidades religiosas, que, mesmo sob a ditadura militar, tinham convivido num clima de mútuo respeito.
Se nos quatro romances anteriores ela abordara as injustiças sociais, a violência e a corrupção, no mais recente - «Gebunden» («Mentiras») - conta o percurso complicado de dois jovens, um dos quais chegará a líder de um grupo islamista.
Outra escritora em evidência é Leila S. Chudori, conhecida jornalista de Jacarta, que pretende recordar o que foi a ditadura de Suharto, muito particularmente na forma como surgiu em 1965. A tortura e assassinato de dois milhões de comunistas bem como a segregação dos familiares, que lhes sobreviveram, continua a ser um dos problemas mais complicados na atual sociedade indonésia. Porque nenhum dos responsáveis por tal morticínio foi levado a julgamento, nem as suas vítimas indemnizadas.
«Pulang», o romance mais recente de Leila S. Chudori, passa-se entre Paris e Jacarta, contando histórias de indonésios que se exilaram e das famílias, que não saíram do país.
Outro autor a merecer referência é Andrea Hirata, que conheceu a dolorosa realidade do trabalho infantil nas minas de estanho da sua ilha natal, a de Belitung. Mas pôde frequentar a escola graças a uma professora muito empenhada que, quase sem quaisquer apoios, conseguiu ensinar os filhos dos mineiros.

Andrea Hirata evoluiria depois para uma carreira literária de grande sucesso por todo o país, já que os seus romances têm sido regularmente adaptados ao cinema.
Por razões óbvias ele revela-se como um fervoroso apoiante de todas as iniciativas destinadas a garantir a educação aos mais desfavorecidos.
Temos, assim, três autores que constituem boas sugestões para dedicarmos alguma atenção a uma literatura  por muitos elogiada.

sexta-feira, outubro 23, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Homeland» de Abbas Fahdel

Amanhã, dia 24 de outubro, pelas 16.45 passará no C. City do Campo Pequeno, um dos filmes mais interessantes de entre as mais de duas centenas, que integram a programação do DOC Lisboa: «Homeland» do iraquiano Abbas Fahdel.


Rodado antes e depois da invasão de março de 2003, dá-nos o outro lado da história, que nos foi sempre apresentada pelos olhos dos invasores.
Mesmo quando alguns cineastas norte-americanos procuraram facultar-nos um olhar crítico sobre os crimes decididos por bush, blair, aznar e barroso na sinistra cimeira dos Açores, nunca poderiam dar-nos os estados de alma dos agredidos. Porque a prioridade era a de mostrar os soldados norte-americanos como vítimas das decisões dos seus próprios generais.
Fahdel dá-nos essa oportunidade através do dia-a-dia da sua família e a forma como vai interpretando os sinais de uma drástica alteração nas suas vidas, que incluirá até a morte de um dos sobrinhos.
Esse acontecimento traumático terá bastado para que, durante anos, ele não pegasse no material filmado anteriormente. Agora que teve coragem para o fazer, pode concluir aquele que passará a ser um dos testemunhos mais contundentes sobre os crimes contra a Humanidade, que nenhum Tribunal de Haia se dispôs ainda a sancionar... 

quinta-feira, outubro 22, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Cenários da desolação

Na primeira das principais histórias contidas na segunda parte de «As Mil e uma Noites» de Miguel Gomes temos Simão «Sem Tripas», que assassinou a mulher e a filha e se pôs em fuga pelos campos.
Estamos, pois, perante um caso similar ao conhecido no ano passado, confirmando o projeto de Miguel Gomes em ficcionar a partir dos acontecimentos, que iam ocorrendo enquanto filmava o seu tríptico.
Durante muitos dias, Simão consegue escapar à polícia, ao mesmo tempo que vai conseguindo dar vazão às suas necessidades mais básicas, seja de alimentos, seja de sexo.
Enfim preso, ele é objeto da aclamação pela população, que faz dele um inexplicável «herói».
Sobre o estado da Justiça deparamos com outra história, algo de surreal, que começa com uma rapariga a sair da cama onde acabara de perder a virgindade, para se acolher aos braços da mãe, uma juíza que lhe prodigaliza conselhos. É esta quem, a seguir, irá presidir a um julgamento onde um primeiro acusado atira as culpas para uma das pessoas, que estava na assistência, que, lesta, a reenvia para outra, e assim por diante, até que, perante uma tão longa lista de crimes e de culpados, a juíza cai em lágrimas.
Na última das histórias, que justificam plenamente o subtítulo do filme - «O Desolado» - a amiga de um casal, seus vizinhos, oferece-lhes um cão, Dixie, para que se sintam menos deprimidos e se agarrem a um ser tão carente de ternura.
Luísa e Humberto relacionam-se então com um outro casal, Vasco e Vânia, que vivem nos prédios degradados em frente à sua casa, e a quem contam as histórias de quem vive ali.
Um dia, os jovens recebem a incumbência de cuidarem de Dixie, enquanto os donos se irão momentaneamente ausentar.
Desconfiando da demora no regresso, Vascoe  Vânia alertam a vizinhança sobre as suas desconfianças, que acabam por ter cabimento: desempregados e doentes, Luísa e Humberto tinham cumprido um pacto de suicídio. Dixie mudará, uma vez mais, de donos.
À saída do cinema a conclusão era óbvia: se no primeiro volume da trilogia sentíamos indignação, neste encontrávamos motivos para nos sentirmos desolados com uma triste realidade, que nos ultrapassa. Constatáramos uma sensação de perda inexorável de qualquer referência a que muita gente se possa agarrar.
Se no filme anterior concluíramos pela entrada numa era de absurdo, contaminada pelas consequências do memorando da troika, este sustenta tal ilação com exemplos de uma aflitiva confirmação. E o cinema cumpre a sua função, quando nos inquieta, nos indigna e nos impressiona... 

