sábado, janeiro 31, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: E quem disse que a ascensão social é possível? (2)

Será necessário apagar o passado para tornar mais bem sucedido o êxito de quem apanhou o elevador social? É isso que pensa Gatsby, o protagonista do romance de Scott Fitzgerald, que conta uma história falsa a propósito do seu passado, escondendo tudo quanto nele vivera. Até mesmo a família dá como falsamente desaparecida.
Para Chantal Jacquet, a autora de «Les Transclasses ou la non-reproduction», o conceito de ascensão social é incorreto, preferindo falar em «transclasses: num escadote podem-se subir degraus, mas o pé que sobe deixa para trás o que fica num nível inferior.
Mas o snobismo  não é uma reação apenas relacionada com essa «ascensão»: por exemplo, quando Jean Paul Sartre militou no Partido Comunista francês sempre foi visto com desconfiança por provir de uma classe tida como inimiga por aqueles a quem considerava camaradas.
A ambição só constitui a parte visível do iceberg, sendo mais consequência do que causa: é preciso conhecer-se algo para que a ele se queira aceder. É nesse contexto que funcionam os encontros, os modelos (na família, na escola, etc.) que se possam querer imitar.
Para tal o modelo de vida oferecido pelo ambiente que nos rodeia deve parecer indesejável, seja porque os progenitores parecem sofrer com essa condição social e desejam outro futuro para os filhos (o caso da escritora Annie Ernaux, que confessa escrever para “vingar os seus”), seja porque a criança é rejeitada pelo meio onde nasceu, por exemplo devido à sua homossexualidade (como ocorreu com Édouard Louis, o autor de «Pour en finir avec Eddy Bellegueule»).
Esclarece Chantal Jacquet: “a ascensão social não é uma aventura individual. Nunca se parte para ela sozinho: ou se é expulso donde se vem ou é-se empurrado por esse ambiente. Não existem self made men.  Chega-se a essa condição com a ajuda de outros. Com ou contra eles, mas sempre em ligação com esse contexto”.
Outro bom exemplo literário desta problemática é «O Vermelho e o Negro» de Stendhal no qual se tem em Julien Sorel a demonstração da ambição como motor ou freio dessa aspiração a chegar mais alto. Mimetizando na perfeição os comportamentos daqueles com quem se quer identificar, Julien virá a ser desmascarado pelo amor.
Para Chantal Jacquet nós somos todos o produto de determinações sociais e afetivas - mormente as familiares, que criam uma vontade de agir e alimentar encontros com os quais nos tornamos em quem somos: “os que mudam de classe, e a quem chamo ‘transclasses’, obedecem a uma combinação de causas: à partida as condições económicas e políticas ligadas por exemplo ao sistema educativo ou às Bolsas. Podem ocorrer igualmente encontros decisivos e um jogo complexo de afetos. Atenção  que o conceito de afeto não tem a ver com uma determinação psicológica, porque é Spinoza quem o define como o conjunto das alterações físicas e mentais capazes de terem impacto nas nossas capacidades para agirmos. São os sentimentos e emoções que resultam dos nossos encontros com o mundo exterior e que produzirão efeito”.
Como dizia esse mesmo Spinoza: “não somos livres de ser quem somos, mas antes de não sermos aquilo que não queremos ser”. 

sexta-feira, janeiro 30, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Na Finlândia também ocorrem infâmias judiciárias

