quarta-feira, agosto 31, 2016

(V) «Johnny got his gun» de Dalton Trumbo (1971)

Rodado enquanto a América patinhava no vespeiro indochinês, este filme de Dalton Trumbo foi muito valorizado pela forma como mostrava o carácter absurdo e cruel da guerra, chegando a ser implacável na sua aparente ingenuidade.
Ferido durante a Primeira Guerra Mundial, Johnny ficara sem membros e com o rosto desfigurado. O cérebro, porém, continuava a funcionar normalmente, o que lhe permitia revisitar na memória os acontecimentos anteriores à sua tragédia pessoal.  Consegue também comunicar em morse com o pessoal de enfermagem do hospital e é em vão, que suplica para que lhe abreviem o sofrimento…
Apesar de já ter 66 anos, Trumbo teve aqui a sua estreia na realização, porque além de argumentista reputado - «Exodus» e «Papillon» tinham a sua assinatura! - passara muitos anos marginalizado por Hollywood depois de ter sido apontado como um dos principais alvos do sinistro senador McCarthy.
O filme obedece a uma construção extremamente simples, baseada na montagem paralela entre as cenas do hospital a preto-e-branco e as recordações a cores, quando o protagonista vivia numa efémera felicidade.
A Administração Nixon não gostou nada desta denúncia pacifista, que se entroncava nas manifestações contra a guerra do Vietname.



(L) «Pouco antes da guerra com os esquimós» de J. D. Salinger

Mais um conto de Salinger que poderia adaptar-se perfeitamente a um palco, constituindo parte de uma peça com vários quadros sobre o grande teatro do mundo.
Ginnie é uma miúda de quinze anos, que joga ténis há vários sábados com uma colega da escola, e é por ela deixada sozinha na sala da casa nova-iorquina onde vive enquanto espera ver-se ressarcida de metade do custo do táxi até ali. Sucessivamente vão por ali passar dois personagens, qual deles o mais singular.
Primeiro Frank, o irmão de Selena, que viera do Ohio onde trabalhara numa fábrica de aviões até decidir despedir-se. Agora desempregado, vai resistindo como pode às pressões paternas para que regresse à universidade.
A seguir é Eric, um amigo deste último personagem, que também estivera no Ohio e estava apostado em o levar dali para irem ver um filme do Cocteau. É que o amante abandonara-o nessa mesma manhã, levando tudo quanto de valioso partilhavam, e agora só lhe restava a solidão.
Interessada em Frank, Ginnie despede-se sem receber o seu dinheiro para ter pretexto para ali voltar nessa mesma noite.
A imprevisibilidade dos títulos de Salinger remetem-nos para um universo ficcional em poucas páginas, mas capaz de criar uma tensão impressiva em quem nele aterra.  Confirma-se, assim, o que muitos dos apreciadores da sua escrita defendem: um talento imenso em, com poucos elementos, conseguir a criação de uma mundividência complexa, onde o que fica subentendido é muito mais relevante do que quanto se diz.

terça-feira, agosto 30, 2016

(V) «A jovem noiva» de Alessandro Baricco

Ao falar do seu livro, o escritor italiano refere a influência do realismo mágico, ainda que temperado com assumida racionalidade. Talvez o aspeto mais singular onde tal sugestão mais se evidencia é no terror vivido pela família decadente de Lampedusa, em que todos se deitam ao crepúsculo, temerosos de terem encontro com a morte nessa mesma noite. É que a tradição familiar dita ter sido assim que aconteceu com os antepassados.
A catarse dos medos noturnos faz-se pelos grandes banquetes, que preenchem grande parte dos dias, pois iniciando-se ao pequeno-almoço prolongam-se até a tarde já ir avançada. Vale-lhes Modesto, o mordomo, que tudo vigia para que a felicidade seja um estado permanente dos convivas.
É nessa casa que se instala a jovem esposa do filho da família, não o encontrando por ele estar em Londres. Aos dezoito anos ela deixara a Argentina e o pai incestuoso, que se matara ao constatar-lhe a fuga, para ali conhecer a iniciação amorosa de diversas formas e pelos diferentes elementos da família. Trata-se, pois, de novela libertina, construída como se escrita na grande época classicista e onde tudo parece envolvido pela ambiência fantasiosa. É nela que se enquadra esse tio sempre adormecido, que só desperta momentaneamente para proferir sibilinos oráculos.
Baricco tem um conhecimento profundo da música clássica para imitar literariamente as suas construções mais complexas, ao surpreender e despistar o leitor com as sucessivas mudanças de perspetiva, como se tudo integrasse um labirinto capaz de o distrair do sentido metafórico que lhe está subjacente.
A casa familiar onde tudo se passa está a viver uma irreversível decadência e os seus ocupantes adivinham-na a inquietante distância. Mas enquanto o amor for vencendo a noite, cada dia acaba por representar um ganho...

