terça-feira, novembro 29, 2016

(AV) Marina Abramovic: viver intensamente a arte

Amanhã, dia 30 de novembro, Marina Abramovic chega aos setenta anos de idade. Apesar de se ter exposto a milhentos perigos, conseguiu-lhes sobreviver. A vida sempre foi intensamente vivida, servindo-se do corpo como sustentáculo para exprimir essa tensão na Arte Performativa de que foi uma das mais emblemáticas pioneiras. O tema permanente foi a da exploração dos medos.
“Se temes a dor enfrenta-a. É precisamente o que importa fazer. E foi sempre o que fiz durante toda a minha existência. Quando entro em pânico, porque me dirijo ao desconhecido, faço por vencer o medo para descobrir como é o outro lado.” - eis algo que se pode descobrir em «Atravessar as Paredes», a biografia não traduzida em português, onde se revela como uma mulher ferida no íntimo superou as suas angústias.
Nasceu e cresceu em Belgrado, na antiga Jugoslávia, quando os pais, comunistas e fiéis seguidores da linha política imprimida por Tito, ainda festejavam a vitória contra os nazis, contra os quais tinham combatido como resistentes. Mas o ambiente em casa, e fora dela, era austero, condicionado por uma disciplina, que ela sentia como asfixiante. Por isso partiu para outras paragens, acabando por conhecer o grande amor da sua vida, o artista alemão Ulay, com quem formará uma parelha inseparável durante doze anos, quer na criação artística, quer na vertente sentimental.
Entre 1970 e 1982 percorrem o mundo numa permanente viagem radicalmente ultrarromântica, quase sempre no fio da navalha pela persistente falta de dinheiro. Porque em ambos era sentida a necessidade de não estabelecerem quaisquer compromissos com o lado mercantil do mundo da Arte.
A separação também foi tudo menos convencional: percorrendo a pé 2500 quilómetros na Muralha da China durante três meses, foi aí que um tomou a direção do ocidente e o outro a contrária.
Após a rutura Ulay sempre continuou a viver na sombra desse período de partilha com ela, prosseguindo o trabalho sobre o corpo em suporte fotográfico. Mas com sucesso limitado, porque se manteve nele a intenção de rejeitar os compromissos com o tal mercado de quem sempre se quis ver a léguas. Segundo defende, uma arte que não alie estética à ética, deixa de ter para ele sentido. E está nesse princípio a crítica implícita à ex-companheira, depois fascinada pelo lado glamouroso do mundo da moda, expondo-se na capa das principais revistas dele representativas. Foi assim, que ganhou estatuto de celebridade.
No início de 2010 ousou uma experiência memorável no Moma de Nova Iorque: durante três meses sentou-se numa cadeira, oito horas por dia, sem dizer palavra. Foi a performance «The Artist is Present», que permitiu a milhares de visitantes sentarem-se-lhe à frente e buscarem-se no seu olhar.  Era assim que ela explicava essa peça performativa: “Estamos esgotados por toda esta tecnologia, esta época de não-comunicação. Por esta total impotência em exprimir as emoções e em estabelecer ligações com os outros. Agora o público sente a necessidade que lhe devolvam uma parte das suas próprias experiências. É aí que lhe presto a minha ajuda.”
Hoje em dia ela já não usa a lâmina de barbear para cortar o próprio corpo, como sucedia no início do seu percurso artístico. Em vez de torturar-se, tortura os outros, pondo-os, por exemplo, a contar grãos de arroz durante horas seguidas.
A experiência que, ao princípio, pode parecer divertida, torna-se insuportável ao fim de quarenta e cinco minutos, levando quem a faz a quase sentir-se enlouquecer. Mas passado esse momento complicado, ela assevera atingir-se uma tranquilidade até então desconhecida.
A calma, a paragem, a morte. Todo o seu trabalho tende a preparar esta última. Ela pensa que, à beira da perda da intensidade, gostará de entrar num mosteiro para preparar espiritualmente o seu fim. O que a assusta será a possibilidade de acabar num asilo da terceira idade com tudo o que isso significa de degradação e de impotência. Mas tendo já dito adeus ao sofrimento e à infelicidade, continua a pretender-se intensa: até 2020 são muitos os seus projetos a concretizar um pouco por todo o mundo.