Quando olhamos para tudo quanto tem ocorrido no caso de (in)justiça, que envolve José Sócrates, julgamo-lo uma especificidade portuguesa. Pensamos que só aqui é possível que magistrados se conluiam para forjar matéria de acusação, onde ela não exista, e contem para tal com a cumplicidade de uma “imprensa” disponível para proceder a julgamentos antes de eles, efetivamente, ocorrerem na barra do tribunal.
Ao ver o filme «Crime na Finlândia», realizado por Pekka Lehto, somos forçados a reconhecer uma “cultura” semelhante nos procuradores de outros países, feita de contornarem a incapacidade em demonstrarem os seus preconceitos através da criação de um clima social propício a uma condenação sem provas verdadeiramente fundamentadas.
O caso de Anneli Auer passou-se em Ulvila, uma pequena cidade no oeste da Finlândia, em 1 de dezembro de 2006, quando ela telefonou para a polícia local a pedir socorro.
Quando os agentes chegaram ao local descobriram o corpo sem vida de Jukka, o marido de Anneli. Quer ela, quer a filha Amanda, de 9 anos, afirmaram que um desconhecido entrara em casa e agredira Jukka.
Porque suspeita da culpabilidade da viúva, a polícia não mostra o menor escrúpulo em utilizar um dos seus agentes para a seduzir e tornar-se seu amante.
Em 2009 inicia-se o julgamento de Anneli, que é condenada a prisão perpétua, sob o argumento de ter forjado uma gravação com a voz de Jukka ainda vivo a pedir socorro e que terá utilizado no telefonema para a polícia local.
Em segunda instância o advogado de Anneli comprova a falta de consistência das provas incriminatórias utilizadas no julgamento anterior e consegue um veredito de inocente.
Quem diria que o procurador encarregado do caso ficaria satisfeito? Vendo o caso como uma desfeita pessoal, inicia um novo processo em que consegue utilizar os filhos mais novos de Anneli a “confessarem” terem sido agredidos em práticas satânicas e molestados sexualmente pelos pais, testemunhos imediatamente publicados em grandes parangonas pelas versões locais do «correio da manhã».
De entre os argumentos então utilizados estava a máxima «as crianças não mentem», que esteve muito em voga durante o processo Casa Pia e conduziu à condenação, provavelmente injusta, de Carlos Cruz. Ou, em alternativa, o do rosto impassível de Anneli, mesmo nos momentos mais dramáticos, o que faz lembrar em quem quis ver na falta de lágrimas na mãe de Maddy McCann a confirmação da sua culpabilidade.
Ora os miúdos não só incriminam a mãe como a própria irmã, que ainda nem chegara à puberdade na altura dos acontecimentos.
Quem e porquê os terá assim industriado? As suspeitas vão para o próprio irmão de Anneli, que ficara com a tutela dos três miúdos, sendo remunerado pelo Estado finlandês por tal “serviço” e graças ao qual - e muito provavelmente ao que lhe pagaram os tais pasquins sensacionalistas - passou a conhecer um desafogo financeiro até então desconhecido.
Novamente presa a condenada - desta feita por crueldade para com os filhos e animais e práticas satânicas (que ninguém conseguiu comprovar) - Anneli é a protagonista de uma infâmia judiciária, que só pode indignar quem assiste a este documentário, que procura dar o ponto de vista dos que a acusam e dos que a defendem. 

DIÁRIO DE LEITURAS: E quem disse que a ascensão social é possível? (1)

Em «Les Transclasses ou la non-reproduction» Chantal Jacquet explora os trajetos dos que, distanciando-se do meio social onde nasceram, parecem desmentir as leis da sociologia.
Para esta filósofa espinosista os que escapam à sua própria classe mostram tanta determinação quanto aqueles que nela ficam circunscritos.
Pierre Bourdieu desmentira em «Les Héritiers» o mito segundo o qual a escola, a educação, seriam ferramentas fundamentais para a criação de uma maior igualdade social. A relação de forças entre as classes sociais não é alterada por essa estratégia republicana, porque quase sempre o filho do burguês, burguês será, e o filho do operário em operário se tornará.
Não deixa de ser paradoxal que o próprio Bourdieu constitua uma exceção a tal constatação sociológica: nascera numa família de camponeses do Béarn, ele próprio trabalhara nos campos e, depois,  como carteiro, antes de se licenciar e iniciar o seu percurso académico.
O que ganha particular interesse nas teses de Chantal Jacquet é concentrarem-se nessas exceções à regra geral enunciada por Bourdieu. Porque não poderia aceitar explicações mistificatórias como as de uma «predestinação» ou um «golpe de sorte», decidiu analisá-las tão profundamente quanto possível.
“O meu trabalho consiste em demonstrar que não existe livre arbítrio: o destino de cada um de nós nada tem a ver com uma decisão, que se terá tomado com base na vontade. Isso é uma mera ilusão, porque não se age sem intervenção de causas nem razões, sejam elas, ou não,  conscientes. Mas não é por existir determinismo, que se tem de reconhecer uma ‘fatalidade’. Por isso procurei compreender as causas, que permitem a alguns conhecer uma mudança social, sem que se tenha verificado uma revolução.”
Nietzsche explicara que uma árvore chega tanto mais alto, quanto mais fundas forem as suas raízes. A própria Chantal Jacquet lembra que mesmo escapando-se aparentemente ao seu meio social de origem, lá bem no fundo isso não se verifica de forma tão definitiva.
Veja-se o exemplo de um filme francês com o magistral ator, que foi Michel Simon: em «La Vie d’un Honnête Homme», realizado em 1953 por Sacha Guitry, ele desempenha o papel de dois gémeos.
Albert Lacoste caracteriza-se pela presunção e arrogância de quem se fez a si mesmo para chegar ao estatuto de rico industrial. Pelo contrário Alain é um boémio, que nunca pretendeu ir além do que sempre fora.
Surpreendentemente, quando Alain morre, Albert toma-lhe o lugar por ser na sua classe de origem, que se sente mais genuíno e realizado. De um momento para o outro esboroa-se o mito do self made man, porque Albert anseia por se dissociar do tipo de valores, que implicara a ascensão social por que tanto lutara. Mas que não o fizera feliz!
No estudo das transclasses Chantal Jacquet lança a hipótese de ser a própria sociedade a necessitar de criar algumas exceções para alimentar a possibilidade de acontecer um sucesso, que está vedado à grande maioria dos seus cidadãos. 