(V) Ainda Tavernier e Simenon

Na continuação da abordagem a «L’Horloger de Saint Paul» de Bertrand Tavernier, vale a pena salientar que ele sentiu-se na pele de Samuel Fuller quando este dizia da necessidade de rodar filmes sempre que sentisse cólera contra algo.  Ora Tavernier estava indignado com um certo confortozinho autossatisfeito bem francês existente no  rescaldo do maio de 68. O juiz de Lyon, que lhe emprestara as instalações para a rodagem das cenas de tribunal dissera-lhe que mais de metade dos pais dos miúdos a quem julgava pediam-lhe penas mais pesadas do que a legislação lhe permitia.
Era contra esse tipo de pessoas, que Tavernier queria fazer o filme, a quem atribuía as culpas pelo ambiente social asfixiante e cobarde. Daí a cena em que se vê uma mulher entrevistada por uma televisão sensacionalista, sem pudor em dizer que “os jovens comportam-se mal porque lhes dão demasiadas liberdades.” Ou que um adjunto de Guiboud fale da obscenidade de um filme apresentado em Cannes, «La Grande Bouffe» (onde um dos atores era precisamente Philippe Noiret).
Tavernier nunca escondeu as simpatias de esquerda, o que lhe valeu a estigmatização de muitos dos seus detratores. Mas a forma de fazer um tipo de cinema político não o impedia de dar prioridade à vertente humana das suas personagens. Estes nunca são estereótipos destinados a ilustrar mensagens direcionadas, surgindo-nos como pessoas reais, de carne e osso, que se interrogam e evoluem. O comissário Guiboud não é um bronco, mas um homem culto e tolerante. E Michel é o tipo de pai, que se esforça  por compreender  as causas e as circunstâncias em que o seu filho se tornou num assassino. Por isso em vez de procurar argumentos para invocar circunstâncias atenuantes, tenta compreende-lo na integralidade, na sua verdadeira essência.
Será essa, afinal, de melhor se sentir próximo dele!