segunda-feira, novembro 28, 2016

(DIM) «The Eichmann Show» de Paul Andrew Williams

Houve um tempo em que foi enorme a minha simpatia pelo povo judeu ao sabê-lo vítima de tantas atrocidades ao longo da sua História. Os crimes contra ele cometidos por inquisidores, por organizadores de progroms e durante o Holocausto, geraram-me a reação compassiva sempre natural para com as vítimas.
O problema é o que tem sido cometido em Israel contra os povos ali instalados, progressivamente expulsos das suas casas e terras, para benefício de colonos ultraortodoxos, cuja reivindicação de legitimidade de direitos assenta numa leitura tão enviesada do seu Livro como os islâmicos fazem do Alcorão. Em termos de fanatismo pouco distingue um jiadista de um sionista radical, ambos tentados ao assassinato como forma de fazerem prevalecer o que entendem ser os seus dogmas.
É por já termos perdido as ilusões quanto ao que é ser judeu no terceiro milénio (onde ficaram os que, em Israel, eram comunistas ou socialistas e se organizavam em kibutz!), que um filme como «The Eichmann Show» suscita reação ambígua. Por um lado é interessante constatar como se torna obsessiva a tentativa do protagonista, Leo Hurwitz, em encontrar uma réstia de humanidade no olhar, na expressão do criminoso nazi, cujo julgamento foi incumbido de filmar.
Sabemos que o realizador tem um passado de marginalização e de sofrimento, incluído que foi na nefanda lista negra do senador McCarthy. Quando o produtor Milton Fruchtman o contratara sabia bem o quanto esse facto pode incomodar os seus patrões, mas insiste por se tratar daquele que considera o melhor realizador de documentários disponível. Mas o filme também revela como a obsessão anticomunista não reside apenas nos EUA, porque as próprias autoridades israelitas pressionam a produção para não entregar uma das câmaras a um operador, que tinha tais simpatias. Conclui-se, pois, que o conceito de Democracia já era assaz ambíguo em Israel em 1961, quando o julgamento decorre. Não foi, pois, preciso chegar aos governos de Begin ou Sharon para ver a política israelita derivar acentuadamente à direita.
Outro aspeto interessante do filme é o da vergonha dos sobreviventes dos campos de extermínio por terem presenciado o clímax do Horror e manterem-se vivos. Nos anos que se seguiram, em vez de verbalizarem os seus testemunhos, tinham-se silenciado, não só porque à sua volta ninguém parecia interessado em conhecer-lhes as provações, mas, sobretudo, pela desconfiança dos que sugeriam comportamentos reprováveis para terem conseguido a salvação negada à maioria dos seus companheiros de martírio.
O julgamento de Eichmann funcionou, pois, como o momento de catarse para as vítimas, enfim capazes de serem donas das suas palavras e de as verem ouvidas.
Ao alternar imagens de recriação ficcional com as reais, rodadas durante o julgamento, Paul Andrew Williams consegue incrementar a adesão à sua proposta interpretativa do vivido por um conjunto restrito de personagens. No entanto ficará sempre a dúvida, quando estamos perante um filme, que suscita intencionalmente a empatia para com os judeus: como é que de vítimas se foram tornar em odiosos algozes?


