terça-feira, julho 31, 2018

(DIM) Quando o antiestalinismo primário oculta a análise objetiva das práticas antimarxistas dos regimes ditos «comunistas»


A noite temática de hoje na Arte tem consistido numa diatribe anti estalinista, que aborda esse longo período da História soviética de acordo com os mitos há muito alimentados pela perspetiva capitalista ocidental, decidida a manipular as mentes para, colorindo tanto quanto possível os crimes cometidos na URSS, pôr em causa uma ideologia de cujos pressupostos fundamentais ela se dissociara.
Primeiro foi o documentário de Ullrich Kasten intitulado «Hitler - Estaline: a diagonal do ódio» que procurou equiparar os dois políticos, como se não os separasse à partida a intenção de um manter o regime de exploração do capital sobre o trabalho, enquanto o outro ambicionava a construção de uma utopia, que se tornava cada vez mais distante à  medida que as suas decisões estratégicas privilegiavam a crescente autoridade da cúpula do partido em detrimento do efetivo cumprimento da democracia a partir das suas bases. Um pensava prioritariamente nas «raças», o outro nas bem mais concretas classes sociais.
A autora do documentário quis convergi-los no antissemitismo e na paranoia, mas mesmo nesses argumentos omite informação: após a Revolução de Outubro foi na Ucrânia, sob o domínio do Exército Branco (antissoviético) que se concretizaram os mais terríveis progroms desses anos vitimando mais de cem mil judeus. Por outro lado a paranoia de Hitler só se manifestou, quando os seus exércitos começaram a recuar com os respetivos generais a caírem, ora mortos, ora prisioneiros do Exército Vermelho. Pelo contrário Estaline, tal como Lenine, teve de enfrentar efetivos movimentos contrarrevolucionários cujos ímpetos homicidas em nada se distinguiam dos do lado oposto. Com muitos inocentes colhidos no meio de ferozes batalhas internas, os gulags, os fuzilamentos sumários ou os encenados processos de Moscovo eram a resposta a incessantes conspirações fomentadas e financiadas pelas potências ocidentais, temerosas de verem o «vírus» comunista alastrar-se a ocidente. 
Apesar de firmar o pacto germano-soviético com que pretendeu ganhar tempo para reconstruir a cúpula militar, que cuidara de eliminar nos anos anteriores, Estaline nunca se encontrou com Hitler. Mas a versão histórica debitada por este documentário propagandístico é a de um Estaline paralisado e contraditório, incapaz de crer na «traição» do efémero aliado, quando este fez avançar os tanques na frente oriental. Tivesse essa perspetiva alguma consistência nunca os exércitos soviéticos teriam conseguido resistir aos invasores, quando estes julgavam que chegar a Moscovo seria mero passeio.
Mais consonante com a realidade e com os erros indesculpáveis do estalinismo é a história da fraude científica, que Lyssenko representou com a cumplicidade de Estaline e em detrimento de um sábio brilhante, Vavilov, que morreria de fome num campo de trabalho siberiano.
«O sábio, o impostor e Estaline» tem a assinatura de Gulya Mirzoeva e enquadra-se na mesma filiação de rever a História, acentuando o que houve de negativo no período soviético como forma de exaltação implícita do seu contraponto capitalista.
Na ostracização a que Nikolai Vavilov foi sujeito, enquanto o vigarista Lyssenko era idolatrado, Estaline demonstrou o quanto se afastara da doutrina marxista, porque nunca esta poderia permitir que a flagrante mentira  fosse mascarada de forma a confirmar perversões ideológicas, que conviriam à linha do partido, mas não se coadunavam com  a verdade científica.
A fundamentação da fraude teve motivação nas grandes fomes verificadas em 1921 e 1932, ambas decorrentes de decisões erradas do partido, mas que levaram os meios científicos a buscarem soluções para a melhoria do rendimento das colheitas de cereais. Agrónomos, biologistas e outros cientistas foram instruídos no sentido de arranjarem alternativas eficazes, que garantissem a segurança alimentar das populações.
Logo em 1922, Vavilov põs o instituto de Petrogrado, que dirigia, a recolher grãos e sementes para, mediante técnicas genéticas, encontrar quais as capazes de cumprirem tal objetivo. Estimulava-o o ideal de conseguir um tal sucesso, que toda a Humanidade visse erradicado o flagelo da fome. Foi então que, contra a «genética burguesa», e mediante técnicas agrárias, que mais não eram do que adaptações de ancestrais práticas camponesas, Trofim Lyssenko viu-se incensado como herói soviético, impedindo o desenvolvimento científico, que poderia ter dado à URSS a efetiva primazia na capacidade exportadora a nível mundial.
É nessa perspetiva, que Estaline deve ser condenado: a cegueira nas suas certezas, impedia-o de pensar segundo os princípios dialéticos, que lhe deveriam suscitar dúvidas sobre a bondade das suas decisões tendo em conta as trágicas e erróneas consequências delas resultantes. Ano a ano a utopia prometida em 1917 ia-se afastando mais e mais da desejada concretização. Mas essa é ilação, que este documentário e o anterior furtam-se a apresentar.
Lyssenko só seria afastado da condução dos assuntos agrários soviéticos com a morte do seu protetor em 1953, quando Vavilov já morrera tragicamente, mesmo deixando no seu Instituo de Leninegrado um importante legado de sementes, que os discípulos se tinham encarregado de, quase clandestinamente, conservar.

