segunda-feira, julho 31, 2017

(AV) Piscinas e canyons

Em 1964, na primeira vez que esteve em Los Angeles, David Hockney ficou deslumbrado. Era abissal a diferença entre a luz brilhante ali descoberta e a cinzentude da britânica Bradford onde nascera e crescera. Ademais para ele, que se sentia homossexual mas tinha medo de o assumir por causa da severa proibição no seu país, constatava nas praias californianas a permissividade dos avanços aos corpos concupiscentes de garbosos surfistas ou nadadores-salvadores.
Ele não arriscou, de imediato, a mudança, mas após alguns regressos, acabou por fixar ali, em Santa Mónica, a sua casa. Com uma vantagem não desprezível: sentindo-se a muitas milhas de distância dos museus mais próximos sabia-se imune a influências excessivas, avançando para o seu próprio estilo.
Começou com as piscinas, que lhe lançavam um desafio entusiasmante: como filmar a água? Como pintar algo transparente? A resposta estava em realçar nela os reflexos da luz, as ondulações a agitarem a superfície. E, quando o tema parecia esgotado, o famoso «A Bigger Splash» dava conta da perturbação causada pelo movimento mais brusco de um corpo a rasgar o espelho líquido.
Em 1978, Hockney mudou de casa para os canyons dos arrabaldes da cidade dos anjos e o resultado viu-se no ciclo seguinte: ao deixar o atelier  em Santa Mónica, Hockney obrigava-se a percorrer diariamente nos dois sentidos a estrada entre casa e o local de trabalho. As curvas do trajeto reproduziram-se nas telas, com a perspetiva da urbe captada a partir do topo da Mullholland Drive a aparecer com idêntica regularidade. E, porque o fascinava o testemunho orográfico de grandes convulsões telúricas de épocas pré-históricas, arriscou-se a uma enorme pintura de 7 x 2 metros tendo como motivo o Grand Canyon.
Há, porém, quem veja na obra do artista uma ausência imperdoável: estão lá as moradias luxuosas de Bel Air ou de Beverly Hills, com uma arquitetura arrojada e as suas glamourosas piscinas, mas onde param os criados, os jardineiros e outros laboriosos oficiantes, que lhes garantem a aparência de perfeição? É esse o projeto do mexicano Ramiro Gomez, que utiliza os motivos de Hockney e os completa com tão imprescindíveis colaboradores. E, convenhamos, que os quadros ficam assim com um sentido bem mais interessante...

(S) «India Song» por Jeanne Moreau em jeito de homenagem

domingo, julho 30, 2017

(DL) Porque devemos ler os clássicos?

Num texto de 1981, que haveria de servir de título para um dos seus livros póstumos, Italo Calvino constatava dizer-se de um clássico, “que se anda a reler”, sendo raro encontrar quem confesse estar a conhecê-lo pela primeira vez. Esta ilação vem ao encontro de uma das minhas intenções mais caras ao chegar à condição sexagenária.: reler alguns romances, que muito gostei na adolescência e não voltei a revisitar desde então—«Moby Dick» ou «Dom Quixote» - mas investir igualmente tempo de qualidade  nalguns que franquearei pela primeira vez, dos quais os mais óbvios serão o «Ulisses» de Joyce e «Em Busca do Tempo Perdido» de Proust.
Confio que sentirei o prometido por Calvino, quando afiança que “ler pela primeira vez um grande livro em idade madura é um prazer extraordinário:  é diferente (…) do que se tem ao lê-lo na juventude. A juventude comunica à leitura (…) um sabor e uma importância muito especiais; enquanto na maturidade se apreciam (…) muitos mais pormenores, níveis e significados”.
Espero livrar-me de um dos pecados maiores da imaturidade enquanto leitor: o querer consumir tudo o mais depressa que se puder como se a quantidade não excluísse a possibilidade de apreciar devidamente o que se vai descobrindo folha a folha.
Quão pueril me parece agora o interesse, que cheguei a desenvolver por técnicas de leitura em diagonal, que possibilitasse uma abrangência maior das bibliotecas ao meu alcance: a própria e as municipais. Nessa altura sentia inveja dos islandeses que, pelo menos nos dois anos a fio ali passei o meu aniversário, se orgulhavam de serem leitores bulímicos.
Não é que enjeite os romances e ensaios, que se vão publicando pela primeira vez. O único problema é serem tantos e tão apetecíveis, que põem à prova os critérios de escolha. Mas privilegiarei cada vez mais os clássicos, ou eles não fossem, sempre na opinião de Calvino, o tipo de livros que nunca esgotam o que nos têm a contar: “Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados, e inéditos ao lê-los de facto.”  Tendem a facilitar-nos o conhecimento de nós mesmos e como aqui chegámos. E indo ao encontro do permanente desejo de aprender. A exemplo de Sócrates de quem Cioran contava a estória de ter começado a aprender uma nova ária para flauta enquanto os carrascos lhe preparavam a cicuta.
“Para que te servirá?», perguntaram-lhe os algozes.
“Para saber esta ária antes de morrer”, respondeu-lhes.
Ler sempre, aprender sempre, eis uma boa máxima para definir um frutuoso sentido da vida.