(V) «Cartas da Guerra» de Ivo M. Ferreira

Há meia dúzia de meses morreu o meu primo João Carlos, que vivera a experiência da Guerra Colonial em Moçambique, na zona de Tete, e de lá viera moderadamente traumatizado depois de meses de comissão a embalar corpos de colegas mortos para embarcarem nos navios, que os trariam para o Continente.
Não lhe conheci as reações violentas de outros casos similares ou as reações extemporâneas de quem é capaz de se atirar para o chão numa paragem de autocarro por causa do súbito deflagrar de um escape. Apenas fui verificando que esse período da sua vida era para ser silenciado, se não mesmo esquecido à conta de paliativos de substituição.
No funeral constatei que nunca com ele falara sobre tal experiência, dela sabendo menos do que a sucedido com o avô de ambos a quem, até morrer quando eu tinha catorze anos, ouvira abundantes descrições de tudo quanto vivera nas trincheiras da Flandres durante a Primeira Guerra Mundial.
A Guerra Colonial tornou-se num tabu do imaginário nacional, porque sendo uma guerra injusta, condenada pelos ventos da História, viu nela passar gerações de rapazes forçados a rapidamente confrontarem-se com terras, populações e situações para as quais a vida até então não os preparara.
É por isso que um filme como «Cartas de Amor», que se estreará na quinta-feira, tem assinalável importância por nos devolver uma história, que permanece recalcada nesse coletivo comprometido. Não deixa de ser curioso que, a exemplo de «Tabu» de Miguel Gomes, também sobre a presença dos portugueses em África, ambos os realizadores optem pela fotografia a preto-e-branco, porque aquele que é um universo colorido, está condicionado pela memória de uma época marcada pelo maniqueísmo da propaganda fascista, se não mesmo pela lógica constante de matar e não morrer.
Confesso que comecei por sentir algum preconceito com este projeto: tenho uma antipatia muito própria por Lobo Antunes, que nunca deixou de ser o despeitado por não lhe ter cabido o Nobel atribuído (muito mais merecidamente a Saramago!). Mas, porque não há muito material narrativo sobre que se possam basear os realizadores, e Ivo M. Ferreira assumiu a liberdade de criar a sua própria narrativa a partir do material que lhe serviu de ponto de partida, este será filme de visão obrigatória, quando regressar a Lisboa depois do período de férias a viver nos primeiros dias de setembro.
É que pelo trailer aqui linkado pode-se constatar a belíssima estética de uma realidade histórica, cuja catarse ainda está por se concluir.

domingo, agosto 28, 2016

(V) A difícil entrada na vida

Havendo tanto paralelismo entre o que se descobre no mundo animal e o que sucede na sociedade humana, é eloquente o que se passa com um tipo de ganso, que costuma nidificar nos penedos mais inacessíveis da Groenlândia e cuja sobrevivência é quase uma roleta russa. De facto, dois dias após saírem do ovo, as barnacas - é esse o seu nome! - têm de fazer um arriscadíssimo voo até ao solo, cem metros abaixo, para acompanharem os progenitores.
Compreendem-se as dúvidas dessas crias, quando ouvem o chamamento da mãe e se intimidam com a prova a que se sujeitarão. No filme que acompanha este post, a probabilidade de insucesso é elevada: das cinco crias da gestação apenas três sobrevivem á prova. Mas, muito provavelmente, as crianças nascidas nos bairros insalubres de Dacca ou de Varanasi, não têm diante de si uma melhor probabilidade de sobrevivência! 

(L) «Como la sombra que se va» de Antonio Muñoz Molina

Antonio Muñoz Molina balizou o seu livro entre duas datas essenciais: 4 de abril de 1968 e a de 1 de janeiro de 1987.
A primeira dessas datas foi a do assassinato de Martin Luther King, cometido por James Earl Ray, que seria capturado dois meses depois em Londres, depois de ter passado por Lisboa durante uma semana.
A segunda data é a da vinda do então jovem escritor para a capital portuguesa, onde contava imbuir-se do ambiente necessário para credibilizar um romance em fase de projeto: «Inverno em Lisboa».
Estamos assim num livro que mistura memórias com a ficção, que tanto parece um policial como logo deixa crer na possibilidade de se tornar numa reflexão sobre o que é escrever um romance, a culpabilidade ou a germinação do amor.
Numa entrevista dada este fim-de-semana ao «Libération», Molina classifica o livro como o processo de uma educação sentimental e estética, vista através de duas histórias diferentes - a dele e a de James Earl Ray - no mesmo espaço geográfico. E conta-se como se tornar escritor, quando se é jovem, como se muda a própria vida e como essas mudanças se relacionam com a biografia pessoal. “Porque a escrita não é feita no vazio, faz parte da vida do escritor”.
Quatro anos depois tudo mudou na sua vida: a família de então (mulher e três filhos) e o emprego no município de Granada já ficaram para trás e a aposta está definitivamente radicada na literatura, com romances de sucesso já publicados ou a caminho de o virem a ser.
Pretendendo identificar e descrever a textura da realidade, Molina descreve o ofício do escritor como se escrevesse num estado de sonambulismo lúcido e criasse ambientes marcadamente influenciados pelos filmes norte-americanos. Ou seja, com jazz, álcool, haxixe, bandidos, detetives e espiões.
Mas a influência de Georges Simenon também não é de desprezar, mesmo no tipo de personagens que parecem sentir-se estranhos onde quer que estejam e dotados de um segredo, que com ninguém pretendem partilhar.
O livro, ainda por publicar em Portugal, tem em Lisboa uma das suas “personagens” principais e que Molina define como “uma cidade tranquila e ao mesmo tempo cosmopolita. Quando se está no Terreiro do Paço nas escadas onde estudantes descem para o rio, sentimo-nos numa metáfora perfeita da viagem. Vemo-nos no começo do resto do mundo”.