(S) L'Arpeggiata: Ciaccona com Veronika Skuplik no violino

(DL) Quando Steinbeck deu da União Soviética um relato honesto e objetivo


Na mítica viagem à União Soviética, que John Steinbeck e Robert Capa empreenderam em 1948, foi explicita a burocracia com que se depararam, a par do culto de personalidade a Estaline. Três anos passados sobre a guerra, que matara vinte milhões de soldados do Exército Vermelho e de civis das zonas ocupadas pelos nazis, a vitória sobre Hitler era atribuída ao comandante-chefe, que tomara a precaução de estabelecer a paz com o inimigo, quando ainda não estava preparado para o enfrentar, conseguindo-o travar quando a Operação Barbarrossa pretendia ser um mero passeio teutónico até Moscovo, Leninegrado e Estalinegrado. Na altura não se colocava a questão de saber quão atrasada ficara a preparação da defesa contra o expansionismo germânico se a cúpula militar não tivesse sido decapitada na segunda metade da década anterior. Para a generalidade dos sobreviventes Estaline fora suficientemente inteligente para recuar quanto necessário, confiar na imensa capacidade de sacrifício do povo que, â exceção de muitos ucranianos e bálticos atraídos pelo nazismo, enfrentara heroicamente o inimigo, e contra-atacar de uma forma consistente, tendo a honra de ver a bandeira vermelha desfraldada em Berlim, quando aí haviam chegado antes dos norte-americanos, já temerosos de verem metade da Europa ficar confiada à influência do Kremlin no pós-guerra.
Na viagem por várias cidades soviéticas Steinbeck e Capa encararam esse culto da personalidade como natural, tornando-se-lhes mais incómodas as falhas burocráticas, que alteravam os programas quotidianos com demasiada facilidade, seja por falta de transporte, seja por outras alternativas lhes serem propostas à última da hora.
No fundo eles mostram emancipação das reservas mentais de muitos compatriotas manipulados pela propaganda anticomunista, olhando para a realidade soviética com a mesma atitude por mim tomada, quando por ali andei nos anos setenta e oitenta. Na altura surpreenderam-me os que confessaram a admiração por Estaline, apesar de, já há mais de duas décadas, Krushev  dele ter dito cobras e lagartos. Pelo contrário havia uma notória antipatia por Brejnev, tido por muitos desses interlocutores como incapaz de prosseguir o rumo tomado pelo regime na época em que Gagarine demonstrara o quanto a tecnologia soviética estava bem mais adiantada do que a da superpotência rival na candente conquista espacial.
O que os textos de Steinbeck revelam, corroborados pelas fotografias de Capa, é a existência de pessoas perfeitamente iguais às ocidentais nas suas virtudes e defeitos, mas porventura melhores, porque sentiam uma enorme pulsão pela paz, que as poupasse a novas experiências bélicas, e tinham para com os visitantes uma simpatia e generosidade, que dificilmente poderiam ser superadas em qualquer outro lugar.