(S) «Where Have All the Flowers Gone?» de Pete Seeger

(DIM) Viajar no cinema francês com Bertrand Tavernier

O documentário de Tavernier promete ser uma das propostas cinematográficas mais interessantes deste verão, porque colide com a minha tendência valorativa de colocar no topo os títulos da nouvelle vague em relação aos que tiveram por autores Jacques Becker, Julien Duvivier ou Claude Sautet. Mas, como ressalta da abordagem de Tavernier havia mais solidariedade e generosidade naqueles filmes do que nos de Godard ou Truffaut, onde imperava quase sempre o individualismo, senão mesmo o narcisismo, mesmo que disfarçado por algum alter ego.

Nas peças jornalísticas que o «Ípsilon» desta semana dedica a este lançamento realça-se, igualmente, um dado importante, que ignorava: a razão porque Jean Gabin considerava Jean Renoir um génio enquanto realizador, mas uma meretriz enquanto pessoa. É que, depois de ter passado os anos 30 a revelar evidente proximidade com o Partido Comunista, o realizador de «Regra do Jogo» não enjeitaria revelar evidentes simpatias pelo governo colaboracionista de Pétain durante a Ocupação, conhecendo-se-lhe correspondência comprometedora com um dos principais ministros de então, conhecido por repelente antissemitismo.
O documentário de três horas dá-nos conhecimentos até agora indisponíveis, que permitem pôr em causa alguns conceitos cuja consistência não pressentíamos tão questionáveis.



(S) «Mandjolo» de Costa Neto

sábado, julho 29, 2017

(DIM) Uma guerra vitoriosa nunca deixa de ser posta em causa

Os direitos adquiridos nunca conseguem ter a garantia de se verem duradouramente respeitados. É o que se pode concluir da proibição de acesso ao exército norte-americano a quem se enquadra na classificação de «transgénero». A decisão de Trump soa a teste quanto á possibilidade de retomar as vencidas teses do casamento só fazer sentido para um homem e uma mulher, porque, independentemente, dos afetos, o sentido da vida limitar-se-ia à procriação da espécie.
Espera-se assim intensa reação porque, começando por uma ponta, Trump e seus apoiantes pretenderão pôr em causa tudo o resto no que diz respeito a direitos dos cidadãos, desde os da comunidade LGBT a todos os demais, incluindo o do aborto ou os que, em tempos, foram crismados de «cívicos».
Que a luta pelos direitos dos homossexuais foi dura e prolongada, atesta-o uma elucidativa série da ABC: «When we rise». Baseado nos testemunhos diretos de quatro ativos militantes da causa, evocam-se vários momentos de uma luta, que ganhou maior expressão a partir dos anos 60 em São Francisco, e se desenvolveu com muitas batalhas perdidas, mas umas quantas outras, bem mais determinantes, a significarem importantes avanços civilizacionais.
Gus van Sant realizou os primeiros episódios e nunca esteve afastado da concretização dos seguintes, caucionando-lhes o carácter didático, que é o seu valor mais relevante. Porque importa não esquecer as execráveis estratégias dos que tentaram tudo para privar do direito à felicidade aqueles que a entendem de forma distinta da imposta pelos cânones das igrejas e dos seus apoiantes conservadores. 