domingo, novembro 27, 2016

(DL) O Retrato de Roma entre 312 e 1308

Ao passearmo-nos pelas ruas de uma cidade, é inevitável reconhecer-lhe a identidade própria através da arquitetura, da toponímia, dos monumentos, dos linguajares, do trajar, das mensagens publicitárias e de tantos outros exemplos, que a dissociam de qualquer outra.
Roma é inconfundível com qualquer outra metrópole do nosso tempo, tão marcada se revela pelos vestígios do notável passado republicano e imperial.
Richard Krautheimer instalou-se nela em 1933, quando as perseguições nazis o fizeram sair do país onde nascera e estudara. O fascínio foi imediato e pode vivê-lo nos dois anos seguintes. Quando o fascismo mussoliniano se lhe tornou insuportável para a ânsia de liberdade, conseguiu mudar-se para Louisville, nos Estados Unidos, onde iniciaria prestigiada carreira de professor e de investigador concluída em Nova Iorque, onde morreria nos primeiros anos da década de 90.
O intento de fazer a História de Roma no período em que mais influência terá exercido no que viria a ser o Ocidente, ou seja entre 312, quando reinava Constantino e 1303, quando Bonifácio VIII foi deposto e o papado transferido para Avinhão, explica-se, igualmente por, durante todo esse milénio, muitos dos edifícios do passado terem servido de materiais para a criação dos novos, já imbuídos dos valores cristãos e se ter criado o conceito de monumento.
Excluindo o Coliseu e muralhas próprias da época dos Césares, os vestígios mais antigos ainda hoje percetíveis na capital italiana datam do milénio abordado por Krautheimer.
Algo que o autor enfatiza é a perenidade de um ideal de grandeza recolhido do passado distante. Apesar de todos os saques, massacres e conquistas, as diversas populações, que se foram mesclando na condição romana, imbuíram-se dessa sensação recolhida dos vencidos.
Logo de início, Constantino é descrito como o responsável pela criação da ideia de basílica enquanto tradução visual do culto dedicado aos símbolos católicos. O poder dos sucessores, depressa é espezinhado pelo papal, que se dispôs a concentrar a tradição imperial com a religiosa, revelando uma das mais notórias características do período medieval, quando a Igreja detinha um poder desproporcionado comparativamente com o dos reis e demais senhores feudais. Basta atentar em Afonso Henriques para lembrar que um rei só era reconhecido como tal pelo beneplácito papal.
Neste terceiro milénio esse poder ainda se mostra exagerado, mesmo se reduzido à movimentação dos seus prosélitos para contrariar a aspiração dos povos em verem-se libertos de persistentes preconceitos. O que levanta a questão de saber que alterações devem ser promovidas na arquitetura das cidades para deles expurgar o que nelas absurdamente sobrevive: a ideia de um divino, que a todos pretende sobrepor-se.

sexta-feira, novembro 25, 2016

(DIM) 007 com mais dinamite do que substância

Nestes dias de distanciamento dos muitos afazeres, que a vida na Grande Lisboa suscita, dei-me ao prazer de ver um filme da série 007, algo que já não fazia há uns quantos anos.
«Spectre», o mais recente dos que têm em James Bond o seu herói, mantém as características do costume: a total inverosimilhança da maioria das cenas de ação ou da mudança de guarda-roupa dos protagonistas, enquanto cirandam sucessivamente na Cidade do México, em Londres, em Roma, nos alpes austríacos, em Tânger e no Norte de África. Há as bond girls - sempre concupiscentes (neste caso marcam o ponto a Monica Bellucci e Léa Seydoux!) e o habitual desenvolvimento da intriga em que, quando parece tudo perdido, ocorre a reviravolta, que faz vingar a inteligência e a capacidade física do agente com ordem para matar.
No caso específico deste filme o argumentista meteu-lhe uma reedição do confronto bíblico entre Abel e Caim, enquanto trata de pôr Bond na pele de um Edward Snowden mais desenvolto contra o controle orwelliano, a que as agências secretas, de mão dada com interesses simultaneamente mafiosos e capitalistas, querem sujeitar toda a Humanidade.
Convenhamos que é demasiada dinamite - há explosões à farta! - para tão pouca substancia, mas o habitual consumidor da marca 007 sentir-se-á confortado com o reencontro de todos os seus estereótipos.
Há, no entanto, a consciência de um envelhecimento da identidade do personagem, que pode, igualmente, ser visto como um cultor do old fashioned contra as modernices digitais.
Fica a sensação de tratar-se de mais do mesmo com tendência para suscitar o tédio, se não mesmo o bocejo. É que, às tantas, as coisas que não mudam acabam por enjoar, sobretudo quando tanta novidade nos apela em cada dia.
No final deste 24º título da série fica a sensação de que, não havendo mais nenhum, o final poderia ser perfeitamente aceite como o do seu conjunto. Porque Bond sai de cena com Léa Seydoux, que o tinha posto na condição de escolher entre ela e a carreira de espião...


quinta-feira, novembro 24, 2016

(DL) A visita de Valter Hugo Mãe a Aokigahara

Não me é difícil imaginar o respeito com que o escritor terá abordado a floresta no sopé do monte Fujiama.
Ter-lhe-ão contado tratar-se de sítio sagrado onde, após longa maturação, os suicidas vão pôr fim aos seus dias. Sentiu o respeito pela coragem de ato tão nobre, um reencontro com a Natureza de acordo com os credos locais. Sem ponta de desespero, porque imbuído do seu absoluto oposto: o apaziguamento. A consumação de uma vida, que se sentiu como definitivamente vivida.
O escritor não terá sentido qualquer tentação voyeurista. Não imaginou encontrar quem acabara de pendurar-se com um laço no pescoço ou com a lâmina enterrada no ventre a sangrar.
Vergonha terá sido antes o sentimento, que agora confessa ter tido. Porque na condição de ocidental via-se incapaz de entender na plenitude o simbolismo dos que ali se fazem protagonistas da decisão quanto a porem fim aos seus dias.  Indiferentes às campanhas lançadas pelas autoridades para os demoverem de tal gesto.
E, por isso mesmo, depois de Angola, onde nasceu, das Caxinas onde passou a residir, ou da Islândia,  cujo fascínio lhe rendera um romance, o escritor voltou a sentir que aquele lugar, situado no outro lado do mundo, acabava por lhe dar nova sensação de incompletude, estimulante o suficiente para o colocar na rota de outros tão fascinantes quanto aquele. Na esperança de encontrar o seu próprio Lugar. Ou talvez não, que o interesse de tudo reside mais na procura de o conseguir do que na satisfação de, enfim, o conquistar.