segunda-feira, julho 30, 2018

(C) Uma história para embalar os inocentes


A falácia tem tido particular aceitação no norte da Europa, sobretudo desde os anos noventa: muitos crédulos denunciam os rastos dos aviões no céu como consequência da disseminação de produtos químicos na atmosfera com objetivos mais do que insidiosos. Segundo eles algumas agências governamentais estariam por trás do fenómeno e teriam por objetivos tornar os cidadãos mais dóceis, combater o aquecimento global ou difundir doenças como o Alzheimer.
O tema tornou-se farto pasto para os paladinos das teorias conspirativas. Por exemplo em 2009, numa entrevista televisiva, o cantor Prince confessava sentir mudanças de comportamento depois da passagem de aviões responsáveis por tais rastos no céu. Na realidade estes são nuvens artificiais surgidas no céu por ação  dos aviões, que imitam o que connosco sucede quando expiramos ar quente e húmido dos pulmões.
Os gases residuais resultantes da combustão inerente ao funcionamento do motor do aparelho inclui partículas e vapor de água. É da mistura entre o ar quente e húmido saído da turbina com o que está seco a grande altitude, que provoca a condensação do vapor de água, sucessivamente liquidificando-se e gerando cubos de gelo.
Os rastos em causa formam-se a altitudes entre os 10 e os 12 quilómetros, sendo mais nítidos consoante o ar esteja ali mais húmido ou mais seco. Nada têm a ver com a geoengenharia, técnica que consiste em injetar aerossóis e outras partículas  na estratosfera para influenciar a meteorologia. Há ainda a considerar que o tráfico aéreo está a aumentar 3 a 5% ao ano tornando mais frequentes as hipóteses de ver repetido esse fenómeno dado o crescente número de aviões a sobrevoar-nos as cabeças.
Significará esta clarificação, que os rastos deixados pelos aviões são inofensivos? Não se pode garanti-lo, porque suscitam pelo menos dois efeitos contraditórios: por um lado refletem a radiação solar reduzindo a sua incidência na superfície do planeta. Mas, por outro lado, criam um efeito de serra, impedindo o planeta de arrefecer. Da  conjugação de ambos os efeitos prepondera o do aquecimento do planeta.
Nesta altura a atividade aeronáutica é responsável em 3% pelo aquecimento climático não se podendo ignorar tal impacto em função dos benefícios por ela proporcionados.