(S) «Yere Faga» de Oumou Sangaré

(DL) O determinante encontro de Le Clézio com o México

Em 2008 a Academia Sueca deu-me a alegria de ver consagrado um dos escritores, que mais aprecio: Jean-Marie Gustave Le Clézio. Os livros que dele li causaram-me tal impacto, que ainda não sei se me surpreenderam pela poesia, pela revisitação dos mitos e tradições de populações incólumes aos ritmos e vícios da sociedade ocidental, ou pela reafirmação dos valores de justiça, que deveriam ser os nossos enquanto humanos. Se calhar foi pelo somatório de todos esses fatores.
Para chegar a essa destreza literária, Le Clézio muito teve de porfiar para se distanciar do inócuo experimentalismo dos anos 60, mesmo que, com «Le Procés-verbal» tenha tido precoce reconhecimento com alguns dos principais prémios literários de então.
Foi decisiva a sua viagem para o México em 1967, quando se consumara a rotura com o exército, que o pusera na Tailândia durante a prestação do serviço militar obrigatório. Indignado com o turismo sexual praticado às claras, Le Clézio revoltou-se com tal vigor, que se viu expulso e internado numa instituição psiquiátrica. É dela, que zarpa para o Estado de Michoacan, na costa do Pacífico, onde descobre uma autenticidade, que lhe devolve a crença na utopia, porque vê homens e mulheres imbuídos de um natural espírito de entreajuda. Pertenciam à tribo dos purépechas, que tinham resistido eficientemente à aculturação imposta pelos colonizadores espanhóis e pelos que se lhes tinham sucedido.

O escritor aprende-lhes os segredos da língua possibilitando-lhe longas conversas com os anciãos e anciãs, que lhe dão a partilhar muitas das suas histórias e tradições.
Rendido àquele ambiente, que nada tem a ver com uma Europa a contas com os efeitos da revolta de Maio de 68, Le Clézio compra uma casa a 150 quilómetros da capital do Estado, pertíssimo de paisagens como nenhumas outras: ciprestes mergulhados nas águas de um lago, donde emerge igualmente um campanário de antiga igreja. Mais adiante, no percurso da lava de um vulcão, outra igreja quase soterrada pelas cinzas. Nesse retiro distante de tudo, Le Clézio pode imitar os vizinhos índios, contemplando as nuvens do céu e as estrelas ao cair da noite.
Quando lhe apetece maior convívio vai até Santa Fé de la Laguna, onde as pessoas estão organizadas num modelo social aparentado ao comunismo primitivo. Não admira que venha a caracterizar o México como o sítio onde tudo é possível...


sexta-feira, julho 28, 2017

(S) Bareto: "Quiero Amanecer"

(DIM) Exemplos práticos de capitalismo selvagem

Nos campos da Carolina do Sul impera a escravidão. Uma boa parte dos trabalhadores, que apanham fruta e legumes, são latino-americanos sem visto de residência, acumulados em atrelados e presos aos contratadores pelas dívidas acumuladas para ali chegarem.
Os ritmos diários são sobre-humanos e as noites demasiado curtas para recuperarem as dores do corpo. Às vezes incêndios matam-nos às dúzias nas barracas onde descansam e ninguém parece preocupar-se com  quantos ou quem eram. Para as famílias, deixadas lá longe, passam a ser ausências não explicadas, cuja saudade jamais poderá ser mitigada.
Para os donos das explorações a preocupação reside em produzir o máximo pelo custo mais barato possível, porque sofrem a pressão dos belmiros e dos pingosdoces locais, esmagando-lhes os preços até os lucros mínimos se converterem em insuportáveis prejuízos. Porque a globalização permite-lhes sempre arranjar mais barato, mesmo à custa de pegada ecológica insuportável para a frágil saúde do planeta.
Não deixa de ser inteligente a estratégia capitalista fundamentada na globalização: porque os consumidores ocidentais - eles próprios de cinto apertado por salários tendencialmente congelados - quererão sempre mais e mais barato e os seus operários e camponeses estão condenados a desaparecerem. Os velhos mecanismos coloniais reciclam-se em reluzentes efeitos neocoloniais com as grandes corporações monopolistas a substituírem-se à gula expansionista dos antigos Impérios.
È sobre tudo isso  que trata a terceira temporada de «American Crime». Como de costume, uma série televisiva para estômagos coriáceos, que suportem os muitos motivos de indignação suscitados por uma sociedade feita de atrozes injustiças. 

