terça-feira, agosto 30, 2005

«DE TANTO BATER O MEU CORAÇÃO PAROU» de JACQUES AUDIARD


Aqui não há lugar para maniqueísmos nem para soluções estereotipadas. Entra-se num ambiente de quase guerra civil entre agentes imobiliários e squatters, aonde a violência está presente em cada dia.
Tom (um excelente Romain Duris) não tem escrúpulos em agredir ou em tornar inabitável os espaços pelos quais pretende fazer negócio. Os dias passam-se entre o escritório, os prédios em ruínas objecto do seu interesse e as discotecas aonde acaba por se embriagar e arranjar quem com ele passe a noite.
No seu meio é tido como um agente de sucesso, a exemplo do pai, ele próprio um empresário do mesmo ramo.
Uma noite o seu percurso de regresso a casa vai suscitar a perturbação no seu futuro imediato: à porta de uma sala de concertos vê Fox, o antigo agente da mãe. Sabe-se depois que Sónia fora uma pianista prometedora a quem o stress de não alcançar o som pretendido havia contribuído para um desenlace trágico.
E Fox, que dele se recorda como um miúdo talentoso, convence-o a vir a uma audição ao seu estúdio.
Eis um desafio que agrada a Tom: embora tenha abandonado o piano desde a morte da mãe, ele considera-se capaz de passar nesse exame. Consegue, para tal, a colaboração de uma pianista chinesa, recém chegada a Paris no âmbito de uma bolsa, e que se torna sua professora. Apesar de só falar chinês…
Numa abordagem típica do cinema hoje produzido em Hollywood não seria difícil imaginar o que se seguiria: do esforço resultaria um sucesso quer artístico, quer pessoal com a redenção comportamental do protagonista.
Audiard não facilita assim tanto: se é certo que começa a existir uma má consciência de Tom sobre o tipo de atitudes a que se vê profissionalmente obrigado (a última acção contra os squatters num prédio não têm dele o empenho de outrora), mas existem limites nesse tipo de redenção: por exemplo, acaba por revelar à mulher do colega a sua função de álibi para que ele a traia, mas acaba por dormir com ela…
E se acaba por se reciclar em agente da sua professora de música, os velhos fantasmas continuam-no a agitar: quando lhe surge a oportunidade de matar o mafioso russo, que lhe matara o pai, só hesita quando se trata de puxar pelo gatilho da pistola, porque o deixa muito mal tratado na escada de emergência para onde o empurrara…
À saída da sala talvez seja significativo um certo incómodo de quem o acabou de ver: não é um policial em que os bons prevaleçam sobre os maus, não existe uma história romântica em que nos possamos embalar e, quando se trata de abordar a arte musical, os personagens podem ter um destino trágico, padecer de esquizofrenia ou de paranóia, mas costumam compensar tudo
isso com a sua genialidade. Ora, aqui, o filme tem por protagonista um instrumentista banal como existem milhentos…

segunda-feira, agosto 29, 2005

BENOÎT MANDELBROT E OS FRACTAIS

Benoît Mandelbrot inventou os «fractais» como ferramentas necessárias à explicação de um mundo caótico e infinitamente complexo. Numa entrevista ele explica:
Um fractal, termo forjado a partir da palavra latina «fractus», significa «irregular» ou «quebrado», é uma forma geométrica de estrutura complexa e irregular que se pode dividir nas mais minúsculas porções, mas cada uma a reproduzir em pequena escala a forma do todo. Cada parte tem, pois, uma estrutura semelhante à do conjunto, como se um detalhe representasse a totalidade em dimensão mais reduzida.
Foi com base nesta intuição (os ramos de uma árvore são, em si, pequenas árvores completas, assim como todos os fragmentos de uma rocha são semelhantes à massa dela no seu todo) e no do princípio da invariância, chave fundamental da ciência porquanto confere aos objectos descritos com a ajuda de um número fractal propriedades bem definidas, que Mandelbrot construiu a sus teoria. Com aplicações em domínios tão diversos quanto o são a biologia, a meteorologia, a informática e as artes plásticas.
(Nouvel Observateur, 4/8/2005)

domingo, agosto 28, 2005

«LE DEUIL DE LA VIOLENCE» de OLIVIER LASSU


Aconteceu sempre na história humana: o homem sempre causou indizíveis sofrimentos no seu semelhante. Refinando na crueldade contra essas vítimas, que, muito dificilmente, se libertarão do correspondente trauma.
Olivier Lassu aborda seis exemplos de vítimas, sujeitas a diferentes tipos de agressão. Buscando aspectos, que lhes sejam comuns, mormente nas formas de superar as consequências psicológicas do que se sofreu.
A começar por Mya, uma miúda de 14 anos, que, entre os 3 e os 6 anos, foi continuamente violada por um meio-irmão. Sendo transferida para uma família de acolhimento, quando tudo se descobriu, como se coubesse a ela a punição de se ver afastada da mãe.
Aparece depois Ahmed, um jovem de Rafah, na Palestina, que quase morreu com as duas balas disparadas ao seu peito por militares israelitas e, desperto do coma de quatro meses, nunca mais conseguiu sair de casa. Uma ilusória protecção contra as temidas forças de Ocupação.
Stéphanie, por seu lado, tem 29 anos e vive em Paris. Há um ano foi violada à saída do Metro por um agressor, que a ameaçou matar naquele momento. Na sua terapeuta, ela coloca a questão: se já fui atacada uma vez, o que impedirá que o volte a ser uma segunda ou uma terceira? A sua maior dificuldade residirá em reencontrar sensações corporais, recuperar a capacidade para alcançar o prazer...
No Canadá vive Jean, que, aos cinco anos, foi resgatado do genocídio do Ruanda com queimaduras graves e as mãos mutiladas.
Apesar dos anos decorridos desde então, ele ainda tem bem presentes as imagens dessa morte à solta à sua volta, que lhe elimina toda a família.
Na faixa de Gaza, o realizador encontra outras crianças palestinianas, de 9 e 6 anos respectivamente, que vivem junto a um dos postos de observação israelita. Colhendo dos dias os sustos de muitos tiros disparados à volta da casa, que se revela precário abrigo…Hoje Alá, que viu o primo Chadi ser assassinado à sua frente, confessa não ter pejos em se vir a converter num mártir...
Ainda assim, o que leva o sorriso aos seus lábios inocentes? Explica um psicólogo que assiste ali a uma hiperadaptação a uma situação anormal: as pessoas procuram manter as suas rotinas, mesmo nessa situação insuportável.
O próprio filme parece contribuir para a catarse dessas pessoas, que perderam a sua identidade anterior. E a quem só resta a criação e afirmação de uma nova identidade…
Deixaram de ser quem eram, mas, em compensação, poderão reencontrar-se naquilo que serão…

sexta-feira, agosto 26, 2005

LIFE WITHOUT DEAD de FRANK COLE (bis)