domingo, julho 29, 2018

(DIM) Bons filmes ao Luar


O Cinema ao Luar promovido pela Associação Gandaia da Costa de Caparica, que vem projetando filmes ao ar livre nas noites de sexta-feiras e de sábado (assim será até ao fim do mês de agosto) tem proposto expressões muito distintas de entretenimento cinéfilo, mesclando obras aligeiradas com outras de mais exigente feitura.
Nas últimas duas semanas os títulos mais conotados com o cinema de ação foram «Mr. And Mrs. Smith», com o casal Brad Pitt e Angelina Jolie então em vias de amancebarem-se, e «Bandidas», um western com Penelope Cruz e Salma Hayek.
Datado de 2005, o filme de Doug Liman tem ampla percentagem de cenas inverosímeis de Pitt e Jolie a despacharem inimigos, confirmando a aposta num tipo de espetadores mais jovens, com a cabeça formatada pelos jogos de vídeo, mas se quisermos olhar para a história com alguma argúcia está lá a questão da mentira no espaço conjugal ou de como o trabalho pode ganhar maior relevância do que os afetos.
Criado por essa mesma altura o western com as duas atrizes latinas também usa e abusa da artilharia pesada para dar substância a uma luta, que começa por assumir conotações anti-imperialistas (os bancos norte-americanos a abocanharem o sistema bancário mexicano!), mas conclui-se com o propósito delinquente do vilão de serviço, que acaba devidamente sancionado. Além das duas protagonistas há também espaço para revermos um dos mais importantes dramaturgos norte-americanos, Sam Shepard, que assume o papel de preparar as moçoilas para a ação revolucionária.
Alternando com esses dois filmes tivemos os bem mais respeitáveis «West Side Story» de Robert Wise, Jerome Robbins e Leonard Bernstein e «O Baile» de Ettore Scola.
O filme que transpôs a história de Romeu e Julieta para as ruas de Nova Iorque, com os confrontos entre jovens brancos e porto-riquenhos, continua a dar razão a quem o considera um dos melhores filmes das respetivas vidas. Tive um chefe, o Luís Filipe, que confessava ser mesmo aquele a que dava a primazia fundamentado nas  conhecidas canções, nos excelentes movimentos coreográficos e na história simples, que se aguenta com coerência. Natalie Wood, mesmo dobrada nas cantorias, era impressiva no desempenho em ano que seria, igualmente, o do filme, que mais no-la tornariam inesquecível: «Esplendor na Relva» (apesar de realizado por um dos mais sinistros bufos de Hollywood, Elia Kazan).
Quanto à obra de Scola, quem a vê compara-o com a excelente adaptação em tempos assinada por Helder Costa para a Barraca que, por versar a música e a história portuguesa, ganha a preferência. Mas o filme, também ele construído a partir de uma prévia peça teatral, é engenhoso na forma como desfila os acontecimentos mais importantes do século XX francês mediante os sons e a forma como dançavam os pares episodicamente encontrados nas salas de baile.
Na mesma lógica a programação para o próximo fim-de-semana contará com «Solaris» de Steven Soderbergh na sexta-feira e «O Último Comboio de Gun Hill» na noite seguinte. Duas boas razões para comparecer pelas nove e quarenta e cinco da noite na Praça da Liberdade da Costa de Caparica.

sábado, julho 28, 2018

(DIM) «China: O Império do Tempo», documentário de Cédric Condon (2017)


No século XVII os missionários jesuítas ambicionaram evangelizar a China. As tentativas ensaiadas a partir de Macau, onde funcionava o entreposto português, tinham todas fracassado. Para concretizarem o objetivo a nova estratégia passou por facultarem aos sábios chineses os conhecimentos astronómicos já consolidados no ocidente, crentes de assim os convencerem da sua superioridade. Procuravam vencer a desconfiança dos anfitriões, indo-lhes ao encontro das crenças mais profundas, já que a política imperial era definida em grande parte pelo comportamento dos objetos celestes.
Matteo Ricci foi o primeiro desses jesuítas a dirigirem-se à China com intenção proselitista. Estava-se em 1601 e, ao deparar-se com o estado da astronomia chinesa, os seus calendários e instrumentos, sentiu a vantagem de ter estudado geometria e álgebra para compreender o ascendente que conseguiria se obtivesse resultados mais concludentes na previsão dos fenómenos celestes, sobretudo os eclipses do sol e da lua. A autoridade imperial dependia dessa melhor capacidade de medir o tempo.
Ao partilhar os seus próprios conhecimentos científicos, Ricci ganha influência junto dos funcionários do Gabinete de Astronomia da corte imperial. Recebido na Cidade Proibida e tornando-se conselheiro do Imperador espera convertê-lo ao catolicismo, de forma a, de seguida, estender essa atitude a todos os seus súbditos.
Ao morrer em 1610, Matteo Ricci é substituído por outro jesuíta, o alemão Johann Adam Schall von Bell, que prossegue a elaboração de um novo calendário ao estilo ocidental. Frustra-o o suicídio do imperador Chongzhen, o último dos que provinha da dinastia Ming. A China mergulha num tal caos, que só a invasão dos manchus, em 1644, volta a impor a ordem social.
Bell torna-se perceptor do primeiro imperador da nova dinastia Qing, o jovem Shunzhi. Mas as intrigas no seio da Cidade Proibida fazem-no cair em desgraça. Aprisionado sob a acusação de pretender a imposição da sua religião. é condenado á morte em 1665.
O documentário de Condon apoia-se em reconstituições históricas convincentes e no acesso a inúmeras instalações astronómicas chinesas, entre as quais o FAST, que, desde 2016, é o maior radiotelescópio do mundo. Aborda assim, esse curto período de pouco mais de meio-século, em que houve efetiva partilha de conhecimentos científicos entre o Ocidente e o império chinês.