quinta-feira, julho 27, 2017

(S) Leyla McCalla: «Petite Valse Martiniquaise»




(I) Quando se morre pelas ideias que se defendem

Anne estava a viver algo de que tanto gostava: nadar nas águas mediterrânicas numa tarde de quase fim-de-semana. Daí a uns dias teria de começar a preparar as aulas para o novo ano letivo, mas o tempo era agora o de saboroso dolce farniente.
Sentiu, porém, que algo mudara no comportamento do espelho líquido, cuja agitação a perturbou. Que se estaria a passar? Olhou para a margem e os nadadores-salvadores cuidavam de mudar rapidamente a cor da bandeira para a vermelha. Urgia sair da água. Foi quando olhou para o lado e viu duas crianças em dificuldades. Tentou nadar para elas, mas a corrente impedia-a, empurrava-a na direção contrária.
Do lado da praia a agitação cresceu: as pessoas clamaram pelo que se estava a passar, os nadadores agarraram nas boias e nadaram em fortes braçadas para salvar os miúdos. Anne sentia-se cada vez mais cansada, desistia de os ajudar. Começou a faltar-lhe o fôlego, a cabeça tinha dificuldade crescente em se erguer acima da superfície…
Terá sido assim que Anne Dufourmantelle, uma das mais conhecidas filósofas francesas morreu no passado dia 21 na praia de Pampelonne, sacrificando a vida numa tentativa falhada de salvamento, praticando afinal o que tanto teorizou em sucessivos ensaios: a devoção aos outros em detrimento da própria vida. Por isso questionava o que levava alguém a nem sequer pensar em si no momento de salvar o outro. Ou a culpa que lhe assistiria se não tentasse esse movimento altruísta. Por isso sintetizava assim a situação-limite: “Tudo depende como o indivíduo se determina nela. Hoje vivemos numa ideologia securitária, que considero tóxica por conduzir a vida e o estar vivo à condição do sujeito e a sua sobrevivência individual ao contexto.” Anne punha em questão como 
se mantém possível a relação com esse outro ao ponto de se lhe oferecer a própria vida.
Neste tempo de afogamentos e de incêndios as palavras do seu romance «L’ Envers du feu» ecoam lugubremente por estes dias: “Estou alongada no chão. O rugido do incêndio invade a noite. Passa sobre a terra. Os animais fogem, alguns em chamas. É uma clareira vermelha. O coração vivo do braseiro  ameaça-me, afasta-se. Fico indemne.”
Na semana passada não foi isso que aconteceu. Anne Dufourmantelle tinha 53 anos e quem a conheceu considera ter tido o privilégio de contactar com um ser de exceção.

