quarta-feira, agosto 30, 2023

Um cenário para a conversão dos descrentes

 

Foi porventura uma das obras arquitetónicas, que deveríamos ter visitado e nunca o fizemos: a Basílica de Saint Denis. 

Edificada no século XII de acordo com os preceitos concebidos por um quase desconhecido Abade Suger, nela se implementaram algumas das inovações logo a seguir exuberantemente exploradas nas catedrais góticas do século e meio seguinte: os enormes vitrais, a rosácea, os arcobotantes.

Enfrentando a oposição do cisterciense Bernardo Claraval, que desconfiava da majestosidade faraónica do projeto, Suger fez da sua abadia uma luminosa construção, que muito facilitou a pretendida teatralização dos rituais divinos. Razão que teria merecido a visita a esse espaço numa da vezes que nos deslocámos à capital francesa. Hélas, que priorizámos outras opções, que revelaram-se mais olvidáveis... 

terça-feira, agosto 29, 2023

Um concerto ambíguo e um hino obsoleto

 

1. Qual foi o primeiro grande concerto madrileno em 1940, quando ainda se fuzilavam os vencidos da Guerra Civil?

Para grande desgosto meu, que até gosto da peça em causa, foi o Concerto de Aranjuez de Joaquín Rodrigo que, mesmo querendo separar a sua criatividade do aproveitamento político que o franquismo dele faria doravante, nunca conseguiu ir além dessa cómoda variante do “não me comprometam”. Pelo contrário nunca dele se viu qualquer atitude de distanciamento perante uma ditadura, que o utilizaria como caução cultural para substituir os escritores e artistas, que assassinara ou empurrara para o exílio.

Se podemos desculpar Wagner pelo aproveitamento que Hitler fez das suas óperas - o III Reich só surgiria meio século depois da sua morte! - Rodrigo conviveu sem problema com o regime, que dele se serviu sem escrúpulos.

2. Nunca tinha dado por isso, mas é curioso constatar que, apesar do ritmo declaradamente militarista, o hino espanhol não se faz acompanhar de qualquer letra. Poupam-se assim os disparates sobre o esplendor da pátria, o dever de marchar contra canhões e outras parvoíces em que o nosso hino é farto. E poupam-se, igualmente, as energias dos futebolistas da seleção, que melhor farão em demonstrar talentos com a bola do que nas suas canoras desafinações.

quinta-feira, agosto 24, 2023

E assim aprendi o significado de “pareidolia”

 

Foi uma fotografia tirada na superfície de Marte em maio de 2022 pelo veículo Curiosity a suscitar um absurdo entusiasmo nos ambientes internacionais ligados às teorias da conspiração: tratar-se-ia da passagem para um mundo extraterrestre? Uma porta semelhante às das entradas para as pirâmides egípcias?

O entusiasmo cresceu e as especulações foram tantas, que a NASA teve de publicar um desmentido: a imagem mais não expressava do que a tendência para conferir uma conotação humana a tudo quanto nada tem a ver com ela. Por exemplo associar a forma das nuvens a rostos, corpos, objetos, que a elas se assemelhem. O tal conceito de “pareidolia”.

A suposta porta na superfície de Marte mais não era do que a pequena fissura numa rocha com menos de 30 cm de altura. E assim se esboroou mais uma hipótese de se conhecerem aliens  no planeta vermelho. Mas fica a confirmação de sempre existirem alucinados prontos a afiançarem que a realidade é completamente diferente da que assim é reconhecida pela generalidade dos mortais. 

segunda-feira, agosto 21, 2023

Aki Kaurismäki, A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990

 

Em 1990 Kaurismäki concluiu o que alguns se apressaram a crismar de “trilogia proletária”, embora ele preferisse a mais ajustada “trilogia dos vencidos”. E nela apurando o estilo feito de intrigas concisas, representação lacónica dos seus atores, minimalismo dos enquadramentos e movimentos de câmara e sobriedade dos cenários.

Inspirado em «A Rapariga da Caixa de Fósforos» de Andersen, tem como protagonista Iris, uma desengraçada operária, que compra um colorido vestido para atrair parceiros nas boates, sendo facilmente confundida com uma prostituta por Aarne com quem passa uma noite no seu luxuoso apartamento. Por ele repudiada, mesmo quando lhe aparece com a notícia da decorrente gravidez, Iris compra veneno para ratos, mistura-o com água e serve-o não só ao efémero amante, mas também a outro potencial interessado nela com quem bebe um copo num bar e, sobretudo, à mãe e ao padrasto, que a insultavam e humilhavam.