O Deserto do Sahara ocupa a maior parte da África do Norte. São oito milhões e meio de quilómetros quadrados entre a Mauritânia, na costa atlântica, e o Mar Vermelho no Sudão, com passagem pelo Mali, pelo Niger e pelo Chade. É árido, inóspito e desolador. Com guerras civis entre as várias tribos do deserto por todo o percurso. As carcaças das vítimas do deserto - de camelos a escorpiões - sucumbiram ao calor, à desidratação ou à violência das suas tempestades. O que levaria, pois, alguém a querer atravessar este inferno na Terra e, ainda por cima, sozinho?
No caso do realizador canadiano Frank Cole, as obsessões com o amor à vida e o medo da morte eram razões suficientes. Em 1989, na sequencia da morte do seu avô, ele decide atravessar o Sahara. Leva com ele garrafas de água, medicamentos, as cinzas do avô e uma câmara Bolex equipada com um temporizador. Ao longo da sua viagem de um ano, ele gravou meticulosamente cada detalhe da sua aventura, permitindo-lhe um lugar no Guiness e na história do cinema documental. O seu filme de 90 minutos, que foi montando ao longo de dez anos, é uma espantoso e brilhante homenagem à busca da eternidade.
Cole tivera o seu primeiro contacto com o deserto ainda em criança, quando o pai, um diplomata canadiano, foi colocado no Norte de África. Essa experiência perdurar-lhe-ia durante toda a vida. Considerando essa paisagem como uma espécie de campo de batalha onde poderia combater e vencer a morte. O seu primeiro filme , The Mountenays, um documentário sobre o confronto da modernidade com a vida nos bosques ainda não parece relacionar-se directamente com o que viria a ser o eixo do seu trabalho futuro.
O segundo filme, A Documentary, é um penoso registo visual sobre a morte da avó. Uma antevisão do que serão as suas obsessões posteriores.
O terceiro filme, A Life, tem algumas das brilhantes qualidades, que impressionarão em Life without dead. Cole vai para o deserto, viajando nele de carro com um companheiro, filmando essa experiência, que tratará depois no seu regresso a Ottawa. O filme não tem som, nem diálogo, nem musica, excepto para os próprios sons do deserto: o de um sapato a cair na areia, o do vento ou o do silêncio nocturno. Na estreia em Ottawa, alguém comentaria, que acabara de ver o trabalho de um verdadeiro génio.
Cole embarca, então, para a primeira parte da sua estadia seguinte no deserto. A da preparação intensa para essa viagem entre Nema, na Mauritânia e a costa sudanesa no Mar Vermelho. Consumido pela crença de que a morte é um cancro temporário passível de ser tratado, ele molda o seu corpo e alma à base de exercícios, vitaminas, uma estrita dieta e solidão.
Tal como confessa nas primeiras sequências de Life without death, ele forçara-se à reclusão, para se tornar num tal solitário que nunca pudesse ser derrotado pela solidão.
Encontrei Cole na altura da sua licenciatura em cinema no Algonquin College. Ao contrário dos outros cineastas em embrião, Cole parecia ser o único a dominar essa expressão artística. Por isso mesmo era visto como um superdotado.
Enquanto se desenvolvia, enquanto cineasta, ele começou a interessar-se por outros temas, que o passariam a conotar com uma certa excentricidade: uma dieta radicalmente austera, uma depuração total de objectos na sua vida (a sua casa quase se limitava o estritamente necessário para que pudesse comer e dormir) e, sobretudo, um interesse significativo pela criogenia e tudo quanto se relacionasse com as vias de superação da morte.
Um dia perguntei-lhe:
- Mas, Frank, se todos vivessem para sempre, aonde arranjaríamos espaço para todos?
- Há imenso espaço entre aqui e Toronto!
Ele viveu como filmou a sua vida. Nada com ele era do tipo meias águas. Quando lhe é proposto um mergulho no Rio Gatineau a norte de Ottawa, Cole logo imagina que esse mergulho envolve a travessia do rio. Numa expedição de compras, ele assume que a sua acompanhante não precisa só de uma ou duas coisas perfeitamente práticas, mas de todo um novo guarda-roupa.
A companheira de Cole durante muitos anos, Sónia Hersig refere a sua obsessão por eliminar qualquer gordura naquilo que comia. O que vai ao encontro do testemunho do seu colega cineasta Dan Sokolowski, que o considerava obcecado com a vida.
A primeira viagem ao deserto com a família e a segunda com um companheiro, que recolheira as imagens que viriam a constituir A Life, apenas atenuaram o seu apetite. Ele sabia que, para compreender a morte do seu avô, e o próprio significado da morte em si, ele considerou a urgência de embarcar para uma viagem eivada de perigo e medo. Ele explicou a Sokolowski; «O deserto é o sítio onde me sinto mais vivo». O seu medo da morte era o seu combustível para a vida.
Em 29 de Novembro de 1989, ele sai de Nema com o primeiro dos oito camelos, que o acompanharão durante um ano. Em que se vai manter vivo contra as agruras do deserto. Filmando a experiência ao longo desse percurso, demonstrando os extremos a que um homem determinado pode chegar.
As imagens mais conhecidas do filme - uma cabeça de camelo em contraluz numa noite estrelada, a chegada da polícia vinda da escuridão para o forçar a interromper essa loucura - a marcha lenta, o sol escaldante, intercaladas com as imagens do avô moribundo culminaram num resultado original.
Tom McSorley, director do Canadian Film Institute, acredita que Cole era uma espécie de pintor da paisagem.
Nesse périplo, Cole descobre bastante sobre si mesmo nos momentos de agonia, na sua pele gretada, nas infecções resultantes de beber água contaminada e, sobretudo, com a sua sede.
Numa certa altura Cole compreende «bastaria ter água para me sentir satisfeito».
Noutras alturas, o seu maior receio é o de ser surpreendido por bandidos durante o sono. Daí que passe a noite alerta, com uma faca sempre à mão. «Quanto mais tempo estou no Sahara, maiores as possibilidades de morrer aqui»
Esse receio quase se vem a tornar realidade: « A morte que mais receio é a que ocorra durante o sono … não estar acordado … para a confrontar … para lutar»
Francis Miquet, um amigo que com ele trabalhou na montagem de Life without Death, acredita que o factor medo era uma característica essencial em Cole, quer enquanto cineasta, quer enquanto pessoa. »Ele ansiava por contactar com o perigo e pela aproximação à morte. Claro que ele não esperava morrer na sua derradeira travessia transariana, mas acredito que compreendia os riscos e estava preparado para morrer pró algo em que acreditava.»
Melanie Scott, Take One, 2002