(S) «Habib Galbi» pelas A-Wa

(DL) Amos Oz rejeita o epíteto de pacifista

Uma tia de Amoz Oz costumava-lhe referir que não tinham sido os pacifistas a salvarem os judeus dos campos de concentração, mas os agressivos militares norte-americanos com os seus comportamentos de cowboys. O que o leva a negar para si mesmo essa condição com que é muitas vezes conotado, porque não entende a guerra como sendo o pior de todos os males possíveis, devendo ser evitada custe o que custar. Prefere-se qualificar como “peacenik”, ou seja, aquele que acredita ser a agressão o que de pior possa suceder, devendo ser travada pela força.
Justifica, assim, que tenha combatido em 1967 e em 1973, quando os vizinhos árabes procuraram destruir o Estado de Israel. Acaso tal cenário se repetisse ele disponibilizar-se-ia para voltar a ser mobilizado, mas enjeita totalmente fazê-lo em prol de lugares sagrados, colónias, recursos naturais ou mais território. Lutar pela vida e pela liberdade, eis o que unicamente lhe interessa.
Para o conflito entre israelitas e palestinianos é um defensor convicto de um compromisso com concessões traduzíveis na  existência de dois Estados a viverem pacificamente lado-a-lado. Por isso mesmo, quando a Palestina solicitou o seu reconhecimento às Nações Unidas, teria considerado sensato, que Israel tivesse sido o primeiro país a caucionar esse pedido em vez de o obstaculizar. Porque seriam dois Estados soberanos a discutir em pé de igualdade as fronteiras, os lugares sagrados ou os recursos naturais.
Ao contrário do que vê descrito nos meios de comunicação ocidentais, Amos Oz tem de Israel uma imagem bem diferente das que o dão como habitado por 80% de zelotes fanatizados, a exemplo do que se vê nos colonos da Cisjordânia, 19% de militares impiedosos, submetidos acriticamente ao belicismo do governo, e a 1% de intelectuais como ele, ciosos de uma alternativa bem mais racional pra o estado atual das coisas na região.  Pelo contrário, vê Israel como o somatório dos seus oito milhões de habitantes, todos eles primeiros-ministros, profetas e messias, cada um deles com a sua fórmula pessoal para a redenção. Autêntico seminário ao ar livre, Oz define Israel como uma vasta coleção de argumentos contraditórios.
É contra qualquer fanático, porque o vê como um ponto de exclamação ambulante com todas as respostas e sem qualquer interesse pelas perguntas. É o que sucede com os seus personagens de «A Caixa Negra», um romance só em aparência sintetizável na fórmula de história de um amor desfeito.
O humor continua a ser o melhor remédio contra o fanatismo. Nenhum prosélito tem o mínimo sentido de humor, assim como nenhum humorista a sério tenderá a converter-se num fanático. Ora a tradição judaica tende a privilegiar a comédia em detrimento do drama e essa é uma arma não despicienda, quando se trata de conjeturar o futuro do Médio Oriente. 

quarta-feira, julho 26, 2017

(S) Francis Blanche "l'age de raison"

(DL) No universo dos sonhadores involuntários

Os sonhos aceleram os passos de Daniel Benchemol, o protagonista do mais recente romance de José Eduardo Agualusa., quando dobrei o cabo das primeiras cem páginas.
Hochi, o antigo guerrilheiro da Unita, que fora morto por um raio e ressuscitado por outro, é sonhado por todos quantos o rodeiam. Que começam a olhá-lo como curiosidade, se põem depois a desconfiar do seu poder e até o julgam capaz de ensinar aos polícias uma nova e potente arma para exercerem a missão de controlar as consciências. Aparentado a um bruxo é abandonado à sua especificidade, que o chega a assombrar na hipótese de recorrência.
Moira, a artista moçambicana, que vive em Cape Town, cria fotografias e telas ajustadas aos sonhos dos que as apreciam e nelas reconhecem prévias divagações oníricas.  Sem ambicionarem quaisquer significados concretos.
Hélio, o neurocientista brasileiro, procura melhorar as capacidades da máquina de fotografar os sonhos em que trabalha, quiçá tornando-a capaz de torná-los filmáveis.
Perante a realidade angolana em que os sonhos justificam suspeições, e até prisões, a capacidade de os induzir nas mentes alheias poderá viabilizar a estratégia dos que ambicionam um país bem diferente. Como o próprio Daniel Benchemol. E esse acaba por ser o tema do mais óbvio romance metafórico de Agualusa sobre o seu país de origem.