sábado, agosto 27, 2016

(L) «A Praga Escarlate» de Jack London

Jack London fez da escrita profissão, o que significa a necessidade de escrever rapidamente textos capazes de suscitarem interesse público e facilmente publicáveis em forma de livro ou de folhetins em jornais.
É relevante esta ressalva para considerar que esta novela de 1915, escrita um ano antes da morte precoce do escritor, então com 39 anos, mais não é do que uma curiosidade por imaginar uma distopia em meados do século XXI.
Desconhecemos até que ponto London foi aqui influenciado pelo que começava a provir da Europa como a notícia de um horrível morticínio, que se traduziria, dois anos depois, por cenários apocalíticos de trincheiras devastadas pela doença, pela lama e pelos ataques com produtos químicos.
Nesta história temos um velho e três netos a saberem-se escassos sobreviventes do cataclismo, que reduziu a população da Baía de São Francisco a apenas quarenta habitantes. Os miúdos já caíram num estado meio selvagem, mas ainda se interessam pelas memórias do ancião, que lhes faz o relato de como a civilização humana, tão próspera e desenvolvida, se vira destruída, quase de um momento para o outro, por uma estranha e muito contagiosa epidemia capaz de matar as suas vítimas em poucas horas.
Nunca se terá qualquer explicação para a imunidade dos que tinham escapado a tal vírus, mas, completamente descoroçoado com tudo quanto vê, o antigo professor universitário da área das Humanidades compreende que a evolução da espécie voltará a passar pelas fases da ignorância, da superstição e da violência até retomar, - daí a milhares de anos! -, o tipo de organização social existente na altura do seu colapso.
Não deixa de ser, porém, singular que um escritor assumidamente socialista, tido como um dos mais progressistas intelectuais do seu tempo, se revelasse aqui tão pessimista. É que olhar para o lado sombrio da evolução histórica não condiz com quem nela pretende vincar a probabilidade utópica.

(V) «Rafa» de João Salaviza

Os prémios de cinema europeu têm sido atribuídos a realizadores portugueses com bastante frequência. Mas depois de termos tido consagrações várias para Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou Fernando Lopes, a sucessão está mais do que assegurada, não só com Miguel Gomes e João Pedro Rodrigues - os mais bem sucedidos dos atuais nas longas-metragens - mas também com os valores, que têm sido descobertos através das curtas-metragens. Destes últimos é João Salaviza o mais prometedor, ou não tivesse sido já galardoado com o Urso de Ouro em Berlim e com a Palma de Ouro de Cannes para dois dos seus filmes nessa duração mais limitada. E a passagem para as longas, já cumprida com «Montanha» confirma essas justas expectativas.
Se «Arena» já tinha andado a abordar o tema da liberdade, a partir de um personagem condenado a prisão domiciliária num bairro de Chelas, «Rafa» é a demonstração do percurso iniciático para um miúdo de 13 anos que, no espaço de um só dia, cruza o rio (houve já quem cantasse que a ponte é uma passagem!) conhece a realidade da prisão, da violência, da fome e acaba com um bébé nos braços.
É certo que quem ficou presa foi a mãe, acusada de ter tido um acidente com o carro do namorado sem sequer ter carta, ou que a criança é o sobrinho, filho da sua irmã adolescente, que simboliza a realidade das mães solteiras, mas Rafa está em contacto com todo o pacote de problemas de um miúdo suburbano, demasiado cedo empurrado para as vertentes mais inquietantes da vida adulta.
Interessa sublinhar que muitos dos que integram a geração mais jovem dos que procuram a glória de fazer cinema em Portugal, estão-se nas tintas para os problemas existenciais da burguesia e optam por revelar esse lado mais dramático de quem faz de cada dia uma permanente luta pela sobrevivência.