quinta-feira, agosto 25, 2005

«LIFE WITHOUT DEAD» de FRANK COLE


É um documento impressionante sobre a morte. Na primeira pessoa e desde as imagens iniciais, quando deparamos com o cadáver do velho Fred Howard, avô do realizador.
Postado diante desse corpo sem vida está o próprio Frank Cole, de tronco nu, a chorar convulsivamente. Quem lhe dera, confessa, substituir-se na morte àquele velho, que adorara. Há um inconformismo por esse desenlace, que o leva a buscar uma forma extrema de catarse: a travessia do Sahara.
Não uma travessia prazenteira como a de Michael Palin no seu conhecido documentário para a BBC. Em Frank essa travessia constitui um desafio à morte, mediante um sofrimento, que o faça sentir-se invencível…
Prepara-se, então, durante um ano para essa travessia africana entre a costa ocidental e o Mar Vermelho. Praticando musculação, fazendo uma dieta, aprendendo árabe e, sobretudo, habituando-se a uma vida de reclusão.
A câmara, quase como uma extensão de si mesmo, acompanha-o em toda essa evolução. Que tem apenas um fito vivido obsessivamente: encontrar a via para uma vida sem morte.
Em 29 de Novembro de 1989 ele parte de Nema, na Mauritânia. Mas o primeiro embate com o deserto começa por ser traumático: ao beber água contaminada ele contrai uma doença, que o prostra por vários dias. Tanto mais que o seu camelo adoece de uma pata, forçando-o a prolongar a paragem.
A 1 de Janeiro só percorrera ainda 500 dos mais de sete mil quilómetros, que o esperam até à sua meta. E, no entanto, a sua pele já está extremamente irritada pelos efeitos do calor.
O próprio camelo, que o transporta, não parece sentir-se melhor: sob o sol inclemente ele vai libertando os seus gemidos de sofrimento, indiferente aos muitos cadáveres de animais em decomposição, que vão desfilando no percurso.
A noite propicia algum descanso, mas, nessas alturas, mais vivas se tornam as evocações desse avô,
Para chegar a Tombuktu decide não arriscar uma desidratação definitiva e arranja um guia. Mas não tarda a descobrir que esse companheiro conhece do deserto quase tanto como ele. O poço de Kra El Azreg, que os deveria prover em água, revela-se impossível de encontrar, e acaba por ser um nómada quem lhes explica o caminho até outro poço mais adiante.
Até chegarem à antiga capital das caravanas de sal do deserto, vivem dias de sede insaciada e de completa desorientação face à inexistência de quaisquer referências.
É a própria polícia do Mali quem, nessa cidade revela algum discernimento, impondo-lhe uma escolta para a etapa seguinte. Os riscos de um encontro com bandidos do deserto, justifica essa prevenção. Mas, apesar do medo, que sente, Cole suborna os guardas para prosseguir sozinho e cumprir o seu voto de solidão.
A sorte protege-o: apesar de entrar numa região, aonde a guerra entre tribos nómadas e tuaregues esteja inflamada, ele chega a Abalak, no Níger, depois de muitas noites de partilha de riscos com grupos aonde vai sendo acolhido.
É uma das lições, que o Sahara lhe transmite: ali viaja-se em grupo por uma questão de segurança.
A meta seguinte é o oásis de Yogou, que ele procura com o exclusivo apoio da sua bússola. Mas é inevitável a perda da pista de camelos e de qualquer outra sinalização, que o ajude a sentir-se na rota correcta. Em desespero, ele sente a necessidade de não se deixar vencer pelo pânico.
Sem água há vários dias, acaba por encontrar um oásis providencial aonde encontra um consolo provisório. Ao ponto de quase sentir vontade de ficar ali para sempre.
A experiência vale-lhe a confirmação de quão suicida é o projecto de prosseguir viagem sem um guia. Por isso recorre a Malam Seydina, um marabu, que o levará até ao Chade. Mas o visto expirou e os militares de uma brigada travam-lhes o caminho, ordenando-lhes a presença na cidade próxima, Bir Faz, na manhã seguinte.
Atemorizado, o guia foge em direcção ao Níger. Mas Frank prossegue, acabando por ser capturado.
A ameaça física torna-se iminente: a polícia chadiana acusa-o de espionagem e ameaça executá-lo. Depois, a polícia secreta alerta-o para os perigos de uma viagem numa região afectada pela guerra civil e insta-o a desistir.
Só ao fim de vinte e sete dias de reclusão é que cedem à sua teimosia e o deixar prosseguir no seu périplo.
Cauteloso, porém, ele decide desviar-se do deserto para alcançar El Fasher no Sudão. para aí voltar a ser preso pela polícia, julgando-o parte interessada na guerra entre os árabes e os fur.
A instabilidade na região vai-se traduzindo em sucessivas ameaças: numa aldeia é apedrejado por crianças, mais adiante é aprisionado por outra tribo nómada, que lhe exigem os papéis, e logo se vê perseguido por bandidos decididos a matá-lo, valendo-lhe então uma providencial intervenção dos militares.
Impressionam as imagens que capta do seu corpo: úlceras por toda a pele, nódoas negras, sangue seco. E, no rosto, a crispação de dores incessantes. Ele confessa-se fraco, como se estivesse no fim da vida. Aproximando-o do que o avô sentira nessas últimas semanas de vida…
E, no entanto, já não está muito longe do Mar Vermelho. O camelo é que já não está em condições de o levar a esse objectivo: está tão esgotado, que de nada lhe vale os dias de descanso e de pasto, que Frank lhe propicia.
Num desiderato muito semelhante ao de um moribundo, acaba por cair desfalecido, morrendo de exaustão.
O novo animal, que compra numa aldeia, é-lhe roubado nessa mesma noite. Alertada, a polícia persegue o ladrão, que abandona o animal para melhor se escapulir.
Tem sorte. No olhar dos polícias, Frank suspeita de um forte desejo de morte.
Acaba, enfim, a viagem numa praia. Reencontrando inúmeras carcaças de animais. Mas essa chegada não lhe dá grande alívio: ele queria vencer a morte e confrontara-se com ela durante as longas semanas em que percorrera o continente.
No entanto, essa obsessão não conheceria diluição nos anos seguintes. Por isso a legenda final é elucidativa: sempre assombrado pela morte ele decidira regressar ao Sahara nove anos depois. Acabando aí assassinado por bandidos em Outubro de 2000, a leste de Tombuktu.

quarta-feira, agosto 24, 2005

«O REGRESSO», UMA HISTÓRIA INQUIETA DE JOSEPH CONRAD (2)


Um teste irá decidir sobre o futuro do casal. Mas, quando Alvan tenta a relação sexual com a mulher ela irá escusar-se. Será essa atitude, que a levará a decidir-se:
Estava no meio do quarto antes de ter podido ver outra coisa além do brilho incandescente da luz; e depois, destacado e como que flutuando na luz apareceu, ao nível dos seus olhos, a cabeça duma mulher. Ela deu um salto quando ele irrompeu no quarto.
Por um momento contemplaram-se mutuamente, mudos, estupefactos. Os cabelos da mulher, soltos sobre os ombros, brilhavam como ouro polido. Olhou para a candura insondável dos seus olhos. Não havia nada por dentro — nada — nada.
Gaguejou um tanto descontrolado: — Preciso... preciso... de... de... saber... O olhar cândido da mulher cobriu-se de sombras; sombras de dúvida, de suspeição, a suspeita fácil dum antagonismo inextinguível, a desconfiança impiedosa do eterno instinto de defesa; o ódio profundo, irracional, incompreensível contra uma emoção abominável que vinha introduzir o seu grosseiro materialismo no combate espiritual e trágico dos seus sentimentos.
— Alvan... eu não suportaria isso...—começou a arfar. — Tenho direito... direito... a mim mesma...
Ele ergueu o braço e ficou com um ar tão ameaçador que ela parou, receosa e recuou ligeiramente.
Ficou de braço no ar... Os anos passariam — e teria de viver com aquela inocência insondável onde flutuavam sonhos de suspeita e de ódio... Os anos passariam — e nunca saberia — nunca confiaria... Os anos passariam sem fé nem amor...
— Podes suportar isso? — berrou, como se ela tivesse ouvido todos os seus pensamentos.
Parecia ameaçá-la. Ela pensou em violência, perigo — e só por um instante duvidou se havia na terra esplendores suficientes que pagassem o preço duma tão brutal experiência. Ele gritou-lhe outra vez:
— Podes suportar isso? — Era o olhar dum louco. Os seus olhos acenderam-se também. Não ouvia o clamor terrível dos pensamentos dele. Julgava ver um arrependimento repentino, um novo acesso de ciúmes, um desejo desonesto de evasão. E com um grito de cólera respondeu:
— Sim!
Ele era sacudido como se lutasse por se libertar de amarras invisíveis. Ela tremia da cabeça aos pés.
— Pois bem, eu não! — Estendeu os braços como se estivesse a afastá-la de si e saiu do quarto. A porta fechou-se com um estalido metálico. Ela deu três passos rápidos para a porta e ficou imóvel, a olhar para o dourado e branco da porta. Nenhum som vinha do outro lado, nem murmúrios nem suspiros; nem sequer se ouviam passos lá fora no tapete espesso. Era como se tivesse expirado logo que partiu — como se tivesse morrido ali e o seu corpo tivesse desaparecido ao mesmo tempo que a alma. Pôs-se à escuta — a boca aberta, o olhar vago. Então, em baixo, muito lá no fundo como se fosse nas entranhas da Terra, uma porta bateu pesadamente; e aquela casa vibrou das fundações ao telhado, mais do que vibraria com a voz do trovão.
Nunca mais regressou.