Assim conclui-se uma fábula sem moral nem proveito, que ilustra o percurso de uma rapariga manietada nas hipóteses de vir a ser feliz...

domingo, agosto 20, 2023

Entretenimentos estivais

 

Em período estival o canal franco-alemão Arte tem optado por alguns filmes que, na época da estreia, foram bem sucedidos nos favores dos espectadores e nos prémios com que foram contemplados.

Pessoalmente não me costumam atrair mas, as circunstâncias não dão vontade de ocupar as meninges com coisas mais complexas, pelo que deixei-me tentar por duas propostas deste fim-de-semana.

A Túlipa Negra data de 1964 e foi realizado por Christian-Jaque a quem, por manifesta inveja, Alain Delon organizou uma produção, que o fizesse equiparar-se ao sucesso de Gérard Philipe com Fanfan la Tulipe em 1952.

Passado em vésperas da Revolução de 1789, e vagamente inspirado num romance de Alexandre Dumas pai, dava a Delon a oportunidade de interpretar os dois papéis principais, num deles como herói, noutro como cúpido vilão.

A mistura dos estereótipos dos filmes de capa e espada, associados ao humor e às vicissitudes românticas, premiaram o investimento de um ator, que conhecera melhores desempenhos com René Clément, Luchino Visconti ou Michelangelo Antonioni.

A Casa do Lago de Mark Rydell também não me suscitara qualquer interesse quando se estreou em 1981. Embora contasse com Henry e Jane Fonda, acolitados por Katharine Hepburn, não se livrava de obra de encomenda da antiga ativista entretanto distanciada dos fervores anti-imperialistas para reconciliar-se com o progenitor, que alinhara politicamente na trincheira oposta.

Agora voltei a não me entusiasmar com a história lamechas destinada a garantir Óscares aos protagonistas mais velhos antes que esticassem o pernil. Como, de facto, sucedeu. No entretanto fui lendo a Visão desta semana enquanto, por desfastio, ia olhando para aquilo que, no ecrã, soava a previsível desenlace. 

sexta-feira, agosto 18, 2023

Aki Kaurismäki, Ariel, 1988

 

As saudades que ficam do tempo em que descobríamos filmes alternativos nas quatro pequenas salas do Quarteto! Logo em 1975 Pedro Bandeira Freire deu-nos a conhecer um tipo de cinema, que víamos igualmente noutras salas - Apolo 70, Satélite, Universal. Estúdio do Império - mas facilitando-nos  o bom hábito de sair de uma sessão e logo entrar noutra ali ao lado para uma maratona de dois, três, quiçá quatro filmes de seguida.

Ariel, o segundo filme da impropriamente designada trilogia proletária de Aki Kaurismäki, estreou-se naturalmente numa das salas da Rua Martens Ferrão e alertou-nos para um realizador finlandês, que adotava um estilo minimalista em que os acontecimentos mais relevantes ficavam, amiúde, fora de campo. Exemplo dessa elipse é a de uma das cenas iniciais do filme em que o pai do protagonista suicida-se com um tiro na cabeça na casa de banho depois de lhe entregar o único património, que conseguira ao fim de uma vida de trabalho: um Cadillac.

Taisto, que ficara desempregado depois do fecho da mina de carvão da cidade, parte à procura de nova vida, saindo da Lapónia natal em direção ao sul do país, onde rapidamente se vê espoliado das magras economias com que aí contava instalar-se.

Quando reencontra um dos ladrões consegue agarrá-lo e tirar-lhe a faca com que ele tenta defender-se, mas a polícia surge nessa altura e leva-o a julgamento, de que sai condenado a dois anos de prisão. Por essa altura já o Cadillac ficara pelo caminho, mas nele viera impor-se uma antiga polícia de trânsito, Irmeli, de quem se tornara breve amante, e  que o ajuda a escapulir-se do presídio ao enviar-lhe uma serra escondida num bolo de aniversário. Embora perca o companheiro de cela, que o ajudara na fuga, Taisto, Irmeli e o filho desta encontram um happy end à conta do embarque para um porto distante ao som da versão finlandesa do Over the Rainbow.