sexta-feira, agosto 26, 2016

(L) «Coração Débil» de Fiódor Dostoievski

Superficial como felizmente sou, não me sinto particularmente atraído pelo tema dos abismos da alma humana, um dos temas de eleição do reconhecido escritor russo do século XIX. Nesse sentido prefiro-lhe bem mais o seu contemporâneo Tolstoi, que conseguia dar um testemunho muito vivo do que era a sociedade do seu tempo. Mas «Crime e Castigo» ou «Os Irmãos Karamazov» são projetos de releitura, que poderão fazer-me reequacionar esse preconceito antigo em relação ao seu autor. É que, independentemente, de não ter por resolver quaisquer questões metafísicas (sou ateu, ponto!), nem morais (sou republicano com o que isso significa de valores que definem esse modo de estar, ponto!)),  poderei vir a valorizar a obra de Dostoievski pela estrutura narrativa ou pela construção das frases. O que não é o caso do livro, que agora concluí como aperitivo para essas leituras mais ambiciosas.
Novela da primeira fase criativa do autor, que tinha, então, 27 anos, «Coração Débil» aborda a incapacidade de um ser fraco em controlar e dominar as angústias alimentadas cria dentro de si.
Vassíllii Chumkov começa por surgir-nos como o mais feliz dos homens. Apesar de aleijado, a inteligência promovera-o de servente de uma repartição pública a escriturário e o próprio Diretor, Iulián Mastakóvitch dava-lhe trabalhos complementares para fazer em casa, e com os quais conseguia arredondar o magro ordenado. Mas o que verdadeiramente o leva ao êxtase é a bela Lissenka, que aceitou desposá-lo.
É com essa alegria quase histérica, que Vássia surge ao seu amigo Arkádii Nefedevitch que, apesar de com ele partilhar o local de trabalho e o apartamento, de nada suspeitara.
Durante um dia a alegria contagiante do noivo é também a de Arkáddi, que já imagina os três a viverem numa casa maior numa ambiguidade, que Dostoievski nunca explora, mas que alimenta a malícia dos leitores menos ingénuos.
Que tipo de relação une os dois homens? Como veem tão inocentemente a transformação dessa relação dual num singular «ménage à trois»?
Seria para esse lado mais libertino, que tenderia a ver evoluir a estória, mas isso era esquecer que, entre a minha mente devassa e o puritanismo do escritor russo, vai uma diferença de 180º.
O que interessa a Dostoievski é a impossibilidade de Vássia considerar desculpável o facto de ter um atraso irrecuperável no trabalho, que Mastakóvitch lhe encomendara. E penaliza-se pelo tempo perdido nessas três semanas em que andara a cortejar Lissenka até ela se lhe render.
Apesar de Arkádii lhe argumentar com todas as razões para esse compromisso não assumir tanta relevância, ele perde aceleradamente a razão até se tornar inevitável o internamento no manicómio. E, no entanto, o próprio Mastákovitch comenta que o trabalho em causa nem tinha carácter de urgência…
Podemos, então, conjeturar sobre as razões da queda de Vassíllii no abismo da loucura: corresponderia Lissenka a uma opção antinatural da sua parte, tendo em conta a equívoca relação com Arkádii? Ou a felicidade era para o autor algo de tão assustador, que decidiu fazer a catarse de tal possibilidade através deste frágil coração?