terça-feira, agosto 23, 2005

BARENBOIM E A WESTERN EASTERN DIVAN ORCHESTRA


Em 1999, Edward Said e Daniel Barenboim reúnem um grupo de músicos árabes e israelitas, assim como um punhado de artistas alemães para um concerto em Weimar por ocasião do 250º aniversário do nascimento de Goethe: uma experiência audaciosa em que participou, igualmente Yo-Yo Ma.
O nome da orquestra é retirado de uma antologia poética de Goethe, intiulado «O sofá ocidental-oriental», que recorda como o poeta alemão se interessava pela Pérsia e pelos países árabes.
O realizador Paul Smaczny acompanhou a orquestra desde a sua criação. Mostra os diferentes ensaios, a viagem de Barenboim ao Próximo Oriente em Maio de 2004 e o concerto dado em Rabat na presença dos membros da família do rei.

ENTREVISTA COM DANIEL BARENBOIM
Desde 1999, com os seus jovens músicos, dá o seu contributo ao diálogo entre Israelitas e Palestinianos. Como lhe aconteceu a ideia de criar nesse ano uma orquestra em Weimar?
Weimar simboliza para mim o que há de melhor e de pior na história alemã. O melhor é Goethe, que viveu aí durante muito tempo, e o pior é o campo de concentração Buchenwald situado a apenas cinco quilómetros de Weimar. Em 1999, esta cidade foi a capital cultural da Europa. Bernd Kaufmann, o delegado geral encarregado das actividades culturais da cidade, consagrou muita da sua energia a conceber um atelier musical ao quald emos o nome da obra poética de Goethe, «O Divã Ocidental– Oriental». Foi ele quem teve a enorme tarefa de estabelecer contactos do Cairo a Amã , passando por Damasco.
Que eco teve o vosso apelo?
Tivemos duzentas candidaturas provenientes do Egipto, da Jordânia, da Síria, de Israel e do Líbano. Fiquei agradavelmente surpreendido com a qualidade dos intérpretes e pensei que pudéssemos ir além de um pequeno atelier de música de câmara. Tanto mais que a maioria destes jovens músicos nunca tinham tido
experiência de orquestra.
Como conseguiu fazer evoluir essa estrutura de um pequeno atelier para uma orquestra permanente com tournées frequentes pelos quatro cantos do mundo?
Foi difícil. Porque, em 1999, nós tínhamos uma situação de «paz fria» entre o Egipto, a Jordânia e Israel, enquanto que Israel estava em guerra com o Líbano e com a Síria. Quer na Síria, quer em Israel, a lei proíbe aos seus cidadãos contactos recíprocos. Foi também o caso entre os Palestinianos e os Israelitas. Estes jovens músicos mostraram muita coragem ao virem trabalhar connosco. Quando foi rodado o documentário «Nous ne pouvons qu’atténuer la haine» muitos de entre eles tinham medo de mostrar o seu rosto á câmara.
O intelectual palestiniano Edward Said, falecido em 2003, trouxe-lhe um grande apoio…
É um homem insubstituível em todos os aspectos, que desapareceu. Alguém que sabia estabelecer laços entre todos os elementos que tocam o ser humano. Era um grande especialista da literatura, um músico que, a exemplo dos grandes vultos da Renascença, pensava em termos de interdisciplinaridade, sem renegar a sua própria identidade ou criticar a de outros exilados do mundo árabe. Ele compreendia o papel fundamental, que desempenha a música.
Como pode continuar com a orquestra?
No ano seguinte, Weimar já não era capital cultural e passámos por dificuldades financeiras. Recebemos um apoio da Chicago Symphny Orchestra, que dirijo desde 1991, mas em 2001 decidi fazer uma pausa de um ano para reflectir a sequencia a dar ao projecto - e também porque detesto a rotina e a recondução automática de certas iniciativas. Ademais, a segunda Intifada estava a começar e tudo parecia complicar-se. Foi então, que recebi uma chamada telefónica de Espanha, mais exactamente do governo autónomo da Andaluzia a oferecer-nos um enquadramento ideal para o nosso projecto, incluindo no plano financeiro, que nos levou a estabelecer a nossa sede em Sevilha.
Para o concerto de Ramallah o governo espanhol entregou a todos os membros da orquestra passaportes diplomáticos espanhóis, para facilitar a entrada na Cisjordânia...
Sim, considero-o um gesto visionário. Tanto mais, que as representações da França, da Alemanha e de Espanha em Ramallah ajudar-nos-ão quanto às questões do transporte. Porque não é possível chegar de avião á Palestina, vendo-nos obrigados a transitar por Israel ou pela Jordânia. Acreditem-me que é mais difícil de organizar um concerto ali do que em Paris.
Porque quis actuar precisamente em Ramallah?
Optámos por Ramallah porque acreditamos poder emitir dessa forma um sinal muito forte no sentido da solidariedade entre os homens. Não somos responsáveis políticos, queremos apenas lutar contra o desconhecimento mútuo. O que se passa actualmente custa-me muito. Estamos confrontados com uma situação de assimetria porque nenhuma nação ocupa desde 1967 territórios, que são reivindicados por outros.
Após a criação do Estado de Israel em 1948, a sua mãe desejou que toda a família deixasse Buenos Aires para emigrar para Israel. Em que é que o Israel de hoje é diferente do da sua infância?
Na época, Israel era um país povoado por pessoas que tinham sofrido terrivelmente, sobrevivendo ao Holocausto e aos progroms russos. Incrivelmente idealistas. Tinham o olhar virado para o futuro e queriam participar na construção deste país. A ruptura aconteceu em 1967 coma Guerra dos Seis Dias, porque transformámo-nos desde então, numa força de ocupação. Nenhum povo, incluindo o povo judeu, tem o direito de dispor de um outro povo. Durante mais de dois milénios, constituímos uma minoria que, por vezes, foi bem acolhida, mas também tratada frequentemente com crueldade. Devíamos saber que nenhum povo pode ter por missão ocupar ou controlar um outro. É preciso pôr um termo a esta situação. Não existe solução militar para este conflito. Devemos compreender que os destinos destes dois povos estão ligados e são inseparáveis. É a razão porque milito em favor do diálogo. Não se trata, para mim, de pôr em causa a fundação de Israel. Mas devemos tentar compreender os erros cometidos em 1948, o que foi prometido ao povo judeu e o que se é hoje.