quarta-feira, novembro 23, 2016

(DL) Um homem imprudentemente poético a falar dos seus iguais

Confesso que, comparativamente com os quatro romances anteriores, «O Filho de Mil Homens» e «A Desumanização», não me conseguiram entusiasmar da mesma maneira, levando-me a rever a tese de estar em Valter Hugo Mãe o mais merecedor dos romancistas contemporâneos a empunhar o testemunho deixado por José Saramago. Tendo em conta outros entusiasmos concomitantes (João Tordo, Ana Margarida de Carvalho, Pedro Eiras, entre outros) deixei ficar em suspenso a minha escolha para esse reconhecimento.
A explicação para essa relativa desilusão - apesar de se tratarem de livros sempre muito bem escritos! - terá alguma explicação no que o autor explicou a Luís Caetano em excelente entrevista à Antena 2: a escrita continua a ser para ele um esconderijo, uma espécie de defesa face ao mundo. Não se trata de o negar, mas de o tentar conhecer melhor. Por isso mesmo a escrita funciona como uma mundividência, que ele espalha em seu redor, sempre porfiando em regenerar-se de acordo com a sua fúria pelo novo.
Cada livro representa, pois, perigar-se ao escolher vias anteriormente não exploradas. E aqui cabe o reconhecimento do mea culpa: porventura não apreciei tanto os seus romances de 2011 e de 2013, porque pretendia encontrar neles uma continuidade do que tanto me agradara nos anteriores e fiquei atordoado com o que descobria de diferente. Daí que ponha em dúvida se o meu juízo terá sido justo e não exprimiu um “conservadorismo” no gosto, que desejaria não confirmar. Porque também eu ando sempre à procura do que me possa surpreender, impressionar, inquietar, incomodar, e isso só é possível com o que de inédito me sensibilize.
Estou, pois, expectante perante «Homens Imprudentemente Poéticos», que o representante do Círculo de Leitores prometeu levar-me à porta tão-só regresse a casa. Predispondo-me a lê-lo com maior assertividade até porque é passado num país de que gosto tanto como o autor: o Japão.
Das várias vezes que ali estive, recebi mostras dessa cordialidade tão elogiada pelo Valter Hugo Mãe tanto mais que expressa por um povo ainda há um século caracterizado pelos valores dos samurais, invariavelmente agressivos para com os estrangeiros, que consideravam uns bárbaros. Do total fechamento sobre si mesmos até esta predisposição para receberem afavelmente quem os visita, decorreu um lapso de tempo muito curto, que incluiu os traumas da guerra e as sequelas das agressões nucleares de que foram vítimas. Hoje são muitos os testemunhos sobre o contentamento e a disponibilidade para estarem com o Outro, seu diferente.
Senti-o isso em Miike, quando o «Fernando Pessoa» ali atracou, e tratando-se da primeira visita de um navio àquele porto, chegou a bordo uma comitiva constituída não só pelas autoridades políticas locais, mas também as culturais, mormente o diretor do museu que continha testemunhos da chegada dos nossos antepassados ali no século XVI. Que receção a que eles nos facultaram: ainda hoje guardo com gratidão as singelas oferendas com que fui recompensado, nomeadamente um baralho de cartas, que terá sido um dos legados ali deixados pelos nossos distantes antecessores.
Ou, noutra ocasião, em Tóquio, quando fui o único tripulante a desembarcar para apanhar o avião de regresso à Europa e um japonês igualmente chegado ao cais da lancha que ali me deixara, me ajudou a carregar as malas atá ao táxi sem para tal o solicitar. Apenas por desinteressada simpatia. Despedindo-se com votos simpáticos de boa viagem.
Por tudo isso, convenço-me de que terei um enorme prazer em descobrir o novo título do autor de «o apocalipse dos trabalhadores». E em comungar com ele o fascínio por tal civilização.

