sábado, maio 22, 2010

Livro: «L'Horizon» de Patrick Modiano

E eis que Jean Bosmans chega a provecta idade obcecado pelas suas recordações. De nomes, de lugares  e outras referências de um passado, que lhe chegam caoticamente à mente. O que o obriga a estruturá-las, mediante a sua descrição detalhada no moleskine, que o acompanha.
Tais fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida lhe parecia uma sucessão de cruzamentos entre tantas alternativas quantas as que lhe suscitavam o embaraço da escolha. Por exemplo, Mérovée, um colega da sua namorada de então, Margaret le Coz, que costumava animar um grupo de foliões auto-designado de «bando alegre». E a quem voltaria a ver à beira de um passeio, muito mais velho e menos animado, quando, anos mais tarde,  passava num táxi. Bosmans pensara então que o destino insiste algumas vezes. Cruza-se duas, três vezes com a mesma pessoa. E se não se lhe fala, tanto pior.
Mas as recordações levam-no a focalizar-se nessa Margaret Le Coz a quem conhecera por mero acaso, dando razão a algo que lera a propósito dos primeiros encontros, definidos como uma espécie de ferida. E no seu caso com ela fora-o literalmente, porquanto se tinham agarrado um ao outro num dia de súbito fluxo de manifestantes acossados pela polícia de choque nos corredores do metropolitano aonde ambos transitavam. Margaret ganhara de tal experiência uma pequena lesão numa das sobrancelhas.
Do pouco que ficara a saber dela nesse primeiro encontro, Bosmans retivera que, apesar de bretã, ela nascera em Berlim e trabalhava como secretária na firma Richelieu Interim.
Olhando agora para esse passado, Jean Bosmans retém a sensação de asfixia nesse mergulho de ambos no seio da destrambelhada multidão. Mas também a iminência de uma ameaça terrível, que deixava ambos num estado de permanente inquietação. Para Margaret o receio provinha de um homem do seu passado com quem jamais dormira, mas decidido a assediá-la de formas progressivamente mais ameaçadoras.
E Jean conta com maus encontros com a detestada mãe e seu amante, que sempre se traduziam na espoliação de todo o dinheiro, que consigo transportasse.
Como de costume em Modiano temos em Bosmans e em Margaret dois solitários, que unem esforços num meio urbano hostil donde as agressões podem surgir sem aviso.
À medida que avançam, as evocações do sexagenário, vão acumulando novos dados sobre ele e a tal namorada da sua juventude. Por exemplo o trabalho dele numa livraria dedicada ao ocultismo e onde os clientes rareavam tanto, que lhe davam ensejo de escrever o seu primeiro romance. Ou sobre a estadia anterior de Margaret na Suiça aonde fora governanta de um tal Bergherian, com serviço de ama seca dos filhos e de amante nas noites bem bebidas.
Na segunda metade do romance desfocalizamo-nos de Jean e acompanhamos Margaret através de novas revelações: o seu nascimento como resultado de uma efémera relação da mãe de quem se distanciaria, quando ela lhe arranjara um padrasto execrável na pessoa de um garagista. Ou a juventude passada em Annecy, aonde conhecera o inquietante Boyaval no Café da Estação, quando o frequentava a desoras para iludir a solidão na companhia silenciosa de outros desadaptados.
O namoro de Jean e de Margaret durara alguns meses até ela conhecer involuntários problemas com a polícia graças às actividades ilícitas do casal de osteopatas, de cujo filho se tornara preceptora. A fuga apressada num comboio em direcção à Alemanha funcionara como a única alternativa viável.
Decidido a reencontrá-la e avançando na sua investigação até a identificar em Berlim aonde parece gerir uma pequena livraria, Jean move-se no sentido de um reatamento com o passado, aonde algo de essencial como é o amor, lhe ficara interrompido…
Como se vira no início do romance, o destino deverá ser forçado, sempre que se justifique...

domingo, maio 16, 2010

BOBBY CASSIDY»

Ao princípio havia um miúdo atormentado pela mãe alcoólica. Que lhe arranja um padrasto tão odioso como ela. Ambos lhe vaticinam continuamente um futuro de fracassado ao mesmo tempo, que não se poupam a dar-lhe violentas tareias.
Aos dez anos o miúdo Bobby só queria morrer.
Mas cresce e envereda pelo boxe a conselho de quem lhe quer evitar os problemas de uma delinquência quase inevitável no seu percurso posterior.
E a modalidade, que pode ser execrada pelo que tem de violento e de corrupto, correspondeu à bóia de salvação a que Bobby se agarrou com determinação nos dezoito anos seguintes. Sempre com grande sucesso, muito embora lhe fique a mágoa de não ter conseguido competir para o título de campeão do mundo de meios pesados.
O filme de Bruno Almeida, datado de 2009, é um belíssimo retrato deste homem, que fez da educação dos filhos o seu percurso de redenção, dando-lhes o tipo de infância a ele negado.
Duas terão sido, então, as razões para esse longo calvário de Bobby face a temíveis adversários: a sua afirmação perante essa mãe e esse padrasto, que ainda o viriam ver nalguns combates, fazendo-se de tardios fãs de quem tanto tinham desprezado. E propiciar aos dois filhos o melhor futuro possível e com uma dose superlativa de carinho. Objectivos, que conseguiu cumprir em pleno.
Mas os dez rounds em que Bruno de Almeida divide o seu filme não escamoteia o lado mais ambíguo de Bobby, aquele que o leva a cumprir ano e meio de prisão por envolvimento com a Mafia logo após ter abandonado os ringues. Mas, também o outro lado, o de actor capaz de um desempenho irrepreensível no monólogo retirado de um filme dos anos 50, e referente a um personagem quase caracterizável como seu possível alter ego.
O filme alterna as entrevistas com as imagens desses memoráveis combates em que, não raro, os adversários de Bobby caem no tapete. Mas o que fica é o olhar magoado de um homem para quem nenhum sucesso conseguiu debelar essa profunda tristeza de nunca ter sido devidamente apreciado, quando lhe era tão importante sê-lo.
Bruno de Almeida conforma-se como realizador a quem convirá estar doravante atento...