O concerto de Ramallah de 21 de Agosto de 2005
No programa deste concerto excepcional a Sinfonia nº 5 de Beethoven e a Sinfonia concertante para instrumentos de sopro de Mozart, que raramente se consegue ouvir em concertos.
Este concerto de Ramallah encerra a tournée de 2005 da West Eastern Divan Orchestra, que a levou a São Paulo, a Buenos Aires, a Londres, a Edimburgo ou a Wiesbaden, para transmitir a sua missão de reaproximação entre árabes e israelitas através da música.
Para o seu chefe de orquestra e fundador o objectivo será alcançado quando ela puder actuar em todos os países donde são oriundos os seus instrumentistas. Nesse aspecto, o concerto de Ramallah marca uma etapa importante. Mesmo se Daniel Barenboim decidiu nunca evocar a política do Próximo Oriente durante os ensaios, eles servem de catalizador formidável por todos os recantos por onde actua, seja durante os concertos, seja depois deles.
Seis anos após a sua fundação, e enquanto a situação no Médio oriente continua tensa, o projecto da formação musical não perdeu a sua força. Todos os anos, no Verão, os jovens artistas encontram-se num atelier de várias semanas antes de iniciar a tão esperada tournée. A sétima sessão de trabalho do Divan aconteceu em Julho em Sevilha e teve como corolário a digressão pela América latina e pela Europa.

«O REGRESSO», MAIS UMA HISTÓRIA INQUIETA DE JOSEPH CONRAD (1)

A Inglaterra vitoriana foi palco de uma redefinição dos comportamentos sociais na linha de um puritanismo, que a conotaria com os estereótipos do que de mais retrógrado se concebe a nível de usos e costumes.
Este conto de Conrad enquadra-se nesse ambiente: uma mulher prepara-se para trair o marido, mas arrepende-se no último instante. Preferindo manter as aparências de um estatuto social a viver as tumultuosas emoções, que uma paixão devoradora poderia conceder-lhe.
O escritor só atribui um nome, Alvan, ao marido. Como senão restasse à pecadora esse direito, naquilo que é a demonstração da misoginia normalmente associada a Conrad. Mas ele consegue criar, dentro da limitada dimensão do conto, uma tensão, que passa por uma alternância de tentações até ao desenlace resultante da definitiva prova de ambos em relação àquilo que os poderia unir...

Para Alvan Hervey a chegada a casa naquele dia iria suscitar-lhe uma surpresa, que transformaria por completo a sua perspectiva relativa à vida conjugal:
O comboio urbano proveniente da City irrompeu impetuosamente do buraco negro e parou com um ranger estridente de ferragens na penumbra fuliginosa daquela estação do West-End. As portas laterais abriram-se de par em par e uma multidão de homens apressados desceu. Tinham todos cartola, a cara pálida e saudável, um sobretudo escuro e as botas bem engraxadas; seguravam na mão enluvada o guarda-chuva bem enrolado e os jornais da tarde dobrados à pressa e que pareciam retalhos de fazenda grosseira, de cor esverdeada, rosada ou esbranquiçada. Alvan Hervey desceu juntamente com os outros, de charuto semi-apagado entre os dentes. Uma mulherzinha de vestido preto coçado, correndo com dificuldade pelo cais adiante e carregada de embrulhos, lançou-se bruscamente para dentro dum compartimento de terceira classe e o comboio arrancou. As portas fecharam-se com uma fuzilaria violenta e raivosa de armas de fogo; uma corrente de ar gelado e fumos acres varreu o cais dum lado ao outro e obrigou um velho, envolto num cachecol de lã e de andar pouco seguro, a estacar no meio do atropelo da saída e a tossir violentamente, apoiado à bengala. Ninguém olhou para ele.

(…)


A esperá-lo existe uma carta da mulher a confessar-lhe a iminente fuga para passar a viver com um intelectual, cuja revista ele financiava na sua qualidade de mecenas. Chocado com essa novidade, que o tornaria ridículo no seu círculo de amigos, ele exercita a memória para identificar as razões desse fracasso conjugal. É nessa altura que ela regressa, acobardada com esse salto no escuro, que tivera a tentação de dar:
Parecia-lhe ver-se a declarar-se-lhe... anos antes. Subiam uma ladeira inclinada. Havia grupos de pessoas gozando o sol. As sombras das ramagens repousavam imóveis na relva aparada. Ao longe, algumas manchas minúsculas e coloridas, passando por entre as árvores lembravam borboletas brilhantes que voassem sem mover as asas. Os homens sorriam, amáveis, ou mantinham-se, graves nos seus fatos pretos, ao lado dos grupos de mulheres com toilettes claras de verão, numa evocação dos contos fabulosos de jardins encantados onde flores animadas sorriem para cavaleiros encantados. Em toda esta cena reinava um serenidade sumptuosa, uma excitação leve e vibrante, a perfeita segurança duma ignorância total que fazia nascer nele uma fé transcendente na felicidade de toda a humanidade, um desejo vivo e inquietante de obter só para si, imediatamente, parte daquele esplendor que a sombra de pensamento algum não perturbava. A jovem caminhava a seu lado ao longo dum espaço aberto; não havia ninguém perto e ele, de repente parou, ficou imóvel como que inspirado e falou. Lembrava-se de olhar para os seus olhos puros, para o seu rosto cândido, lembrava-se de relancear rapidamente o olhar em volta para ver se estavam a ser observados e pensar que nada poderia correr mal num mundo tão encantador como aquele, tão puro, tão distinto. No qual sentia orgulho. Ele era um dos criadores, um dos possuidores um dos guardas, um dos arautos dum mundo assim. Queria agarrá-lo solidamente, tirar dele o máximo prazer; e dada a qualidade daquele mundo, a atmosfera sem mancha, a proximidade com o céu da sua escolha, aquela onda de desejo brutal que sentia, pareceu-lhe a mais nobre das aspirações. Reviveu num segundo todos esses momentos e depois todo o patético da derrota se lhe revelou com tal força que a voz se lhe embargou quando disse quase sem pensar:
— Meu Deus! Eu amava-te mesmo!
Ela pareceu ser tocada pela emoção na voz dele. Os lábios tremeram-lhe um pouco e deu um passo hesitante para ele, estendendo as mãos num gesto de imploração, quando percebeu mesmo a tempo, que ele, ao deixar-se absorver pela tragédia da sua vida, se tinha esquecido completamente que ela existia. Estacou e os braços esten­didos caíram. Ele, com os traços do rosto arrepanhados pela amargura dos seus pensamentos, não viu nem o movi­mento nem o gesto dela. Bateu com o pé no chão, desfeiteado, coçou a cabeça e depois explodiu:
— E agora, que vou fazer?
Estava outra vez imóvel. Ela pareceu compreender e caminhou para a porta, com firmeza.
— É muito simples. Vou-me embora — disse em voz alta.
O som da voz dela apanhou-o de surpresa e sobressaltou-se, olhou para ela confundido e perguntou emocionado:
— Tu... Para onde? Para casa dele?
— Não. Sozinha. Adeus.
A maçaneta da porta rodou sob a sua mão tacteante, como se ela estivesse a tentar sair dum lugar escuro.
— Não. Fica! — gritou.