terça-feira, novembro 22, 2016

(AV) Os desenhos tridimensionais de Monika Grzymala

Podem-se fazer esculturas aéreas com materiais tão leves como o são as fitas adesivas, as películas autocolantes ou o papel? A resposta é afirmativa, mas comporta uma dificuldade: têm de ser criadas nos locais onde irão ser expostas, porque impossíveis de transportar.
O seu trabalho criativo passa, pois, por instalar-se no local para que se vê convidada e aí apossar-se do espaço, refletindo na obra em construção, à medida que ela vai nascendo.
O resultado é de uma complexidade singular dentro da ligeireza e da efemeridade de tais peças, que ela designa como desenhos tridimensionais.
Mas nem sempre foi essa a sua opção criativa. De origem polaca, daí o apelido Grzymala, Monika começou por trabalhar a pedra depois de estudos nas escolas de belas artes de Karlsruhe, Kessel e Hamburgo.
O fascínio pela imaterialidade das suas criações sobrepôs-se à medida que se ia desinteressando do que lhe possibilitavam as pedreiras onde, com colegas de escola ou de ofício, se instalava provisoriamente.
Antes já vivera uma rutura com os caminhos para que se julgara talhada, porquanto antes de chegar às artes, ainda conjeturou enveredar pelos estudos de medicina.
Hoje já é uma das mais reconhecidas artistas do nosso tempo com instalações expostas em sítios tão diversos como o Moma de Nova Iorque ou os museus de arte contemporânea de Tóquio ou Reiquiavique.
Uma vez mais os artistas do nosso tempo vão-nos surpreendendo com a originalidade das suas propostas estéticas.


(EOS) A história de Alvar e de Ingeborg

A inesperada aventura ocorreu-lhes há décadas, mas ainda os perturba. Porque nunca teriam sequer chegado a casar, quanto mais alcançar as bodas de ouro há pouco comemoradas com a numerosa família.
Um dia, quando a guerra parecia estar a acabar, e os alemães prestes a partir, eles tinham-se demorado numa festa até tarde e, quando acordaram, já a hora de partida do ferry para a outra margem do lago  Tinnsjø tinha passado. Ao olharem pela janela constataram-no, porém, ainda atracado ao cais.
Num ápice vestiram-se e correram que nem uns desalmados. Foi só o tempo de subirem o portaló e já o comandante dava ordem de partida.
Foram então para o salão de bordo onde estavam os demais passageiros já instalados, uns a dormitarem, outros a lerem o jornal da manhã.
As máquinas puseram-se em movimento e a respiração de ambos já se normalizara o suficiente para, tão discretamente, quanto possível irem trocando beijos, enquanto planeavam a urgência do casamento para legalizarem o que ainda se obrigavam a esconder.
Passados tantos anos nenhum deles pode situar quanto tempo decorrera desde o início da viagem. Só podem asseverar ter sido no sítio onde o lago se faz mais profundo. Um enorme estrondo, o barco todo a abanar e o medo súbito a dar-lhes conta de nenhum futuro se abrir à sua frente.
Acorreram ao convés e a inclinação  prenunciava o pior.
Temos de saltar, propusera ele. Mas foi imediata a recordação do que ela já lhe confidenciara: nunca aprendera a nadar.
Salta, que eu vou atrás. Havia tanta veemência nas suas palavras, que ele acreditou na veracidade e no que lhe caberia, então, fazer: tê-la junto a si a flutuar até algum socorro os vir salvar.
Por isso saltou sem saber que ela já se conformara em aceitar as circunstâncias, deixando-se arrastar pelo navio até ao fundo.
Não foi isso, porém, que aconteceu: sem saber explicar como, quando as águas se abriram para se consumar o naufrágio algo as fez rejeitarem-na. Se fosse crente nalguma religião teria ali a melhor prova da existência de uma qualquer entidade divina. Mas só se lembra de estar à superfície e com um barril bem perto a que se agarrar.
Pouco depois ouviu um arrastão de pesca a aproximar-se e a puxá-la para a ressurreição. Procurou à volta e não viu o namorado, mas ele já fora recolhido por outra embarcação de pesca.
Na margem os partisans comemoravam o feito, mesmo que à custa de algumas vidas inocentes: a água pesada que, a bordo, se destinava a Berlim, nunca chegaria às instalações onde os cientistas andavam a preparar o engenho nuclear com que Hitler contava virar o curso da guerra.
Agora, a olharem para a câmara que os insta a recordar os factos, Alvar e Ingeborg reconhecem a sorte de se terem escapado de um daqueles casos em que se haviam visto  no local errado á hora errada.