quinta-feira, agosto 25, 2016

(L) Uma arrivista mal sucedida

À partida até poderíamos socorrer-nos da psicanálise para explicar o caso de Magda Goebbels que, agora, se confirmou ter por pai biológico um judeu assassinado em Buchenwald. Aparentemente ela constituiria exemplo lapidar do principio de detestarmos nos outros, aquilo que mais odiamos em nós mesmos. 
Explicar-se-ia, assim, o entusiasmo pelo nazismo ao ponto de, no momento do suicídio, coincidente com o de Hitler e Eva Braun na sala ao lado do bunker  de Berlim, tenha assassinado os seis filhos por não ser a Alemanha doravante merecedora de os ter como seus cidadãos.
Que mãe desnaturada é capaz de praticar tão hediondo crime?
A biografia de Magda deixa-nos atónitos com o que pode representar um caso extremo de arrivismo. É que em jovem, e ciente da sua origem judaica, ela andara perdida de amores por um dos principais teóricos do sionismo, só por acaso tendo escapado ao destino de se enfileirar numa comitiva destinada a um dos kibutz então em formação na colónia britânica da Palestina.
Apesar de não se lhe reconhecerem grandes atributos de beleza, ela conseguiu desposar um riquíssimo industrial alemão, muito mais velho do que ela,  e de cujo divórcio garantiria a condição de uma das mais ricas descomprometidas da cidade de Berlim na viragem para os anos trinta, objeto de desejo dos mais ambiciosos peralvilhos.
A relação e posterior casamento com o futuro ministro da Propaganda do III Reich tem um objetivo em vista: só os nazis estariam em condições de lhe salvaguardarem a riqueza herdada do ex-marido contra os comunistas, por quem tinha profundo ódio. Não admira que se tenha enchido de fervor patriótico e de prosápia ariana numa das primeiras manifestações em que pôde ouvir Hitler.
Durante doze anos, ou seja acompanhando toda a ascensão e queda do regime nazi, Magda esteve no topo do mundo, apresentada a todos os alemães como o paradigma da dona-de-casa ariana cujo exemplo deveria ser escrupulosamente seguido. Quem é que nos cada vez mais dilatados domínios do Reich ignorava a identidade dessa loura, que surgia amiúde ao lado do marido e do próprio führer?
Saberiam Goebbels e o próprio Hitler - seu provável amante - que ela era efetivamente judia? Teria ela conseguido apagar dentro de si as memórias do progenitor cuja morte não lhe parece ter suscitado qualquer reação e cujo destino teria podido, mas não querido alterar?
Se é verdade que o hábito faz o monge, levando-o a forçar-se a acreditar no que, à partida, não lhe faria qualquer sentido, podemo-nos interrogar no que terá sentido Magda ao suicidar-se no estertor do nazismo. Terá tido a noção que, quinze anos antes pusera todas as suas fichas na casa de um tabuleiro de jogo acreditando no superjackpot estando afinal a assinar a sua sentença de morte?
Nunca poderemos imaginar o que se passaria na sua mente. É que se Hitler conseguiu congregar tantos monstros à sua volta, Magda sempre deu a ideia de a quase todos suplantar em perversidade, em malvadez...