terça-feira, janeiro 27, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «O mistério da chama fantasma» de Tsui Hark (2011)

Em 690, Wu Zetian prepara-se para ser a primeira imperatriz chinesa, depois de ter sido uma regente brutal durante sete anos.
Para abrilhantar a cerimónia ela faz construir uma gigantesca estátua de Buda na proximidade do palácio imperial. Mas dois dos seus principais colaboradores, envolvidos no estaleiro da construção, morrem subitamente com poucas horas de intervalo e de uma forma inexplicável: como se se incendiassem a partir de dentro dos próprios corpos, ficando carbonizados em poucos minutos.
A soberana encarrega o juiz Dee de levar a cabo a investigação, apesar de o ter anteriormente encarcerado por insubordinação.
Apoiado em dois guerreiros corajosos (a bela Jinger e o juiz Pei), mas que também servem de informadores da futura imperatriz, ele vai à procura de respostas para essas mortes, escapando a sucessivas armadilhas. Gerindo em pinças a delicada relação, que mantém com aquela que o incumbiu de tal missão.
Estes personagens nasceram na Europa a partir da imaginação do escritor holandês Robert Van Gulik, que popularizou as aventuras do juiz Ti, um magistrado tão integro, quanto sagaz, que terá exercido realmente os seus dotes na época dourada da dinastia Tang.
Estamos numa sociedade onde todos se vigiam, ora comportando-se como traidores, ora como salvadores. É um mundo dúplice, de manipulação permanente tal qual é muito bem simbolizada no ataque dentro de uma gruta labiríntica onde os atacantes são bonecos comandados por fios como marionetes. Nota-se bem a imagem de marca dos filmes de Tsui Hark, sempre com inspiração nos mecanismos dos filmes de aventuras da época clássica do cinema, quanto comportavam um estilo próximo do folhetim. A intriga, nas suas muitas voltas e reviravoltas, é o que mais parece entusiasmá-lo. É a ação, ação, ação. Com o mais ínfimo acessório - por exemplo uma placa de cobre - a transformar-se num projétil poético. Como sucede na cena em que um casal prepara-se para o amor e é interrompido por uma catadupa de flechas - as do ciúme - que ora os separa, ora os volta a juntar.
O detetive Dee é um combatente excecional, mas também uma espécie de Sherlock Holmes, quando procura indícios e usa a dedução científica em detrimento das superstições e do sobrenatural, que o rodeiam.
O filme resulta numa estranha alquimia ao misturar factos históricos com a magia mais extravagante.
A variedade de símbolos e de subterfúgios é tal que convida o espectador a detetar um sentido oculto em tudo quanto vê. Não estará implícita uma crítica a Mao Zedong no exagerado culto da personalidade da imperatriz? E a enorme torre, que constitui uma arma de destruição maciça, não lembra as torres gémeas do World Trade Center, quando cai estrondosamente?
Pode ser vontade de ver metáforas onde elas nem sequer estavam pensadas como tal, mas todas elas são bem vindas a este fabuloso universo. 