quarta-feira, outubro 21, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A urgente introspeção de Israel

Amos Gitai é um dos mais interessantes cineastas israelitas por ter uma obra consistente na luta contra os fundamentalismos ortodoxos dos seus concidadãos. Não admira, que acabe de apresentar «The Last Day», o seu filme mais recente cuja estreia está agendada para 4 de novembro, quando passarem vinte anos sobre o assassinato de Itzhak Rabin.


O dia referido no título do filme foi aquele em que se finou a esperança de uma paz duradoura entre Israel e o novo Estado da Palestina tal qual havia sido gizado pelos Acordos de Oslo. Nesse dia o assassino, Yigal Amir, não matou apenas o antigo herói militar e primeiro-ministro, que tanto mérito tivera em escancarar as portas para um futuro de paz para o Médio Oriente: ele tornou-se no responsável pelos muitos milhares de mortos, entretanto tombados dos dois lados em conflito, sem esquecer os que colateralmente vieram a ser vítimas nos diversos conflitos dos países vizinhos.
Se os acordos de Oslo tivessem prevalecido, muito provavelmente, a geografia dessa região seria hoje completamente diferente e o mundo não estaria tão assente sobre escaldantes brasas.
O filme de Gitai não se limita a denunciar o alcance do crime de Amir, porque recupera as imagens de Benyamin Netanyhaou a apelar nos dias anteriores ao homicídio como forma de impedir a História de seguir o curso, que ele detestaria testemunhar.
Para Gitai trata-se de submeter a sociedade israelita a uma introspeção sobre as consequências dos atos dos seus setores populacionais mais fanatizados... 

DIÁRIO DE LEITURAS: Pavese muitos anos depois...

Nos tempos em que o marcelo - o outro! - julgava endrominar os portugueses com as conversas “em família”, eu pertencia à geração dos que, à saída da adolescência, liam Cesare Pavese com fervor.
Além da qualidade da escrita as histórias por ele contadas vinham ao encontro das nossas preocupações juvenis num país ainda condicionado pela ditadura e com o espectro da guerra a assombrar-nos.
Aquilo que já então nos desconcertava era o suicídio do autor em 1950, cinco anos depois da libertação de Itália e quando o seu quotidiano deveria ser menos soturno do que ocorrera durante a guerra.
Sessenta e cinco anos passados sobre esse trágico desenlace ainda continua por perceber o que levara o intelectual, que fora sucessivamente fascista, antifascista, deportado político e comunista, a desistir da vida. E, no entanto, da leitura dos seus livros podemos recolher algumas pistas pertinentes.
Debrucemo-nos sobre «La belle estate», que publicou em 1949 e inclui, além da novela que serve de título ao volume, escrita em 1940, outras duas: «Il diavolo sulle colline» (1948) e «Tra donne sole» (1949). Todas elas apresentam similitudes nas temáticas sem porém constituírem uma verdadeira trilogia.
«O Belo Verão» faz-nos conhecer o quotidiano de Ginia, uma jovem modista de dezasseis anos, muito dada à alegria das festas, e ao prazer de servir de modelo a alguns pintores. Um deles, Guido, inicia-a nos prazeres carnais, mas logo a despreza cinicamente, obcecado pela ideia de pintar uma colina como se fosse uma mulher nua.
Pavese procurou criar uma prosa poética, que enquadrasse o paralelismo entre a transição da protagonista da adolescência para a idade adulta e as variações impressionistas dos enquadramentos, ora luminosos, ora marcados por brumas melancólicas.
Na novela seguinte, «O Diabo nas colinas», Pavese escreve: “nada cheira tão a morte como o sol de verão com a sua luz brilhante e a natureza exuberante. Respiramos o perfume de um bosque e logo compreendemos como os animais e as plantas nos desprezam. Tudo vive e desaparece. A natureza é a morte…”
Iludindo o tédio mediante turbulentas noitadas três amigos de Turim vão dar a uma quinta no campo, antes de regressarem ao ambiente do Greppo, onde os aguarda a fascinante Poli, uma morfinómana muito rica que sublima a queda no abismo com o abandono de si mesma. O que leva Pavese a concluir: “poucos conhecem os confins da sua sensualidade”.
Na última novela, «Entre Mulheres», que Antonioni filmou, a narradora é Clelia, que regressa a Turim na época do carnaval. Em tempos vivera a ilusão de uma subida no elevador social. Mas, agora, cabe-lhe evitar o suicídio da amiga Rosetta, recordar o que ali vivera na infância e aguardar pela morte do pai. A subversão generalizada provém do dinheiro, que constitui o derradeiro veículo de comunicação entre seres mergulhados na sua solidão.
Ao concluirmos a leitura do livro sentimos a tensão entre a revolta e o fascínio pelo fracasso. O casal é uma impossibilidade numa sociedade onde se valoriza o factual e o sentido das aparências...