(…)

Durante um par de horas o casal vai viver um jogo de massacre de palavras, de emoções, que ora os precipita para o abismo, ora para a possibilidade de um recomeço:
Atirou-lhe a água para a cara, empregando no gesto toda a brutalidade recalcada do seu despeito, embora pensasse que teria sido perfeitamente desculpável — em quem quer que fosse — atirar-lhe com o copo juntamente com a água. Dominou-se mas ao mesmo tempo estava tão convencido de que nada poderia acabar com o horror daquelas risadas loucas que, quando a primeira sensação de alívio chegou, nem sequer lhe ocorreu duvidar da impressão de ter ficado surdo de repente. Quando a viu endireitar-se na cadeira e acalmada, foi como se tudo, homens, coisas, sensações, estivessem em repouso. Ficou--Ihe grato por isto. Não era capaz de despegar os olhos dela, temendo, embora o não quisesse admitir, que recomeçasse; pois esta experiência, apesar da distância com que tentava vê-la, tinha deixado uma impressão dum terror misterioso. Ela tinha o rosto molhado de lágrimas e de água; os cabelos colavam-se-lhe à testa e à cara; o chapéu estava inclinado para o lado; o véu, ensopado, parecia um pano sórdido. Havia nela uma falta de reserva total, um desprezo por toda a compostura, essa fealdade da verdade que só por uma preocupação constante com as aparências pode ser mantida fora da vida quotidiana. Não sabia por que razão pensou no dia seguinte ao olhar para ela e por que razão este pensamento provocou uma lassidão indizível, um medo de enfrentar a sucessão dos dias. Amanhã! Era tão distante como ontem. Passam-se séculos entre dois nasceres do sol, às vezes. Examinou-lhe as feições como se olha para um país esquecido. Não estavam distorcidas: reconheceu pontos de referência, por assim dizer; mas foi só uma semelhança o que encontrou e não a mulher de ontem — ou aquela era talvez mais que a mulher de ontem? Quem o afirmaria? Era uma coisa nova? Uma nova expressão — ou um novo cambiante da expressão? Ou uma coisa profunda — a revelação duma verdade antiga, duma verdade fundamental escondida — uma certeza malfazeja e inútil? Deu conta que estava a tremer muito, que tinha na mão um copo vazio; que o tempo passava. Sempre a olhar desconfiado para ela, dirigiu-se para a mesa e pousou o copo, sobressaltando-se por vê-lo entrar pela madeira adentro. Tinha falhado a borda da mesa. A surpresa, o leve tilintar deste acidente aborreceram-no. Voltou-se para ela irritado.
— Que é que isto quer dizer? — perguntou-lhe em voz surda.
Ela passou uma mão pela cara e tentou levantar-se.
— Não vai recomeçar com esses disparates. Com franqueza, não sabia que era capaz de se esquecer até esse ponto...
Não tentou dissimular o nojo físico, pois acreditava que o nojo era simplesmente uma reprovação moral de todo o abandono, de tudo quanto pudesse parecer uma cena.
— Garanto-lhe, foi revoltante — continuou. Fixou-a durante um momento: — Completamente degradante — acrescentou com insistência.
Ela ergueu-se bruscamente, como pela acção duma mola e vacilou. Ele deu instintivamente um passo para a frente. Ela agarrou-se às
costas da cadeira e firmou-se. Isto deteve-o e enfrentaram-se com olhares esgazeados, incertos, se bem que regressassem lentamente à realidade das coisas com alívio e estupefacção, como se tivessem acordado nesse instante duma longa noite de sonhos febris.
— Por favor, não comece outra vez — disse apressadamente, ao vê-la descerrar os lábios. — Eu mereço um pouco de consideração. E um comportamento assim tão incrível custa-me. Espero melhores coisas... tenho direito...
Ela apertou as têmperas com as mãos.
— Disparate! — disse ele, cortante. — Está perfeitamente capaz de descer para jantar. Ninguém deve sequer suspeitar; nem as criadas. Ninguém! Ninguém!... Tenho a certeza de que é capaz.

(…)

Não fossem as convenções sociais inerentes à sociedade vitoriana e Alvan penderia para a reconciliação. Mas existe uma sensação de dever masculino, que o empurra para a ruptura:
Estava deslumbrado com a grandeza desta perspectiva; a brutalidade dum instinto prático gritava-lhe que só aquilo que pode ser possuído vale a pena ter. Demorava-se a subir. As luzes do átrio estavam apagadas, e uma chamazinha amarela brilhava lá em baixo. Sentiu um desprezo repentino por si mesmo que lhe deu coragem. Continuou, mas à porta do quarto e já com o braço estendido para a abrir, hesitou. Um lanço de escada abaixo, apareceu a cabeça da rapariga que tinha estado a fechar a porta. O braço caiu-lhe. Pensou: — «Vou esperar até ela se ter ido embora» — e escondeu-se atrás duma portière.
Viu-a subir gradualmente, como se emergisse dum poço. A cada passo a débil chama da vela balançava-se na frente do seu rosto jovem e cansado, e a escuridão do átrio parecia colar-se à sua saia preta, segui-la, subindo como uma maré silenciosa, como se a grande noite do mundo tivesse rompido a discreta barreira das paredes, das portas fechadas, das cortinas corridas. Cobria os degraus, subia pelas paredes como uma onda furiosa; caía sobre os céus azuis, sobre as areias amarelas, sobre as paisagens luminosas e sobre o encanto patético da inocência andrajosa, sobre a fome amável. Engolia o delicioso idílio no barco e a mutilada imortalidade dos baixos-relevos famosos. E a mulher de mármore, composta e cega no seu alto pedestal, parecia desviar esta noite devoradora com um feixe de luzes.


segunda-feira, agosto 22, 2005

UM AMERICANO APAIXONADO PELA EUROPA


No seu livro «Why Europe will run the XXIst century», o ensaísta norte-americano Mark Leonard defende que, pela primeira vez em cinquenta anos, são os EUA quem precisa da Europa e não o inverso. Porque sentem que, sem a diplomacia, o dinheiro e o soft power dos Europeus não conseguem evitar uma travagem do encaminhamento do mundo para a liberdade.
Os EUA enviaram tropas para os países vizinhos - do Haiti à Colômbia - por mais de quinze vezes no último meio século. Mas, di-lo Mark Leonard, os Europeus compreenderam que o empenhamento político e económico poderia ser um factor de mudança muito mais eficaz e, sobretudo, mais permanente. Segundo ele, a arma secreta da União Europeia, é a lei. Os EUA conseguiram mudar o regime no Afeganistão, mas a União Europeia transformaram a sociedade polaca em todos os domínios, incluindo o do tratamento das suas minorias. Cada país que adere à União Europeia deve absorver 80 mil páginas de novas leis sobre domínios tão diferenciados como o são os direitos dos homossexuais e a segurança alimentar.