segunda-feira, janeiro 26, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Uma Abelha na Chuva» de Carlos Oliveira

Neste romance, publicado em 1953, enfrentam-se dois grupos sociais assaz representativos da sociedade portuguesa de então: de um lado a burguesia rural e, do outro, os artesãos e os camponeses.
A óbvia crítica social serve, porém, de pano de fundo à trágica história dos personagens: Maria dos Prazeres forçara-se a casar por interesse com um rico latifundiário, Álvaro Silvestre, de quem não tivera qualquer filho. A vida quotidiana esgota-se nos sonhos inconfessáveis e numa forma de violência recalcada.
Maria esforça-se por esconder o desprezo, que lhe merece o marido. Que, pelo seu lado, a teme, muito embora lhe sirva de refúgio para enfrentar o terror que a morte e a má consciência lhe causam.
Dois casais costumam visitar o casal Silvestre: o padre Abel e a «irmã» (mais provavelmente a amante) e o doutor Neto com a sua noiva de sempre.
Há também que contar com Jacinto, o cocheiro dos Silvestre, ansioso por iniciar uma vida a dois com Clara, a filha do oleiro, o qual anseia, porém, encontrar marido mais conveniente para ela.
Todos os personagens são exemplares: cada um deles representa, ora a sociedade dominante, ora a dominada. Mas os dois grupos coexistem na mesma realidade social, muito embora o drama subsequente nada tenha a ver com o confronto do oprimido com o opressor.
Surge uma outra personagem importante: a chuva, que se manifesta constantemente na vida de todos eles, suscitando-lhes interações de que não chegam a ter consciência. Ela incomoda, irrita, destrói e, em crescente violência, conduzi-los-á ao crime ou à morte.
A chuva é o espelho onde se reflete uma outra realidade, enquanto as velas, acesas nas chaminés para combater a humidade, desenham sombras nos rostos, como as que lhes turvam as almas.
É nessa presença do fogo e da água, que se revelam e destroem os personagens, numa simbologia plena de significado. Se aquece e ilumina, o fogo também queima. É assim, que o cabelo louro do cocheiro, tornado mais brilhante pela chuva, suscitará um desejo contido em Maria dos Prazeres. E será esse sentimento a estar no fulcro do drama por provocar o ciúme do marido e o pressionar para a vingança.
Se Clara será vítima inocente dessa explosão de violência, não se poderá dizer o mesmo de Jacinto, que forçara a situação ao exibir excessivamente a capacidade de sedução junto de Maria dos Prazeres.
Álvaro também não pode ser reduzido a um mero estereotipo: ele é o homem destruído pelo medo, pelo ódio a si mesmo, pelo álcool e pela condição de mal amado.
O estilo sóbrio e preciso, a intriga progressivamente tensa até ao clímax, ritmada pelas metáforas suscitadas pela água e pelo fogo, a sonoridade das palavras, que acompanham os movimentos e as emoções das personagens: há aqui o anúncio da prosa poética, que se encontrará em «Finis Terra», o seu último romance datado de 1981.

domingo, janeiro 25, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Salvar arte em cenário de guerra

Em 1944, quando a Segunda Guerra Mundial estava a aproximar-se do final, o general Eisenhower criou um pelotão especial incumbido de salvar e recuperar as obras de arte espoliadas pelos nazis para que fossem devolvidas aos legítimos proprietários.
Nasceu, assim, a «Monuments Men», uma equipa composta por historiadores de arte, arquitetos e conservadores de museus, que se sujeitaram a um treino básico antes de serem enviados para as zonas de conflito mais atiçadas.
Iniciando a missão por França e passando depois pela Bélgica e pela Alemanha, Frank Stokes e os companheiros lançam-se na maior caça ao tesouro do século XX. Que se transforma numa espécie de contrarrelógio, quando recebem a informação de uma ordem direta do bunker de Hitler para que todas essas grandes obras-primas sejam destruídas.
Aquele que é, porventura, o mais fraco dos filmes assinados por George Clooney, mantém as suas características típicas: sedutor, original e, também, superficial. Existe nele uma vontade de criar projetos como se estivéssemos algumas décadas para trás e os estúdios de Hollywood funcionassem em pleno para distribuir histórias de entretenimento com rostos muito conhecidos e histórias  movimentadas. 