sexta-feira, julho 27, 2018

(I) Beleza, Duchamp, Pavese e Berl


1. O que é a beleza? Enquanto vou olhando para os mails ouço distraidamente um programa alemão em que o entrevistador vai procurar uma definição do que ela significa para diversas pessoas, uma das quais lembra uma afirmação de Voltaire: se fizessem essa pergunta a um sapo ele diria tratar-se de algo verde, com uns olhos grandes e umas patas ainda maiores. Razão para confirmar que os padrões de beleza nada têm de universal. Por exemplo uma das raparigas entrevistadas é modelo numa escola de Belas Artes em Berlim e reconhece em si uma beleza, que na aldeia natal, na Flandres, ninguém lhe reconhecia. Mudara de espaço e de forma de exposição do corpo e o conceito logo se lhe redefinira.
Noutro bairro da capital alemã detetam-se intenções de agradar aos outros na forma como cada um se passeia adornado dos trajos e acessórios mais vistosos ... pelo menos na sua perspetiva. Mas uma filósofa, Silvia Mazzini, cuida de realçar a beleza interior dando o exemplo de Sócrates, um seu confrade de quem a eternidade conservou registo de se tratar de quem era muito feio, mas cujas ideias vieram a ser determinantes  no pensamento ocidental.
Tenho a sorte de conservar na memória muitos momentos de incomensurável beleza. Há os mais íntimos, que não são chamados aqui para o caso, mas posso sempre realçar o quase sufoco de, na popa de um navio, apreciar a luz crepuscular do céu a conferir maior amplitude às falésias dos fiordes noruegueses  num dos verões ali passados.
2. Em outubro passarão cinquenta anos sobre a morte de Marcel Duchamp e preparam-se inúmeras iniciativas destinadas a evocar quem pôs toda a intelectualidade ocidental a reequacionar o conceito de objeto artístico. Com humor e inteligência crismou-se de «anartista», definindo o «ready-made» como a coisa manufacturada, que promovido ao nível de uma obra de arte.
Joanne Snrech, que comissaria a exposição «ABCDUCHAMP» no Museu das Belas Artes de Rouen, considera que essa opção constitui a rutura com a tradição novecentista, que conferia ao artista uma dimensão heroica, solitária, muito de acordo com o sentido romântico do que era tido como génio.
O gesto de transferir para o objeto o protagonismo do ato artístico justifica que Duchamp seja considerado o pai da arte contemporânea. Retrospetivamente abriu espaço para a arte conceptual e para a body art, que já está prenunciada na sua obra dos anos vinte ao travestir-se no seu alter ego feminino Rrose Sélavy.
Nessa mesma linha temos de reconhecer coerência ao seu epitáfio - «Na realidade, são sempre os outros quem morrem» - porque volta a transferir para outrem o protagonismo, que tenderia a ser dado ao seu autor.
3. Pouco lembrado, Cesare Pavese é escritor italiano que tinha boa reputação no círculo pós-adolescente em que me movia por volta da Revolução de Abril, e cuja leitura mereceria ser recuperada.
Num texto confessional de 27 de junho de 1946 ele anota: «Tentação do escritor. Ter escrito algo que te dê a sensação de uma arma acabada de disparar, ainda tremelicante e quente, esvaziado de tudo quanto és, pelo qual não só tenhas descarregado tudo quanto sabes, mas também o que suspeitas ou supões, bem como os sobressaltos, os fantasmas do inconsciente  - ter feito isso mesmo custando uma enorme fadiga e uma longa tensão com uma prudência feita de dias, de tremores, de bruscas descobertas e de fracassos, fixando toda a vida nesse momento - aperceber-se que tudo é como nada se um sinal humano, uma palavra, uma presença não o acolhe, não o acalenta - e morrer de frio - falar no deserto - estar só dia e noite como um morto.»
Cinco anos antes, a 2 de maio de 1941, dividia os homens em duas categorias: «Existem os verticais, que experimentam continuamente, passam de uma pessoa para outra, abandonando uma pela seguinte, que se torturam e sofrem se uma das antigas paixões o voltam a tentar enquanto escrevem um conto. São os românticos.
Em contraponto estão os horizontais, que cuidam da experiência com uma vasta gama de valores mas, em simultâneo, são capazes de se entusiasmarem por pessoas e coisas sem renegarem as que conhecem; os que da calma e convicção interior, aproveitam, dominam e temperam as mais variadas pulsões. São os clássicos.»
4. No pós-guerra a França tem sido palco de sucessivas recuperações dos que, durante a Segunda Guerra Mundial tiveram comportamento crapuloso, alinhando convictamente com os nazis ou, no mínimo, colaborando ativamente com o governo colaboracionista de Pétain.
Céline ou Drieu de La Rochelle são os casos mais óbvios, mas neles se inclui, igualmente, Emmanuel Berl que, apesar de judeu, homossexual e se enquadrar no pensamento de esquerda no início dos anos trinta, não enjeitou a possibilidade de escrever discursos para o marechal traidor.
Quando se desiludiu com Vichy adotou a cómoda fatiota de pacifista, remetendo-se a um exílio interior na Corrèze, que se ampliou quando se viu publicamente acusado pelos existencialistas a propósito desses comprometimentos passados. Agora, a pretexto de o identificarem como um ecologista precoce, há quem pretenda dar segunda vida aos seus escritos.
Pessoalmente tenho escassa simpatia por quem, nos momentos decisivos da História, decidiu assumir-se na trincheira errada...