Por tornar credível o que, à primeira vista, o não deveria ser, Ariel ficou como exemplo de um tipo de obra capaz de nos surpreender, provando que a realidade pode ir além do mais expetável...

O filme completo pode ser visto no site:  https://archive.org/details/1988KaurismakiAriel

terça-feira, agosto 15, 2023

Tradições que sobrevivem à passagem dos séculos

 

1. Um documentário de Philippe Roussilhe sobre as tradições pagãs na Europa - A Máscara e as Aldeias (2019) - confirma a transversalidade dos rituais primaveris, relacionados com a fertilidade e a proteção perante os espíritos malignos, por toda a Europa. Portugal surge representado com os caretos de Lazarim e é apenas um exemplo de como a consolidação do catolicismo não conseguiu tornar obsoletas as práticas, que vinham de tempos imemoriais e implicavam a participação ativa de toda a comunidade, por um dia liberta dos constrangimentos preconceituosos judaico-cristãos. Porque, atrás das máscaras, esconde-se a identidade dos que, momentaneamente, usufruem de insólitas e efémeras liberdades.

2. Tradições que perduram também as que acompanhavam as caravanas de comerciantes, quando Marco Polo delas deu fé na movimentada Rota da Seda, e ainda sobrevivem como constatou o repórter francês Alfred de Montesquiou: entre Tachkent e o vale de Fergana cruzou-se com titereiros a interpretarem récitas nos seus teatros de marionetas, funâmbulos a equilibrarem-se sobre as praças das aldeias, malabaristas e outros artistas circenses, que são os herdeiros duma cultura secular, que resistiu - e até foi estimulada! - durante os anos soviéticos.

O Uzbequistão é, de entre os países por onde essa rota atravessava, um dos mais interessantes! 

domingo, agosto 13, 2023

Um centenário, que me passa quase ao lado

 

Foi pelo vómito de Luis Pacheco contra Cesariny, que dei pela existência deste, quando a adolescência me poderia predispor para a irreverência libertária do artista de quem agora se comemora o centenário do nascimento.

A Revolução de Abril, quase a seguir, suscitou-me profunda antipatia por ele: não o soube a colaborar com os jornais mais anticomunistas desse período - O Dia ou O Diabo? Foi fácil assumir na altura a atitude arrogante da juventude de nem conhecer, nem gostar do que assinava, quer como poeta, quer como artista plástico. Na época estava decididamente ao lado dos neorrealistas atirando os surrealistas para o outro lado da barricada político-ideológica.

As décadas subsequentes suavizaram-me as firmes convicções e, embora nunca tenha simpatizado com o papa Breton, passei a olhar com interesse as vanguardas que tinham dado à Revolução Bolchevique as mais interessantes propostas estéticas. Delas tinham emergido as outras, as do século XX, mormente esse surrealismo, que era outro programa ideológico de transformar o mundo.

Foi por ela inspirado que Cesariny criou as sismografias, que reproduziam na folha de papel sobre os joelhos os rabiscos do lápis impulsionado pelos solavancos do elétrico. Ou as soprografias criadas pelas manchas de tinta insuflada na tela, os escorrimentos lavados com água, ou ainda o uso dado às borras do café, à areia, à terra e outros materiais, que ia associando a colagens e outros métodos, até então nada canónicos, para representar o que trazia na mente.

Por essas obras e pelos poemas, que lhe descubro no Manual de Prestidigitação (1956) e Pena Capital (1957), assumo alguma atenção futura para quanto está a ser agora celebrado na exposição Mário Cesariny: Em todas as ruas te encontro inaugurada em Famalicão. Mas, por razões várias, sei que não me deslocarei a vê-la, passando-me assim quase ao lado.

terça-feira, agosto 08, 2023

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), Alejandro González Iñárritu, 2014

 

Poderá ser o facto de descobrir este filme - cuja descoberta sempre adiei! -, num estado de alma muito particular, que me faz sentir fúteis os motivos dos seus principais personagens. Ou a ambição “estética” do realizador, embora nenhum dos filmes rodados por Alejandro González Iñárritu me tenha merecido apreciação positiva. A verdade é que, a exemplo do vencedor do mais recente Óscar para o Melhor Filme, este Birdman passou-me completamente ao lado.