sábado, janeiro 24, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A verdadeira história de Moby Dick

De Nantucket até às Vesterålen, dos Açores à ilha Mocha no Pacífico Sul, o documentário «A Verdadeira História de Moby Dick» de Jürgen Stumpfhaus parte à procura de Mocha Dick, que suscitou tanto medo nos baleeiros. Foi na época em que quase foram chacinados até à extinção para que a sua gordura fizesse funcionar as máquinas e a iluminação pública da era industrial.
Herman Melville, que conheceu bem as comunidades dedicadas à caça das baleias, escreveu um clássico baseado em histórias por ele ouvidas a propósito dos afundamentos de alguns navios, incluindo veleiros de três mastros, atacados por cachalotes.
Porque se comportavam assim? A resposta a essa questão pode ser encontrada nos arquivos sobre os navios atacados e na investigação do professor Whitehead, biólogo marinho. Reconstituem-se assim esses ataques com as câmaras a mergulharem no mundo desconhecido desses gigantes tímidos, que se tornaram em autênticos mitos.
Uma experiência levada a cabo junto desses animais com mais de cem toneladas de peso permite testar-lhes a força.
Hoje, sem a atividade das organizações ecológicas, que combatem os baleeiros japoneses, os cachalotes continuariam a ser ameaçados. Felizmente que prevalece a consciência de tudo fazer para os preservar... 

sexta-feira, janeiro 23, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Um filme sobre o genocídio de há cem anos

Em 24 de abril de 1915 os três paxás, que detinham o poder em Istambul depois da queda do Império Otomano, decidem esmagar as minorias no seu território e dão a ordem para iniciar o massacre dos arménios. Os homens tinham sido mobilizados para o exército e, depois de desarmados, foram fuzilados.  Os velhos, as mulheres e as crianças foram enfileirados em longas caminhadas para o deserto na atual Síria, sem nada que comer ou beber, caminhando incessantemente até irem soçobrando pelo caminho. No saldo final de vítimas deste massacre contaram-se um milhão e meio de mortos.
Nestes cem anos entretanto decorridos, o poder político turco nunca aceitou reconhecer a existência desse genocídio. A assumpção de culpas a que os alemães foram sujeitos pelos crimes nazis, foi poupada aos assassinos dos arménios por razões hipocritamente políticas. Por exemplo, serem fiéis aliados dos norte-americanos na NATO nas últimas décadas e ninguém os querer incomodar com tal «pormenor» da sua História.
O filme «The Cut» de Fatih Akin procura romper com esse silêncio através da epopeia de um jovem artesão que consegue fugir do quartel para onde fora mobilizado e ir à procura da mulher e das filhas, entretanto já levadas para uma daquelas «marchas da morte». Nesse périplo descobre que as duas miúdas estão vivas, pelo que as irá procurar  no Líbano, em Cuba e nos EUA.
Ainda que a crítica tenha torcido o nariz ao academismo do filme e ao argumento pouco imaginativo, não deixa de ser um acontecimento que seja um realizador de ascendência turca a  enfrentar o negacionismo abjeto dos compatriotas dos seus próprios progenitores. 

quinta-feira, janeiro 22, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Um mal nada banal