quinta-feira, agosto 18, 2005

A ESCRAVATURA NÃO É EXCLUSIVO DA EUROPA OCIDENTAL

Comecemos por Fernand Braudel: O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da Europa. Foi o Islão que, desde muito cedo, em contacto com a África Negra (nas regiões do Níger, do Darfur e dos entrepostos da costa oriental), começou esse tráfico em grande escala, pelas mesmas razões ulteriormente utilizadas pela Europa para os imitar: a falta de homens para as tarefas mais pesadas e incómodas.
Outro historiador, Olivier Pétré-Grenouilleau, estima que, entre os séculos VII e XX, foram deportados 42 milhões de escravos.
Reconheça-se que desse tráfico, é o atlântico, o mais conhecido. Fundamentaram-no razões económicas, quer para holandeses, quer para britânicos, quer para franceses, quer para americanos. Entre 1450 e 1860, os 11 milhões de africanos deportados vão servir, sobretudo, para mão-de-obra nas plantações coloniais das Antilhas e do sul dos EUA (cana-do-açúcra, café, algodão, arroz…).
Mas há, de facto, esse tráfico anterior, praticado sem escrúpulos pelos mercadores árabes a partir do século VII. Essa exploração durou treze séculos e prolonga-se ainda hoje porquanto ainda está por abolir em certas zonas da Arábia Saudita.
E há o próprio tráfico africano: como no Médio Oriente, no Egipto ou na Grécia, a escravatura existia em África desde tempos muito recuados. Certos reinos africanos enriqueceram consideravelmente e desenvolveram-se ao venderem escravos capturados noutras tribos. Este tráfico interno, estimado em 14 milhões de indivíduos, é evidentemente difícil de estabelecer.
Se se fala, sobretudo, do tráfico atlântico organizado pelos Ocidentais, porque é a mais sistemática e a mais codificada. O esclavagismo colonial desenvolve-se a partir das descobertas marítimas dos séculos XV e XVI. É a primeira etapa do nascimento de uma economia mundial, que cria uma procura com um destino exclusivo para as Américas. O escravo negro torna-se então um factor de produção nas proporções até então desconhecidas, durante cerca de quatro séculos. No mercado, predomina a utilização de escravos masculinos, mais fortes e resistentes.
A escolha sobre escravos especificamente africanos tem diversas causas: resistência física, nomeadamente a adaptação ao ambiente epidemiológico americano aonde abunda o sarampo e a varíola, a força física, o custo, etc.
A opção pelos Africanos explica-se, igualmente, por hábitos já contraídos, durante dois séculos, nas plantações das ilhas do Atlântico e do golfo da Guiné, onde trabalhavam escravos negros. Estas razões, por muito injustificáveis, que sejam, não implicam um racismo prévio. O racismo não intervêm antes dos tráficos negreiros, mas depois, para o legitimar.
Os Estados criam companhias, que beneficiam de monopólios: os barcos partem de Anvers, de Bordéus ou de Londres com os porões carregados de mercadorias, que serão trocadas por escravos em África. Depois, com a sua carga humana, eles dirigem-se às respectivas colónias, donde regressarão carregados de produtos tropicais. Foi, assim, que se desenvolveram a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (1625), a Companhia das Índias Ocidentais (1664) e a Royal African Company (1672).
Até ao século XVII, admite-se que o tráfico para as Américas acontecia com um ritmo de 10000 escravos por ano, obtidos no Congo, em Angola, na Alta Guiné, na Senegâmbia ou no Benim. O desenvolvimento das plantações faz crescer a procura e quadruplicar o preço dos escravos no começo do século XVIII. Esta economia ligada à escravatura vai perturbar profundamente as sociedades africanas onde as razias e os raptos multiplicam-se para responder às necessidades dos negreiros.
Os barcos conseguiam transportar 450 a 500 escravos com uma tripulação de quarenta homens e as viagens duravam dois meses e meio. Estimam-se, pois, em 30000 as expedições negreiras atlânticas. Na origem os cativos eram tão baratos, que os negreiros não se preocupavam com o número de perdas ocorridas durante essas travessias. Mas, à medida que o tráfico se organiza, os preços sobem: o cativo passa a ser uma mercadoria preciosa. Então, para diminuir a mortalidade das suas «mercadorias», os negreiros só passam a embarcar os escravos com condições de saúde suficientes para atravessarem o Oceano. A maioria dos estudos estabelecem que, em geral, a taxa de mortalidade das expedições situava-se entre os 10 e os 20%
Hoje, a história dos tráficos negreiros, tanto tempo circunscritos a um parágrafo da história colonial, sai lentamente de um imaginário confuso. Tudo começou em 1969 com o aparecimento de «The Atlantic Slave Trade» do norte-americano Philip Curtin, que constituía uma abordagem quantitativa desse fenómeno. Dez anos depois aparecem novos estudos sobre os tróficos orientais. No futuro, há que aprofundar os tráficos africanos para que esta tentativa de história global desemboque sobre um conhecimento, que permita escrever enfim, na sua totalidade, um dos capítulos mais tenebrosos da história humana.

quarta-feira, agosto 17, 2005

«POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO», UM CONTO INQUIETO DE JOSEPH CONRAD

A Literatura Portuguesa conta entre os seus títulos mais representativos da época dos Descobrimentos a «História Trágico-Marítima».
No entanto, o colonialismo não teve apenas tragédias marítimas: em terra, em todos os recantos para onde eram enviados arrivistas e gente sem préstimo nas metrópoles europeias, foram muitas as situações de mortífera desadaptação desses brancos vindos do Hemisfério Norte aos inóspitos territórios a sul do Sahara.
Este conto de Conrad retrato um exemplo eloquente de tais tragédias: Kayerts e Carlier são contratados por uma empresa colonial para gerirem um posto de avançado de comércio de marfim com os indígenas da região. A ambição é muita e o desconhecimento da região ainda é bem maior. O resultado será inevitavelmente a morte de ambos.
De pouco lhes valerá a presença de Makola, o encarregado do pequeno armazém, que está mais interessado em trocar escravos por marfim do que adequar-se aos valores e aos objectivos dos dois homens. Todos os negros contratados para esse entreposto são vendidos por Makola, ficando ali apenas os dois brancos, o negreiro e a mulher deste. O resultado é a loucura apossar-se daqueles, traduzida em obsessão homicida ou em conformado suicídio. Antes da chegada da almejada salvação...


Excertos:


Dirigiam o posto comercial dois homens. O chefe do posto, Kayerts, era baixo e gordo; Carlier, o adjunto, era alto, de cabeça grande e tronco largo empoleirado numas pernas compridas e magras. O terceiro homem do pessoal era um negro da Serra Leoa, que afirmava chamar-se Henry Price. Mas por uma razão qualquer, ao longo do rio os nativos tinham-lhe posto o nome de Makola, o qual se lhe pegou durante as suas deambulações pela região. Falava inglês e francês a cantar, tinha uma caligrafia magnífica, percebia de contabilidade e alimentava no mais fundo do coração o culto dos espíritos malignos. Por mulher tinha uma negra de Luanda, enorme e faladora. Três crianças rebolavam-se ao sol à frente da casa deles, uma construção baixa tipo arrecadação. Makola, taciturno e impenetrável, desprezava os dois brancos. Estava encarregado dum pequeno armazém de adobe com telhado de colmo e fazia por manter correctamente as contas das missangas, do pano de algodão, dos lenços vermelhos, do arame e dos restantes artigos de comércio. Além do armazém e da casota de Makola, havia só mais um edifício importante no terreno desbravado do posto, uma casa feita de canas entrançadas, de acabamentos executados com toda a perfeição, e tendo uma varanda a toda a volta. Tinha três salas. A do meio era a sala comum, com duas mesas toscas e alguns bancos. As outras duas eram os quartos dos brancos, sem outro mobiliário além duma cama de campanha e uma rede mosquiteira cada um. O chão estava atapetado com tudo quanto os brancos pos­suíam; malões abertos e semi-cheios, roupas citadinas, botas velhas; todas as coisas sujas e todas as coisas
que­bradas que se acumulam misteriosamente à volta de homens sem princípios de asseio. (…)