quinta-feira, julho 26, 2018

(DL) Quando Thomas Mann relacionou o nazismo com a música alemã


Em 1943, quando a Segunda Guerra estava a conhecer rápida evolução, com a Alemanha nazi a passar dos ataques expansionistas para o da cada vez mais difícil defesa dos territórios ocupados, Thomas Mann estava exilado na Califórnia. Tendo como vizinhos Bertolt Brecht e Theodor Adorno com eles discutia a situação política, retendo-lhes importante influência no romance, cuja escrita então o motivava. «Doutor Fausto», o título em causa, não terá sido o melhor que escreveu, mas é decerto um dos que testemunham com pertinente acuidade as suas preocupações em tais circunstâncias.

O narrador é o professor Zeitblom, que conta a história do compositor Adrian Leverkuhn. A exemplo do Fausto da lenda ele decidiu fazer um pacto com o Diabo, abdicando da essência humana para criar obras de incomparável genialidade. Mas o desiderato é trágico porque acaba por enlouquecer. Há, pois, um paralelo com a cultura alemã, também ela seduzida por uma personalidade mefistofélica e, caída num sinistro desvario.
A abordagem romanesca da crise europeia revisita os mitos, sobretudo os de cunho maléfico. Thomas Mann quis com ela deixar uma espécie de testamento literário, porque confessaria depois nunca ter sentido uma tal empatia com um personagem saído da sua imaginação, um artista que, a exemplo de Nietzsche, renunciara à possibilidade de amar, caindo na alienação para carregar no íntimo o sofrimento da época.
Não admira que Adrian se dedique à música suscitando a questão: se a cultura endoidece, será ela a culpada? É que o Pacto já havia sido firmado entre a música alemã e os nazis, estando subjacente em muitas das obras compostas por Wagner no século anterior, e depois corroboradas com o efetivo colaboracionismo de Richard Strauss e Carl Orff. Deste último, a muito apreciada «Carmina Burana» inscreve-se na ordem de valores celebrados anualmente no Festival de Beyreuth, desde 1920 dirigido por Winifred Wagner, cuja idolatria por Hitler não conhecia limites.
Adorno estava a concetualizar essa relação entre a cultura musical alemã e o nazismo e as suas ideias foram ganhando expressão literária no romance do amigo. Que não ignorava o comprometimento ativo dos maiores maestros germânicos do regime, mormente Fürtwangler e Herbert von Karajan.
O que o romance de Thomas Mann perspetiva é que ser culto não inviabiliza a possibilidade de se deixar seduzir pelas monstruosidades mais assassinas. Sobretudo se a arrogância de sentir-se acima do comum dos mortais impedir que se o veja nas suas fraquezas, mas sobretudo nas bem mais admiráveis qualidades. Nesse sentido, e numa altura em que existem novos mostrengos à solta enquanto titulares de governos nos vários continentes, a análise aqui exposta pelo escritor alemão mantém-se plenamente atual.