Estreou-se agora em França o documentário de Vanessa Lapa sobre o chefe absoluto das SS e arquiteto da “solução final”: «Heinrich Himmler, the decente one».
Resultado de sete anos de investigação, os historiadores associados à produção do filme estudaram as centenas de cartas, os quinze diários, as fotografias e muitos outros documentos encontrados na residência de Himmler em 1945, quando os norte-americanos a ocuparam.
Durante quinze anos esse manancial de informação andou perdido sabe-se lá por onde até ser adquirido por um artista israelita, Chaim Rosenthal, que o conservou num caixote debaixo da cama do seu quarto até morrer em 2006. Foi o filho quem ofereceu o seu conteúdo a uma universidade de Telavive, que logo cuidou de lhe dar o merecido encaminhamento, de que resultou um livro já publicado e o documentário para cinema acabado de estrear.
Para a belga Vanessa Lapa, que contou com vários familiares entre as vítimas do Holocausto, a questão que lhe interessava descobrir era como um fervoroso católico e chefe de família extremoso conseguia ser  tão perverso. Ou, por outras palavras, como é que alguém se consegue dissociar da sua humanidade, para se converter num monstro?
É que, ao contrário de Eichmann, Himmler não personificava de modo algum a “banalidade do mal” definida por Hannah Arendt. Com a mesma frieza com que passava junto a cadáveres acabados de serem fuzilados, era capaz de levar a família para um “aprazível” piquenique com os fornos crematórios do campo de Dachau ali quase ao lado.
Se inventou as câmaras de gás destinadas a agilizar o extermínio dos judeus foi para conseguir aliar outros dois objetivos bem definidos na sua cabeça: contornar os escrúpulos dos soldados a quem era imputada a tarefa de fuzilar os condenados e poupar os elevados custos com armas e balas.
Era, pois, um homem violento e perverso, que nada tinha de uma eventual variante do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde: funcionava com códigos morais muito rígidos, associados à fobia por tudo quanto cheirasse a judeu, comunista ou homossexual.
Já em jovem era um jovem burguês obcecado com o declínio da Alemanha, a pureza da raça germânica e a ordem burocrática. Explica-se, assim, que até numerasse as cartas de amor que enviava a Margaret com quem viria a casar. E ela é outro dos mistérios desta história: como é que uma mulher, sete anos mais velha que o marido, aceitou representar o papel de esposa submissa depois de ter sido uma jovem emancipada e com perspetivas feministas?
As cartas de Himmler à filha, Gudrun, ainda viva e  apoiante confessa dos neonazis atuais, expressam essa aparência dúplice , quando lhe  transmitia conselhos: “na vida, devemos ser sempre decentes, corajosos e bondosos”.
Decente” era de facto a palavra por ele mais utilizada nessa vasta correspondência. E daí o título escolhido pela realizadora para o seu filme. Apesar de, com ele, pretender demonstrar que o Mal absoluto existe e pode estar mesmo ao nosso lado! 

quarta-feira, janeiro 21, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: a importância da inovação em «O Jogo da Imitação»

«O Jogo da Imitação» é a demonstração de como as verdadeiras mudanças não resultam da repetição empenhada das mesmas estratégias de sempre, mas da inovação que nelas se suscitam. Por isso mesmo quando, em plena Segunda Guerra Mundial, os tanques e a aviação alemãs avançavam por toda a Europa sem ninguém lhes fazer frente, houve quem apostasse num obscuro professor de Cambridge e na sua proposta para infletir o rumo das coisas com uma máquina a que, anos depois, chamaríamos computador.
A solução residiria em conseguir descodificar as mensagens dos comandos nazis de forma a antecipar-lhes os ataques. E, para isso, seria necessário desmentir a suposta perfeição do encriptador nazi «Enigma», que diariamente alterava a sua chave.
Apesar da oposição de alguns dos seus chefes diretos, Alan Turing conseguiu comprovar a tese de provirem de quem menos se espera a solução para os problemas mais complexos. E, se ele suscitava dúvidas em quem o conhecia pela personalidade controversa, quase autista!
Mas, num filme que corresponde a um longo flash back a partir das declarações do matemático ao polícia, que o mandara prender por suspeita de espionagem, e acaba por lamentar tê-lo sujeito a uma terrível condenação por homossexualidade, retira-se ainda outra conclusão possível: quando um problema se revela irresolúvel a solução poderá ser tão simples, que a posteriori só pode surpreender que não tenha sido, entretanto, descoberta. Como, por exemplo, a importância de uma expressão tão trivial como a de heil Hitler!
Nunca tendo até agora dado atenção ao currículo de Morten Tyldum  como realizador, acabo por reconhecer a surpresa do seu talento para ir bem mais além do que a da criação de um filme de época com a qualidade habitual dos produtos ingleses. Já quanto ao desempenho de Benedict Cumberbatch não houve senão a confirmação do talento, que já lhe identificáramos em séries televisivas perduráveis por isso mesmo na nossa memória. 