Michael Keaton é o intérprete de afamado super-herói que, falido, procura reciclar-se nos palcos da Broadway adaptando um texto de Raymond Carver. Mas tudo à volta está a desmoronar-se: a amante diz-se grávida, a filha recupera de uma desintoxicação e, sobretudo, o ator contratado para contracenar com ele em palco, parece disposto a sabotar-lhe a encenação a cada passo.

Para conseguir uma caução criativa Iñárritu decide embalar a intriga num falso plano-sequência que põe a câmara a acompanhar os atores, deixando-se levar para onde eles vão deambulando na intenção de os associar a uma vertigem, que os desnorteia.

Como saldo fica um filme simplista sobre o glosado tema da vida privada dos atores demasiado colados aos papéis estereotipados de que não se conseguirão livrar daí por diante. 

domingo, agosto 06, 2023

Nocturno para Uma Floresta, Catarina Vasconcelos

 

Há dois anos gostei bastante de “A Metamorfose dos Pássaros”, que Catarina Vasconcelos rodara no ano anterior. A evocação dos pais, que tinham procurado maneiras de comunicarem e melhor vencerem os constrangimentos da profissão marítima do pai, encontrava eco no que eu e a Elza vivemos durante duas dúzias de anos.

Razão para ver desperta a curiosidade pelo novo filme da realizadora, desta feita uma curta-metragem de 16 minutos rodada na mata do Buçaco e tendo por tema central a pintura de Josefa de Óbidos, perdida quando um incêndio destruiu uma zona do convento em 2014.

Contando com a voz impressiva de Paula Guedes para, em off, interpretar a própria pintora, questiona-se a proibição das mulheres entrarem naquele espaço, quando aí mandavam os monges carmelitas dedicados à meditação.

As luzes que Catarina Vasconcelos capta na floresta são as almas dessas mulheres que, proibidas de acederem ao convento, ali teriam estabelecido cumplicidade com as plantas.

terça-feira, agosto 01, 2023

Irrepetíveis gestos partilhados

 

1. Que mistérios escondem os espaços por trás das portas de um qualquer quarto de hotel onde nos alojemos? É esse o tema de Montevideu, o romance de Enrique Vila-Matas iniciado ainda antes da pandemia e só concluído quando ele recuperava da transplantação do rim a que se sujeitou.

Igualmente exercício de escrita - é ele quem assume a literatura como facto maravilhoso de a linguagem não ser algo que reproduz a realidade, antes qualquer coisa que a constrói e desconstrói, que a faz e desfaz com uma inevitável subjetividade (Visão, 13/7/2023) - este é um dos romances por que sinto maior curiosidade de entre os recém-publicados entre nós.

2. Bucara é uma das muitas cidades que nunca visitarei com a Elza. E, no entanto, acaso não tivéssemos o futuro cerceado pela sua doença, quanto teria exultado excursionar pelas principais escalas da Rota da Seda. Porque se a mais mediática, e também uzbeque, Samarcanda funcionaria como objetivo prioritário desse incumprido desejo, esta menos conhecida paragem das caravanas do passado também mereceria uma visita.

Ao ver um documentário sobre o passado e, sobretudo, o presente da que foi a região natal do sábio Avicena, posso imaginar o prazer que daria a descoberta dos trabalhos artesanais dos miniaturistas apostados em perpetuarem a tradição sufi dos persas, das bordadeiras dos sofisticados tecidos usados nos grandes acontecimentos da vida dos seus clientes, ou dos ferreiros ocupados na criação de punhais com lâminas resistentes a todas as vicissitudes a que pudessem ser submetidos. Uma vida é tão curta para o quanto nela poderíamos experienciar.

3. A Elza já não pôde concluir a leitura do último romance, que me começou a ler em voz alta: O Reino do Dragão de Ouro da Isabel Allende. Escolhêramo-lo por ter intriga fácil sem elucubrações psicológicas, que as limitações da doença tornassem incompreensíveis.

Ficámos a meia centena de páginas do fim que, agora sozinho, concluí com a sensação de cumprir uma tarefa partilhada encetada há umas semanas. E com a embargada comoção de saber irrepetíveis os gestos, que nos foram tão comuns durante quase meio século de vida a dois. Porque a evolução da doença assim o dita!