Fotograma - "Bobby Cassidy" de Bruno de Almeida

terça-feira, maio 11, 2010

Documentário: «O Mistério das Abelhas Desaparecidas» de Mark Daniels

No dia 18 de Maio a ARTE exibe um documentário sobre o mistério do desaparecimento das abelhas, um pouco por todo o mundo.
Para o entomologista Bernard Vaissière a crise é paradoxal, porquanto há cada vez mais superfícies cultiváveis a necessitar do efeito polinizador desses insectos e, quer na Europa, quer nos EUA, os apicultores constatam uma mortalidade de 30 a 80% nas suas colmeias.
As abelhas polinizam 80% das flores selvagens e 76% das principais espécies cultiváveis no mundo -  o que corresponde a 35% da produção agrícola vegetal, que consumimos. Poderemos estar, pois, à beira de uma terrível catástrofe ecológica e agrícola.
A maioria dos estudos atribuem a responsabilidade pelo desaparecimento das abelhas aos novos pesticidas, à multiplicação das culturas intensivas e ao surgimento de novos parasitas e predadores.
Em suma estamos perante as consequências de uma lógica produtiva mundializada, estimulada pelo crescimento populacional e pelas novas necessidades alimentares.
Infelizmente a solução defendida por muitos dos que sugerem respostas a este problema, é a de criar uma mutação genética nas abelhas domésticas de forma a que resistam melhor aos factores de risco. O que significaria escamotear as verdadeiras causas do problema (a sobrepopulação num planeta incapaz de assegurar sustento a tanta gente) em proveito da criação de um monstro à medida dos novos frankensteins dos laboratórios científicos.
O documentário de Mark Daniels é deste ano e tem 90 minutos de duração, começando com colmeias desertas, sem cadáveres de abelhas à vista, mas com uma rainha saudável no interior, rodeada de larvas viáveis e de um punhado de jovens adultos enfraquecidos. Mas quanto ás obreiras, viste-las!
Trata-se de um sindroma fulminante, que dizima as colmeias norte-americanas desde 2006 e que, lentamente, se alastra a todo o mundo, agudizando uma decadência, que se vinha sentindo desde o pós-guerra.
Ora, sejam domésticas, sejam selvagens, as abelhas desempenham um papel insubstituível na biodiversidade e na agricultura humana. Sem estas sentinelas da natureza, não há polinização das flores, nem frutos, nem legumes.
Nos laboratórios franceses, americanos ou alemães, investigações convergentes demonstram a interacção de uma multiplicidade de factores na mortalidade anormal das abelhas. Não se pode, por exemplo, inculpar exclusivamente os pesticidas como nos anos 90, mas em compensação, se eles forem combinados com um vírus ou com um cogumelo, o efeito de certos produtos desmultiplica-se.
O que muitos investigadores propõem é a criação urgente de uma agricultura mais respeitadora do ambiente em vez de se pensar numa abelha transgénica...



domingo, maio 02, 2010

Filme: Heddy Honigmann: «O Amor Natural» (1996)

Descoberta curiosa a que o Festival Indie nos proporcionou com esta homenagem ao universo poético de Carlos Drummond de Andrade e, em particular, à sua poesia erótica só divulgada depois da sua morte e aqui comentada e lida por cariocas de provecta idade.
O que ressalta de todo o filme é a descontracção de todos estes brasileiros para quem o sexo e o prazer são realidades perfeitamente naturais e usufrui-lo constitui uma verdadeira bênção. São eles quem melhor se identificam com as descrições pormenorizadas de Drummond a propósito do sexo heterossexual em todas as suas vertentes possíveis...
É certo que nem todos são apreciadores incondicionais da arte do poeta: duas mulheres num eléctrico não hesitam em realçar-lhe o lado misógino, ainda que superiormente bem escrito. Mas aonde o poeta conhece entusiásticos apoiantes é nos que lembram os seus tempos de boémia com nostalgia ou nos que evocam o poeta como o paradigma de um tipo de pessoas já completamente desaparecidas do Rio. Sobretudo desde que o golpe militar de 1964 instituiu a ditadura fascista e reprimiu os sinais mais interessantes de uma libertinagem até então existente.
Se alguém se incomoda com o tipo de escrita aqui em causa é uma rapariga muito jovem, cujo olhar reprova com veemência as revelações de um velho de 84 anos sobre um passado marcado por várias namoradas e amigas. Como se a descomplexada abordagem do prazer sexual deixasse de estratificar posições a partir de uma posição de género, para o fazer numa clara distanciação entre gerações.
Divertido, «O Amor Natural» constituiu, pois, uma boa descoberta relativamente a uma cineasta, que merecerá uma análise bem mais aprofundada da sua forma de transmitir a sua própria interpretação sobre o mundo que a rodeia.