(IO O regresso do prazer de saborear

Edgar Morin sempre teve uma relação muito prazerosa com a comida. Em miúdo deleitava-se com as espetadas à moda de Salónica - terra de origem dos progenitores greco-espanhóis - com abundante recurso a queijo feta. Mas seria mais tarde, entre 1943 e 1944, quando as responsabilidades na Resistência Francesa o levavam a procurar alimentos no mercado negro, que se deu conta de quanto ela lhe era importante, levando-o a apreciar o que até então detestara: a parte gordurosa do presunto ou as “andouillettes», uma espécie de salsicha feita com o invólucro do estomago da vaca.
Esta especialidade valeu à minha cara-metade a experiência de ter, em tempos, deglutido, ou pelo menos tentado, a pior coisa, que lhe passou pelas pupilas gustativas.
Morin descobrira que, perante a escassez, a disponibilidade para adotar outros comportamentos alimentares fez-se inevitável. Mas a experiência valeu-lhe uma lição para a vida: as refeições tornar-se-iam momentos de volúpia, descobrindo o prazer de experimentar sucessivos sabores, apostando sobretudo no que lhe tem dado prazer. Com sobriedade, porém: vencida a provação, passou a importar muito mais a satisfação obtida com a pequena quantidade do que se gosta, do que com os delírios dos buffets  feitos para glutões. Degustar é apreciar, evitando a tentação glutona de ingerir alimentos sem quase os demorar na boca. No fundo importa recuperar o nosso lado infantil da descoberta das novas sensações, mesmo naquelas, que se julgavam plenamente adquiridas.
Morin expõe, igualmente, uma teoria curiosa sobre a lamentável gastronomia inglesa, que tem por montra sinistra os filetes de peixe acompanhados de batatas fritas. A razão terá sido o êxodo rural para as cidades numa altura em que a Revolução Industrial necessitava de braços, que os campos já não conseguiam alimentar. Esse afastamento dos campos, da produção natural dos alimentos, explica muito bem porque é a cozinha mediterrânica a que marca sérios pontos no favor dos grandes chefes. Porque a indústria agroalimentar uniformiza sabores e priva-nos desse prazer da degustação, só possível com os produtos efetivamente biológicos, porque diferenciados no prazer que suscitam. Mas o sociólogo também não descura a importância do puritanismo nórdico ligado ao protestantismo, que condena todas as formas de deleite como pecado. Nas prolongadas estadias na Holanda temo-nos debatido com a impossibilidade prática de multiplicar as ementas familiares, tão estrita é a possibilidade de escolha nas prateleiras dos seus supermercados.
Ao contrário do que se pretendeu impor às consciências, não nos devemos contentar com a máxima de só comermos para vivermos. Na realidade a aposta está em vivermos por muitas razões e uma delas deverá ser a de termos satisfação com o que comemos. Como deveremos viver para colhermos todos os júbilos proporcionados pelos sentidos.

terça-feira, julho 25, 2017

(DIM) Antecipando uma das efemérides do ano que vem

No próximo ano passarão cinquenta anos sobre os assassinatos de Martin Luther King e de Robert Kennedy e será natural que a América os homenageie da forma como costuma fazê-lo nestas circunstâncias: com muita pompa e circunstância. O problema é ter na Casa Branca quem está no lado radicalmente oposto ao que ambos defendiam. Por isso, e se Donald Trump, ainda continuar a fazer de conta que é Presidente, constituirá motivo de particular interesse constatar a contradição entre a obrigação honorífica e a tentação de a esquecer.
Deixando de lado a personalidade do político da família Kennedy - que mereceria por si próprio uma abordagem específica quanto às suas virtudes e defeitos! - confesso nunca ter sido particularmente entusiasta da ação do reverendo King. Se a História lhe deu o benefício de ter causado uma revolução de efeitos bastante mais latos do que os enquadráveis no seu conhecido «sonho», a personalidade conciliadora terá exasperado, mais do que estimulado, os destinatários da sua luta. Por isso os Black Panther acabariam por surgir como resposta à luta por meios exclusivamente pacíficos como ele advogava. Mesmo que os efeitos das suas ações violentas tenham, aparentemente, dado razão a quem pregava as vantagens da resistência passiva. Pode-se, porém, questionar se os sucessivos retrocessos racistas da sociedade norte-americana, particularmente nos Estados do Sul, não têm origem nessa escusa da comunidade negra em exigir os direitos cívicos com outra contundência.
Reconheço que a não simpatia pelo assassinado tem muito a ver com o facto dele recorrer a Deus e aos textos bíblicos para justificar o alegado desejo de justiça. Seja na América dos anos 60, quer no mundo atual, deixemos aos deuses e seus crentes o que só a eles diz respeito, sobrando para os homens o essencial, ou seja, a transformação progressista da organização social.
O documentário «MLK: The Assassination Tapes», que Tom Jennings realizou em 2012, tem um conceito interessante: em vez de recorrer aos testemunhos de quantos os conheceram, utiliza exclusivamente as imagens da época, permitindo que, através das reportagens televisivas das semanas anteriores ao desenlace de 4 de abril de 1968  e dos dias subsequentes, se compreenda a responsabilidade das autoridades de Memphis na criação do clima propício ao crime. É que estava em curso uma greve dos trabalhadores do lixo da cidade e o mayor decidira responder-lhes com a força bruta. Entre os brancos racistas, que apoiavam o político em causa e a comunidade negra, a que pertencia a grande maioria dos grevistas, Luther King quis situar-se como a ponte possível, que nunca poderia ser. E fica a suspeição de se questionar como terá sido possível ao assassino posicionar-se no prédio em frente ao Lorraine Motel, com tantos guardas a supostamente garantirem a proteção do seu alvo?  E como terá conseguido dali fugir, só vindo a ser capturado em Inglaterra alguns meses depois?
O documentário de Jennings constituirá uma das peças fundamentais para recordar esses tempos difíceis para a generalidades dos norte-americanos da época da guerra do Vietname, quando se cuidar de a reequacionar um tipo de conflitos, que continuam na ordem do dia meio século depois.