(S) Claudio Arrau a interpretar a última sonata de Beethoven

(DIM) «Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi» de Rian Johnson (2017)


Se aquando da estreia do primeiro filme da série «Guerra das Estrelas» senti genuíno entusiasmo com uma história assumida por George Lucas, seu realizador, como tendo propósitos político-ideológicos bem discerníveis no enredo, os títulos seguintes foram-me deixando crescentemente indiferente.
Só agora dediquei algum tempo para ver o mais recente dessa saga, intitulado «O Regresso de Jedi». Confesso que, se as expetativas não eram elevadas - apesar de ter o interesse de Carrie Fisher e Mark Hamill retomarem os seus personagens - o que vi não mas fez dilatar.
É claro que os efeitos especiais são excelentes, a caracterização dos extraterrestres convincente e as maquetes passam bem por máquinas verdadeiras. Mas a infantilização dos espectadores, que se sentam nos cinemas a mastigarem pipocas e sem vontade de verem estimuladas as celulazinhas cinzentas, justifica passar-se grande parte da (excessivamente) longa metragem a acompanhar combates cujo resultado final sabemos de antemão qual será. Ao chegarmos ao genérico final é inevitável a sensação de se ter tratado de prato requentado digerido com algum tédio e destinado a ver-se imediatamente esquecido.
Com boa vontade poderemos sempre resgatar a temática anti-imperialista, que Lucas enunciara como importante na génese da história original, e a dialética íntima do mauzão de serviço, Kylo Ren, dividido entre o seu lado sombrio e o que os genes originais lhe tenderiam a impor. Mas toda essa sequência entre o ser-se monstruoso numa parte do filme, cair-se em si e ganhar asas de anjo, para, logo a seguir, voltar aos maus instintos iniciais, acaba por ser demasiado desconcertante para lhe conferirmos a mínima verosimilhança.
Como de costume tudo acaba em bem, os vilões são castigados e os bonzinhos premiados ou não tivessem os argumentistas feito sobressair o maniqueísmo primário, que já estava imbuída na matriz original.

quarta-feira, julho 25, 2018

(S) O Concerto de Brandenburgo nº 5 de Bach

(DL) Entre as mafias italianas e a educação sentimental no Nebraska de há cem anos


1. Numa altura em que a mais enfática contestação ao governo fascista italiano é encabeçada por Roberto Saviano que, além de chamar palhaço a Matteo Salvini, também deixa implícita a ligação deste a ambientes mafiosos, faz todo o sentido ler «A Republica da Mafia», ensaio de John Dickie, publicado pelas Edições 70 há dois anos, que trata da história da Cosa Nostra, da Ndrangheta e da Camorra desde 1946 até aos nossos dias. Embora diferentes entre si e cobrindo áreas geográficas distintas - a Sicília, a Calábria e Nápoles respetivamente - elas têm de comum a ambivalência no relacionamento com o Estado: ora fazem dele o principal inimigo, ora infiltram-no de forma a colherem tanto quanto podem no jogo de interesses económicos definido pelos ministros.
Quem hoje ainda duvida das relações mais que suspeitas de Giulio Andreotti com a Mafia a quem terá prestado favores nas décadas em que foi quase tudo na política transalpina? Quem esqueceu os assassinatos dos juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, ou do general  Della Chiesa na década de 80, precisamente aquela em que a extrema-direita também andava particularmente ativa com atentados terroristas?
Nessa concertação com muitos políticos corruptos ou no assassinato aos que se escusavam a servir-lhe de trampolim para os seus negócios, as diversas máfias condicionaram seriamente a política italiana ao longo destas mais de sete décadas, não havendo que esquecer como a siciliana ganhou particular relevância graças à cumplicidade dos altos comandos militares norte-americanos, que contaram com a sua cumplicidade ativa aquando da invasão da Sicília em 1943.
Daí que faça sentido considerar que a luta dos antifascistas italianos contra o governo atual não possa descurar o papel clandestino, que as mafias desempenham na sua consolidação.
2. Há cem anos Willa Cather escreveu «Minha Ántonia», um romance encantador, que a Relógio de Água publicou há pouco tempo entre nós. Homossexual e conservadora, deixara de vez o jornalismo para se afirmar como escritora, seguindo as pisadas do seu idolatrado Henry James.
A história é contada por Jim Burden, um rapaz vindo do Virgínia, que encontra numa vilória do Nebraska uma rapariga, Ántonia, que o deixa num estado de deslumbramento.  Mais do que esse fascínio, Willa Cather consegue-nos transportar numa autêntica viagem no tempo para essa América rural, afinal não muito diferente, nos valores - particularmente nos preconceitos! - com o que ela ainda hoje é.
Se queremos compreender que tipo de eleitorado se deixou embeiçar por Trump, quando tratou de desfeitear o cosmopolitismo das elites das grandes cidades banhadas pelo Atlântico e pelo Pacífico, é capaz de encontrar aqui algumas respostas eloquentes.