segunda-feira, novembro 21, 2016

(DL) «A Tempestade» de William Shakespeare (II)

A atmosfera de «A Tempestade» parece purificada por um furacão. O cenário da ação fica na margem solitária de uma ilha sacudida pelas ondas, banhada por uma luz doce e harmoniosa. É nesse ambiente sereno, que se ouvem as vozes sobrenaturais. Graças a essa cumplicidade dos céus, a ilha parece ter sido tomada pela graça divina. Tão suave influência celeste confere solenidade a uma representação sagrada inerente aos acontecimentos ocorridos perante os nossos olhos num curto lapso de tempo. Esta é, aliás, a única peça de Shakespeare que se insere na famosa unidade de lugar, tempo e ação.
Ainda que se possa suspeitar de que Shakespeare não tenha lido o «Purgatório» de Dante, o clima do drama lembra o da ilha imaginária concebida pelo poeta italiano. Mas há algo de semelhante às «Euménides» de Ésquilo.
Para todos esses escritores a justiça decorre de um ritual de expiação. O tom é o mesmo, o da indulgência. E, igualmente, uma mesma visão do mundo expressa em termos de ordem e de harmonia: a música de Ariel, os hinos cantados pelas almas do Purgatório, o som da cítara de Apolo.
Depois de «Hamlet», «A Tempestade» é o drama de Shakespeare, que suscitou maior número de estudos. Quer nas tiradas líricas de Ariel, quer nos discursos de Prospero, sente-se que o autor, pela boca dos seus personagens, dirige-se ao mundo e exprime a sua própria cosmogonia. Por isso será porventura o mais pessoal dos seus escritos, sobretudo quando diz a célebre frase: “Somos feitos da mesma matéria que os sonhos e a nossa curta vida cinge-se a um deles”.
As personagens de «A Tempestade» elevaram-se até hoje a uma dimensão mítica, infinitas vezes representadas, citadas, encenadas, que encarnam e simbolizam uma plêiade de comportamentos e sentimentos humanos. Muitas vezes Ariel e Caliban replicaram os povos primitivos e os escravos que serviram de meros joguetes das estratégias das potências coloniais, sem chegarem a compreender o que com eles pretendiam alcançar.

domingo, novembro 20, 2016

(DIM) «Sabotage» de Alfred Hitchcock (1936)

Se se encontrasse alguém que, por absurdo, desconhecesse a obra de Alfred Hitchcock, este filme de 1936 constituiria um excelente ponto de partida. Porque nele já se encontram muitas das características da sua filmografia: em primeiro lugar o recorrente fascínio pelos objetos - uma gaiola de pássaros, uma faca, uma bobine de filme que irá explodir - captados em sucessivos grandes planos inquietantes, associados a um misticismo simbólico, que nos interroga. Depois o desprezo pela verosimilhança, pois quem poderá acreditar na descontração com que a heroína se põe a comer carne assada um quarto de hora depois de ter perdido o irmão de 12 anos numa explosão? Ou quem acreditará na vontade de um polícia descobrir o culpado de um crime por mera paixão para com uma rapariga conhecida momentos anos? Quem acreditará que se confie a execução de um ato terrorista a um arruinado homem do cinema?
Há ainda a sempre presente capacidade para utilizar o som como um personagem à parte, quer utilizando os sons dos canários, os dos passos a pisarem o pavimento, criando-se assim uma crescente tensão. Ou o amor assexuado, ainda que esse mesmo sexo surja amplas vezes sugerido como, por exemplo, no plano em que uma faca se enterra num ventre. Especifico deste filme, mas muito sugestiva é a definição da família, pois todas as crianças estão privadas do pai ou da mãe, e os progenitores tendem a arrastar os filhos para temíveis perigos.
Igualmente frequente em Hitchcock essa identificação da polícia como garantia de defesa da ordem, mas de forma tão cega, que chega a pôr em risco a relação amorosa dos protagonistas. E há, sobretudo, a direção brilhante do realizador como acontece na cena do homicídio com a faca em que se sucedem diversos planos mudos e curtos em que os olhares se cruzam e se evitam, fixam-se num objeto ou numa cadeira vazia permitindo situar os diversos personagens, juntando no mesmo plano um casal que se irá dissociar. Está aí uma das cenas antológicas da sua filmografia com a conjugação do som, da iluminação e das interpretações dos atores, recorrendo a grandes planos, a campos e contracampos, que a tornam impressionantemente bela no desenlace final.
Refira-se ainda a famosa cena, doravante lamentada como sendo imoral por Hitchcock, sobre o miúdo a brincar descontraidamente por Londres com a bomba programada para explodir a determinada hora. Nomeadamente no minuto seguinte em que o vemos a divertir-se com um gatinho vadio. A montagem é perfeita, a tensão levada ao paroxismo, ou seja uma sequência que não mais esqueceremos.
E, a concluir, apontemos para a constante declaração de amor à sétima arte, com a protagonista a reconfortar-se um instante com um filme de Walt Disney, a utilização subtil da sala de cinema passando-se para trás da tela para melhor espiar os terroristas e os encontros marcados para plateias repletas de espectadores, sem esquecer a nostalgia pelo tempo em que era obrigatória a ida da família ao cinema aos domingos à tarde.