DIÁRIO DE LEITURAS: «Os Cadernos Secretos do Prior do Crato» de Urbano Tavares Rodrigues

Há precisamente dez anos  - em janeiro de 2005  - Urbano Tavares Rodrigues iniciou o seu derradeiro romance, que seria publicado dois anos depois. Curto, como foram os da sua fase crepuscular, porquanto a doença já a mais não permitia. E, igualmente, com o seu quê de testamentário, ou não houvesse no escritor a consciência de um fim próximo.
Mas é interessante constatar como «Os Cadernos Secretos do Prior do Crato» tem tanto de Urbano. A começar pela temática: que outra personagem da História de Portugal mais se ajusta ao próprio perfil do autor de «Os Insubmissos»?
Se Urbano foi o combatente inquebrantável de uma bela utopia, que nunca conseguiu ver concretizada, o último príncipe de Avis muito se esforçou por manter viva a pátria derrotada nas areias de Alcácer-Quibir. Por isso nunca se vergou a quem o pretendia submisso aos interesses castelhanos, contra os quais jamais deixaria de lutar. Muito embora procurasse apoios externos para os conjugar com os da arraia-miúda e da burguesia, que nunca aceitaram os usurpadores, António iria de derrota em derrota até à do vale de Alcântara, quando Filipe de Espanha e a alta aristocracia portuguesa lhe acabaram com as ilusões.
Outra característica associa o prior do Crato a Urbano: a rejeição da identidade, que a ambos tinham pretendido assacar. Nem o primeiro aceitou de bom grado os constrangimentos da vida clerical, mormente os da obrigação do celibato - e por isso será odiado pelo tio, o cardeal D. Henrique -, nem quem o escolheu como personagem de ficção quis manter a grande herdade, que tinha no Alentejo. Por isso mesmo, tão só soprados os ventos da Reforma Agrária, Urbano e o irmão Miguel entregaram-na generosamente à cooperativa agrícola que ali se formou. Sem arrependimento, mesmo quando a reviravolta política fez desaproveitar tais terras, quer aos novos, quer aos antigos proprietários.
Acresce finalmente a derradeira similitude: a da personalidade sedutora, com efeito garantido junto das numerosas admiradoras, com que viveram intensas pulsões amorosas. E que nem sempre foram tratadas com a elegância merecida na hora da despedida.
Tal qual o Prior do Crato aproveita o seu caderno pessoal para recordar o testemunho de quanto viveu, também Urbano aproveitou para, através dele, proceder ao balanço das suas vitórias e derrotas, dos amores e desamores.
Porque quase tem a dimensão de uma novela e é feito de frases tão depuradas, que não abrem espaço a redundâncias, o livro lê-se num ápice. E constitui prazer de leitura garantido...

terça-feira, janeiro 20, 2015

COSMOS: Patetices perigosas

O «Público» de hoje traz uma entrevista muito interessante com David Marçal, um doutorado em bioquímica, que está apostado em denunciar as fraudes na ciência, sobretudo as que implicam sérios perigos à saúde de quem nelas acredita. O seu livro «Pseudociência»  deverá ser dos mais interessantes atualmente presentes nas estantes das livrarias.
Uma dessas vigarices abordadas no artigo é a homeopática, que já conseguiu convencer os incautos com a capacidade para se tornar produto vendável em farmácias, e que têm menos efeitos benéficos do que um copo de água com açúcar ou um leite com uma colher de mel.
Chega a ser pungente a teimosia com que os fanáticos da homeopática a defendem como «ciência» credível !
Um dos mitos mais criminosos, mas ainda muito disseminados, tem a ver com a associação das vacinas tríplices a supostos casos de autismo e que resultou do trabalho de um médico inglês, entretanto expulso da respetiva Ordem, que ganhou muito dinheiro das sociedades de advogados dispostos a exigirem avultadas indemnizações às empresas farmacêuticas.
Esse Andrew Wakefield  é só um exemplo da caução «científica» que os negociantes fraudulentos desse tipo de produtos utilizam para  levarem os ingénuos a acreditar em patetices como o são “desarmonias energéticas”, “concepção holística, dialéctica e energética do ser humano” ou “chacras desalinhados”.


segunda-feira, janeiro 19, 2015

SONORIDADES: «Constanze» pelo quarteto de Carlos Martins

Acaba de ser editado o novo álbum de Carlos Martins, que assume a homenagem a Bernardo Sassetti. É dele que aqui se linka tema «Constanze» num vídeo assinado por Paulo Seabra. 