quarta-feira, agosto 24, 2016

(L) «Roderick Hudson» de Henry James

Henry James publicou o seu primeiro romance em 1874, quando estava a decidir-se pela mudança para a Europa.
Compreende-se, pois, a razão de ser de Roderick Hudson o protagonista dessa primeira obra mais ambiciosa. Ele é um jovem advogado, de quem se espera um futuro brilhante, mas decidido a abandonar a carreira, a mãe e a noiva para se radicar em Roma e tornar-se escultor.
Manifestamente autobiográfico, o romance também revisita o passado de James, que ensaiara o talento para as artes plásticas antes de se decidir pela escrita.
Roderick conhece rápido sucesso produzindo obras admiradas pelos seus novos amigos. Até conhecer Christine Light, uma bela jovem, por quem perdidamente se enamora, mas cujos pais destinavam a um príncipe italiano.
Apostados em fazerem-no sair da depressão, que lhe passara a inibir qualquer produção artística, os amigos convocam Mary Garland, a antiga noiva, para o vir consolar, mas o resultado é pífio: para Roderick a comparação entre ela e a bela Christine só agudiza o desgosto de saber esta última no leito de outro homem.
Igualmente chegada a Roma, a mãe convence-o a ir viajar para, porventura, noutras paragens, esquecer o seu desgosto. Mas, por coincidência, Christine e o esposo também estão na Suíça, quando ele ali chega.
Eis então que, enquanto leitores, nos vemos surpreendidos: em vez de pôr Roderick a desafiar o príncipe italiano para um duelo ou a exigir à rapariga, que fuja com ele, ei-lo a cair acidentalmente de um precipício pondo cobro à possibilidade de um desvario ultrarromântico.
Temos, assim, uma história com personagens muito lineares do ponto de vista psicológico, sendo pouco crível que, mesmo por frustração amorosa, alguém caia tão subitamente das mais elevadas e inspiradas alturas para o mais inexorável dos abismos. Trata-se, pois, de obra imatura, mas a anunciar algumas das características principais da obra futura do escritor.

(V) Quatro semanas em 1945

Há momentos da História, que me fascinam por quanto neles sucedeu, ao suscitarem consequências bastantes para mudarem a face do mundo tal qual então existia. O intervalo entre a morte de Roosevelt em 12 de abril de 1945 e a capitulação nazi em 8 de maio, é um desses períodos, porque a política norte-americana formatou-se para se revelar despudoradamente imperialista no pós-guerra.
À data da tomada de posse do medíocre Truman  - cuja insignificância era tal, que o antecessor nunca o levara consigo para as conferências com Churchill e com Estaline -, as tropas aliadas avançavam para Berlim, pondo fim ao sonho nazi de um mundo regido por uma raça superior e que redundara em cidades destruídas e milhões de vítimas nos dois lados do conflito.
No Pacífico o exército japonês, que semeara o terror e a morte por todo o continente asiático nos últimos oito anos também estava exausto, com a Marinha Imperial quase inteiramente afundada.
Se nas sucessivas batalhas do Pacífico os americanos contabilizavam novecentas mil baixas, as japonesas ascendiam a um milhão e cem mil. O ministro da Guerra, general Korechika Anemi não via forma de repatriar as centenas de milhares de soldados, que tinha na Manchúria, quanto mais para reforçar o dispositivo militar em Okinawa, cuja perda equivaleria à derrota definitiva por muito que, em público, e nas reuniões ministeriais nunca se eximisse de reivindicar uma vitória final graças ao espírito japonês de lutar até à morte sem aceitar qualquer forma de rendição.
Na primeira reunião com a sua Administração, Truman nada alterou à estratégia seguida por Roosevelt, embora se apressasse a designar James Byrnes como seu nº 2 na qualidade de Secretário de Estado. Muito ambicioso e também sentindo indisfarçável desprezo por Truman, Byrnes é um falcão, que já imagina um pós-guerra à medida dos interesses norte-americanos.
Truman também foi informado da existência de uma nova bomba, que poderia precipitar a definição dos acontecimentos na Ásia. Tratava-se do Projeto Manhattan, liderado pelo general Leslie Groves que já deparava com as resistências éticas do responsável científico Robert Oppenheimer (ambos na foto). Este adivinhava que a nova bomba alterararia definitivamente as regras das guerras futuras dando aos líderes políticos a capacidade de destruírem a Humanidade.
Groves nada queria saber desses escrúpulos e comprometeu-se com Truman em ter a bomba de urânio pronta para meados de julho. Razão porque a casa Branca fez chegar às autoridades de Tóquio a exigência da capitulação sem condições logo no dia subsequente à celebração europeia da vitória.
Na reunião ministerial desse dia o primeiro-ministro Suzuki já não alimentava ilusões quanto ao que viria a acontecer, mas os militares não abandonaram a sua prosápia guerreira e até equacionaram a necessidade de tomarem o poder num golpe de Estado.
Em apenas quatro semanas os primeiros sinais da Guerra Fria estavam a revelar-se em Londres e em Washington.