sexta-feira, novembro 18, 2016

(DL) «A Tempestade» de William Shakespeare (I)

Das obras de William Shakespeare esta é uma das peças, que mais prefiro, talvez por a ter abordado pela primeira vez através da belíssima adaptação cinematográfica de Peter Greenaway («Os Livros de Próspero») e da correspondente banda sonora de Michael Nyman.
Escrito em verso e prosa, este drama em 5 atos terá sido criado em 1611, mas só se lhe conheceu publicação em 1623. O autor parece ter sido influenciado pela commedia dell’arte italiana, que teria anteriormente tratado de várias histórias similares e às quais associou os detalhes relativos ao naufrágio de Sir George Somers nas Bermudas em junho de 1609. Existe, ainda, uma outra possível influência de um velho conto espanhol intitulado «La gran conquista del Ultramar y la Historia de Niceforo y Dardano».
«A Tempestade» é obra da fase final da vida do autor e ele volta a fazer uma utilização intensiva do maravilhoso com elfos e fadas a misturarem-se às intrigas dos seres humanos, tal qual sucedia em «Sonhos de uma Noite de Verão», escrita na primeira fase da sua produção teatral.
A história tem como um dos principais personagens o duque de Milão, Prospero, destronado do trono pelo próprio irmão, Antonio, que o fez embarcar em frágil embarcação com a jovem filha, Miranda, na expetativa de não sobreviverem aos perigos do mar. Mas vão parar a uma ilha desértica apenas habitada pela feiticeira Sycorax e seu monstruoso filho Caliban.
Graças aos seus poderes o deposto soberano liberta uns quantos espíritos ali subjugados, entre os quais se encontra Ariel, e toma a criatura defeituosa como seu criado.
Passam-se doze anos  e eis que Prospero provoca um naufrágio no outro lado da ilha. Nesse barco vinham o usurpador Antonio, o seu aliado Alonso, rei de Nápoles, e o filho deste último, Ferdinando. É aqui que verdadeiramente começa a história, porque Shakespeare condensou numa só cena a descrição dos factos anteriores, que ocupavam três atos no seu «Conto de Inverno».
A maioria dos passageiros do navio naufragado salvam-se, mas julgam definitivamente perdida a vida de Ferdinando, ele próprio convencido do afogamento dos companheiros. Em compensação encontra Miranda ocorrendo uma paixão imediata entre ambos.
No entretanto Prospero instiga Ariel a assombrar António e Alonso causando-lhes o máximo pavor. Mas, enquanto o primeiro não tem remissão, o segundo arrepende-se dos atos que praticara, reconciliando-se com o velho duque e reencontrando o filho.
Graças à magia o barco naufragado volta a estar operacional nele embarcando todos os personagens à exceção de Caliban, designado novo senhor da ilha. Ao abandoná-la Prospero renuncia à magia desfazendo-se da varinha com que a praticava.
A faceta cómica ao estilo do teatro italiano é assegurada pelas numerosas cenas em que Caliban contracena com o bêbedo Stephano e com o bufão Trinculo, ou mesmo naquela em que ele se tenta revoltar contra o usurpador. Mas entre as cenas de farsas e as dramáticas, que com elas alternam, não subsiste a impressão geral de se estar perante uma comédia. Mesmo se a sombria impressão causada pelos antipáticos personagens envolvidos no naufrágio seja compensada pela loquaz franqueza do conselheiro Gonzalo...