segunda-feira, julho 24, 2017

(DL) A aparente tranquilidade de um espaço turbulento

Se há imagens que, amiúde, me vêm à cabeça são as que colhi na antiga Jugoslávia no final dos anos oitenta, quando nada me indiciava a guerra cruel ali ocorrida dois anos depois. Nas ruas de Dubrovnik ou de Split respirava-se a descontração estival de férias dos locais e dos muitos turistas por ali a cirandarem. Estes últimos afluíam de todas as latitudes, enquanto os primeiros não pareciam distinguir-se em características étnicas ou cultos religiosos.
Se, na época me questionassem sobre a região europeia mais previsivelmente ameaçada de guerra civil, aquela estaria longe de ser uma das escolhidas. Quem diria que não tardariam a sangrá-la raids aéreos, bombardeamentos, tiros certeiros de snipers ou assassínios em massa? Ficou-me de lição a certeza de não confundir a aparência de uma realidade com os fantasmas, que nas suas profundezas se agitam.
Muito menos adivinharia que, do norte desse país ainda enorme, viria o meu genro, hoje um orgulhoso esloveno capaz de me dar a sua própria versão de uma ilusão apenas possível enquanto Tito existiu.
«Rapariga em Guerra», romance este ano dado à estampa pela Editora Minotauro, aborda essa tragédia, que quase nos fez perder a esperança no Humanismo, tão grande o ódio alimentado entre vizinhos, e até entre familiares. A narrativa é feita por uma miúda de dez anos, que sente a mudança no dia em que é mandada ao quiosque do costume para comprar cigarros ao padrinho e o vendedor a questiona se queria dos sérvios ou dos croatas.
O homem sabia bem de mais o que ela pretendia, mas a desconhecida antipatia, agora revelada, servia-lhe de demonstração quanto a tudo à sua volta estar a mudar. , no entanto, até então, a vida em Zagreb tinha sido tão idílica, como eu testemunhara nas cidades adriáticas que visitara: além da escola ela passava os dias nas brincadeiras com a irmã Rahela e o seu melhor amigo, Luka.
De um dia para o outro instala-se o medo e a dor, sobretudo quando acompanha os pais e a irmã a uma consulta médica à Bósnia e, como resultado de uma emboscada, torna-se na única sobrevivente do núcleo familiar. Torna-se evidente que Sara Novic - a jovem autora agora com trinta anos - aproveitou a narrativa para construir um testemunho de luto, de amor filial, mas também de resiliência, porque, no meio de tantas contrariedades, importa sobreviver.
Ana Juric, a miúda de Zagreb, irá para os Estados Unidos, aí estudando e recriando-se. Mas a sensação de tudo poder mudar de um dia para o outro, volta a suceder dez anos depois, quando assiste ao ataque das Torres Gémeas. Reforçando a ideia de quanto o nosso aparente bem estar é tão periclitante, sendo posto em causa quando menos se espera.