DIÁRIO DE LEITURAS: A literatura como catarse

A publicação para breve do mais recente vómito literário de Michel Houellebecq não merecerá aqui a atenção, que levou por exemplo o suplemento Ípsilon do «Público» a dedicar-lhe a capa da sua edição mais recente. É que se queremos visitar realidades semelhantes - onde personagens vagueiam sem qualquer futuro e numa abjeta rendição às circunstâncias - há quem, em França, forneça alternativas mais interessantes.
É o caso de Virginie Despentes, que acaba de publicar o primeiro volume de uma trilogia intitulada «Vernon Subutex». Editada pela prestigiada Grasset, a autora anuncia o segundo volume já para março.
Em Portugal ela é quase uma desconhecida, muito embora a Sextante lhe tenha publicado o «Apocalypse Baby» com que ganhou o Renaudot há quatro anos, e o seu filme «Baise-moi» haja passado nos cinemas.
Conhecida pelo seu percurso biográfico, que incluiu uma violação em adolescente quando andava à boleia, e por ter andado a prostituir-se e a dançar em peep shows, Virginie Despentes viveu os excessos inerentes ao consumo imoderado de álcool, drogas e rock’n roll.
Vinte anos passados, já vai no seu décimo romance, que revisita esses ambientes com a credibilidade de quem muito bem os conheceu.
O protagonista é Vernon Subutex a quem a crise fez perder o seu negócio discográfico. De algibeiras vazias vagueia por Paris, dormindo nos sofás dos que tinham sido seus  clientes, amigos ou namoradas, sem imaginar que uns quantos mal intencionados andam a procura-lo para lhe roubar a cassete confessional entregue por Alex Bleach, um conhecido rocker, antes de morrer de overdose
Mais do que um policial, o romance é sobre o fim de uma época em que o rock irreverente e subversivo foi atirado para o caixote do lixo por rappers, que cantam sobre os seus luxuosos relógios e as mulheres-objeto com que se deitam.
Estando a viver a separação afetiva com a sua companheira dos últimos dez anos, Virginie tem boas razões para aqui sublimar a sua amargura.

domingo, janeiro 18, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Erri di Luca e os ataques ao direito à opinião

Dos atuais escritores italianos tenho uma simpatia especial por Erri di Luca, apesar de me deixar muitas vezes desconcertado a respeito de alguns dos seus posicionamentos políticos, como sucedeu quando foi um dos episódicos apoiantes do palhaço grillo.
Agora irei acompanhar com curiosidade o julgamento que, no dia 29, ocorrerá em Turim tendo-o como réu mediante a acusação de incitação à sabotagem das obras do TGV entre Lyon e aquela cidade italiana devido aos efeitos ecológicos num dos mais belos vales do Piemonte.
Aos 64 anos, Erri (cujo nome verdadeiro é Harry por causa da sua avô britânica) vive como um eremita na sua casa situada nas margens do lago Bracciano e onde só conta com a companhia de dois gatos. Dá-se aí ao prazer do silêncio, que também é um dos principais benefícios colhidos do alpinismo, atividade a que se dedica com alguma frequência.
Na biografia realça-se o seu precoce abandono dos estudos aos 18 anos, quando preferiu enveredar pela militância política na extrema-esquerda - no grupo Lotta Continua - e ganhou o sustento com os mais variados ofícios: operário, carpinteiro, camionista entre outros.
Quando se dissociou dessa via, dedicou-se a aprender sozinho o yiddish e o hebreu para ler as Escrituras na versão original.
Podemos presumir que, enquanto cultiva o jardim, vai dando asas à imaginação para produzir textos com surpreendente celeridade. O estilo é feito de frases curtas, porque defende a possibilidade de serem lidas em voz alta e de um só fôlego.
A perseguição judicial de que se vê alvo - por um procurador cujo pai foi morto por um atentado da extrema-esquerda nesses anos de brasa - pode ter a ver com a insistência com que defende as diferenças entre a ilegitimidade terrorista e a genuína luta armada, de que nunca deu mostras de arrependimento...