(AV) Vamos voltar a espreitar a Lisboa do século XVII

Como era Lisboa entre 1570 e 1620 na época em que um rei estarola, convencido pela falácia de estar à frente de poderoso império se decidiu a empreender uma cruzada contra os mouros, acabando por lhes legar dez mil violas ao sol tórrido das areias do deserto? O aspeto da cidade cosmopolita onde se juntavam mercadorias e gentes de todos os continentes foi captado por um pintor nórdico cujo nome já ficou esquecido, mas constituirá o foco da exposição a inaugurar no museu de Arte Antiga em 26 de janeiro depois de ter estado anunciada para daqui a oito dias. As duas telas em causa eram apenas uma na origem, mas o poeta e pintor pré-rafaelita Dante Rossetti ficou tão encantado com o exotismo dos negros nela representados, que não tendo quarto onde a pendurasse decidiu cortá-la ao meio.
Para nós essa capital pré-terramoto continua a motivar-nos grande interesse, como se ela equivalesse a algo de poderoso, que as forças da natureza terão definitivamente destruído. Por isso adivinham-se grandes filas de visitantes nessa nova proposta da instituição das Janelas Verdes, com tudo o que de negativo comportam esse tipo de sucessos: sérios riscos de torcicolos à conta de porfiar na apreciação de uma nesga de quadro por entre a confusão de cabeças à nossa frente.
Por isso bem gostaria que se repetisse aquela iniciativa da Gulbenkian há uns anos quando, numa exposição dedicada a Amadeo, decidiu mantê-la aberta durante toda a noite. É que, diz-me a prática, acaba por ser bastante mais compensadora a experiência de apreciar arte ás quatro da manhã. 

quinta-feira, novembro 17, 2016

(DL) «A Fronteira» de Pascal Quignard

Há um quarto de século o escritor francês Pascal Quignard deu conta, em livro, do fascínio nele suscitado pelo Palácio de Fronteira.
Constituindo um dos mais belos monumentos do século XVII é também dos que mais surpreende pela qualidade, e sobretudo, originalidade temática dos azulejos. Estes, já datados do século seguinte, apresentam animais a travestirem a vida quotidiana em alegorias burlescas ou satíricas, presenças silenciosas, inquietantes ou fantásticas.
A história contada nesta pequena novela ressuscita os enigmas das sombras dessa época e decifra-as na revelação de uma dupla vingança.
Um dos protagonistas, o francês Jaume, é dos maiores salafrários do seu tempo. Com o seu grupo de amigos investe as redondezas de Lisboa e viola as mulheres, que encontra suficientemente desprotegidas para lhe escaparem aos ardores da libidinosidade.
Há, porém, uma frustração que o obceca: a bela Marquesa de Alcobaça escusou-se a desposá-lo e, como vingança, ele mata-lhe o marido a coberto de um crime quase perfeito.
Iludida pela falsa amizade que ligara Jaume ao defunto a quem até supostamente tentara salvar do ataque celerado de um javali, a viúva permite-lhe o assédio e acaba-lhe nos braços poucas semanas depois da tragédia.
O pior para ele veio depois: a amante começa a ter sonhos recorrentes sobre esse episódio de caça com a verdade a aproximar-se noite após noite. A verdade acaba por prevalecer e ela vinga-se, capando-o e deixando-o exangue na correspondente hemorragia.
Apesar da dimensão reduzida da história, Quignard não a cinge a esse triângulo amoroso, porque rodeia-o de um conjunto de outros personagens não menos interessantes, como é o caso do Rei João IV, acabado de sair vitorioso das guerras da Restauração ou o marquês de Fronteira em cuja casa - então ainda em morosa conclusão - se passam muitos dos momentos mais significativos da intriga. Eros assume aqui o seu lado mais violento com a paixão e os seus instrumentos a serem sacrificados num fatal combate entre o amor e a morte. Por isso mesmo acaba por constituir uma metáfora do tema do olhar com a castração a tornar-se na sanção do desejo viril condenado ao vazio.
No final do romance Quignard põe o regente Pedro II (também ele envolvido numa conspiração para roubar o poder e a mulher a um rival, neste caso seu irmão) a comentar para o príncipe da Toscana, Cosme de Médicis, a quem serve de cicerone na visita ao Palácio: “O homem está perdido nos seus desejos como as caravelas nos novos mundos. Como o que sonha fica perdido no seu sonho”.