terça-feira, julho 24, 2018

(S) Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou: «Houzou Houzou Wa»

(DL) «Vers la beauté» de David Foenkinos


Dostoievski escreveu um dia que a Beleza poderia salvar o mundo. Tese arrojada, que Antoine Duris intenta comprovar, se não para beneficiário tão amplo, pelo menos para si enquanto pessoa. Ele que conhecera percurso exemplar como estudante, e depois enquanto professor, na Escola de Belas Artes de Lyon, sempre tivera um vínculo muito forte com o Belo e assim pretendia que prosseguisse ao demitir-se de tudo quanto fora até então, escusando-se às despedidas dos amigos, eaté mesmo dos familiares, para se instalar quase anonimamente em Paris, concorrendo ao lugar de vigilante de sala no Museu d’Orsay. A ocasião não podia ser mais propícia, porque estava iminente uma grande retrospetiva sobre a obra de Modigliani, artista a que dedicara a sua tese de doutoramento.
Olhando-lhe para o currículo e confirmando-o através de um par de telefonemas Mathilde, a diretora dos Recursos Humanos, sente espicaçada a curiosidade: o que leva um tão admirável professor, com artigos de referência publicados nas mais prestigiadas revistas de Arte, a abandonar tudo de forma tão inopinada vindo-se oferecer para tão modesto cargo? Que traumatismo terá estado na origem de uma tal reconversão?
À medida que se vai entrando na decifração do mistério torna-se lógica a intenção do protagonista em mergulhar quotidianamente na beleza dos quadros neles buscando a catarse para o sofrimento recalcado. É que Antoine carrega consigo um segredo doloroso sobre Camille, talentosa artista cuja germinação acompanhara desde a adolescência e cujo destino ficara definitivamente posto em causa por um ato de violência, que não chegara a demorar dois minutos. Como é frequente nos romances sobre amores impossíveis, a ligação entre Eros e Tanatos também aqui vem ao encontro do leitor.
Ao evadir-se do passado, Antoine Duris pretende repartir do zero, reconstruir-se, mesmo sem consciencializar verdadeiramente a racionalidade do gesto. Porque guia-o a intuição, mais do que um plano concebido para tal fim. Daí que a redescoberta do Amor venha a ser-lhe tão inesperada quanto para Mathilde, já que comungavam ambos da decisão de nunca mais voltarem a ceder ao sortilégio da empatia afetiva com quem quer que fosse.
Ao décimo quinto romance, Foenkinos recebeu os elogios rendidos de quase todos os críticos, que se sentiram tentados a escrever sobre o livro, mas, na realidade, há quem muito justamente ponha em causa a ligeireza da trama, a falta de espessura dos personagens, como que subordinadas a servirem de passiva demonstração à hipótese lançada pelo autor de «Crime e Castigo».