Cinco meses passaram-se desta maneira.
Então, uma manhã, enquanto descansavam na varanda falando da vinda do vapor, um grupo de homens arma­dos irrompeu da floresta e avançou para o posto. Não eram desta região. Eram altos, esbeltos, vestidos à antiga com mantos azuis franjados e carregavam ao ombro espingardas de percussão. Makola ficou muito agitado e saiu a correr do armazém (onde passava os dias), ao encontro dos visitantes. Estes avançaram para o pátio, lançando em voltas olhares ferozes e desdenhosos. O chefe, um negro forte e de aspecto decidido, de olhos raiados de sangue, postou-se à frente da varanda e pronunciou um longo discurso. Fazia muitos gestos enquanto falava e acabou bruscamente.
Havia qualquer coisa que assustou os dois brancos na sonoridade das longas frases que utilizou. Eram sons de modo nenhum familiares mas com muitas semelhanças, no entanto, com a fala dos homens civilizados. A arenga do negro soou-lhes como uma dessas línguas impossíveis que às vezes ouvimos nos sonhos.
Que algaraviada é esta? — perguntou um espantado Carlier — Ao princípio até julguei que o tipo ia falar em francês. Seja lá o que for, é diferente da língua de pretos a que estamos habituados.
Sim — replicou Kayerts. — Ei, Mikola, o que é que ele disse? Donde vêm eles? Quem são?
Mas Makola, que parecia estar sobre tijolos em brasa, respondeu precipitadamente: — Não sei. Vêm de muito longe. Talvez a Sra. Price os perceba. Se calhar são homens maus.
O chefe, depois de ter esperado um bocado, disse qualquer coisa ríspidamente para Makola, que abanou a cabeça. Então o homem, depois de olhar à volta, reparou na casota de Makola e dirigiu-se para lá. Logo a seguir ouviu-se a Sra. Makola falar com grande vivacidade. Os outros estrangeiros — eram seis ao todo — andaram dum lado para o outro, perfeitamente à vontade, espreitaram para dentro do armazém, juntaram-se em volta da campa e apontaram para a cruz com ar entendido; em resumo,: estavam como em casa.
— Não gosto desta gente; e em minha opinião, Kay­erts, devem ser do litoral; têm armas de fogo — observou o sagaz Carlier.
Kayerts também não gostava daquela gente. Pela primeira vez apercebiam-se de que viviam em condições onde o não habitual pode tornar-se perigoso e compreendiam que não havia mais nenhum poder no mundo entre eles e o imprevisto, a não ser eles próprios. Ficaram pouco à vontade, entraram em casa e carregaram os revólveres. Kayerts disse:—Temos de dizer ao Makola para lhes ordenar que têm de se ir embora antes do anoitecer.

Os estrangeiros partiram à tarde, depois de terem comido uma refeição que a Sra. Makola lhes preparou. A mulher parecia muito animada e falou com os visitantes. Falava em tons agudos, apontando para aqui e para ali, para a floresta e para o rio. À parte, Makola observa-os. Levantou-se por diversas vezes para murmurar algumas palavras ao ouvido da mulher. Acompanhou os estrangeiros até à ravina por detrás do posto e regressou vagarosa­mente, de aspecto muito pensativo. Quando os brancos o interrogaram mostrou-se muito estranho, fingindo não compreender nada do que lhe diziam. Parecia ter-se es­quecido de todo o francês que sabia — parecia mesmo ter perdido o uso da fala. Kayerts e Carlier concluíram que o negro tinha bebido demasiado vinha de palma.
Combinaram fazer turnos de guarda mas, à noite pareceu-lhes tudo tão calmo e pacífico pelo som de tambores nas aldeias. A um rufar surdo e rápido, perto, seguia-se outro mais longe — e depois cessava. Logo a seguir, chamamentos curtos, de sítios diferentes. E depois, os tambores e os gritos, em uníssono, aumentaram de intensidade, tornaram-se fortes e contínuos, propagaram-se a toda a floresta, rolando na noite, perto e longe, como se toda a região se tivesse transformado num imenso tambor que lançava apelos aos céus. E no meio de todo este barulho surdo e terrível, súbitos gritos de guerra, semelhante aos cânticos do manicómio, soavam em notas discordantes e tons agudos, pareciam elevar-se muito acima da Terra e banir toda a paz sob as estrelas. (…)

Esta era a causa de todo o mal! Não havia ninguém ali; e tendo tido deixados sozinhos com as suas franquezas, tornavam-se, a cada dia que passava, mais um par de cúmplices do que dois amigos dedicados. Há oito meses que não tinham notícias de casa. Todas as noites diziam: — Amanhã vamos ter aí o vapor. — Mas um dos vapores da Companhia tinha naufragado e o director estava a utilizar o outro na rendição de postos importantes no rio principal. Pensava que este posto inútil e os agentes inúteis podiam esperar. Entretanto Kayerts e Carlier viviam de arroz cozido sem sal e maldiziam a Companhia, toda a África e o dia em que nasceram. É preciso uma pessoa ter vivido dura dieta desse género para saber que problema horroroso pode ser a necessidade de engolir alimentos. Não havia literalmente mais nada no posto além de arroz e café; bebiam o café sem açúcar. As últimas quinze pedras de açúcar, Kayerts tinha-as fechado solenemente no seu malão, juntamente com meia garrafa de cognac: — Em caso de doença — explicou. Carlier aprovou: — Quando se está doente, qualquer mimo extra é uma festa.
Esperavam. Um capim cerrado começava a invadir o pátio. A sineta deixou de tocar. Os dias passavam, silenciosos, exasperantes e lentos. Quando os dois homens falavam, rosnavam; os silêncios eram amargos, tingidos pelo azedume dos pensamentos.
Um dia, depois do almoço de arroz cozido, Carlier pousou a chávena do café, sem lhe tocar, e disse:
Que se lixe! Vamos mas é tomar um café decente ao menos uma vez. Vai lá buscar o açúcar, Kayerts!
É para os doentes — disse o interpelado em voz baixa e sem levantar os olhos.
Para os doentes? — troçou Carlier: — Bah!... Pois bem! Estou doente.
Não está mais doente que eu, e eu passo bem sem ele — respondeu Kayerts, conciliador.
Vá! Venha mas é o açúcar, seu forreta velho, traficante de escravos!
Kayerts olhou para ele espantado. Carlier sorria-se com toda a insolência que era capaz de mostrar. E de repente pareceu-lhe que nunca tinha visto aquele homem antes. Quem era? Não sabia nada dele. De que seria capaz? Apoderava-se dele uma emoção violenta, como se estivesse na presença duma coisa inesperada, perigosa, deci­siva. Mas fez por responder com toda a compostura:
Essa piada é de muito mau gosto. Não a repita.
É piada? — disse Carlier, crescendo na cadeira.
— Tenho fome, estou doente, não estou a brincar! Detesto hipocrisias. Tu és um hipócrita. Tu és um negreiro. Eu sou um negreiro. Neste país só há negreiros. Hei-de tomar café com açúcar hoje, dê lá por onde der.
— Proíbo-o de me falar nesse tom — respondeu Kayerts com uma clara resolução.
— Tu... O quê? — berrou Carlier, saltando. Kayerts também se levantou.
Eu sou seu chefe — começou, tentando dominar a voz que lhe tremia.
O quê? — gritou o outro. — Quem é o chefe? Aqui não há chefe nenhum. Aqui não há nada: nada, a não sertu e eu. Vai buscar o açúcar, seu pote
Tento na língua. Vá para o seu quarto — berrou Kayerts. — Está demitido... seu malandro!
Carlier agarrou num banco. Dum momento para o outro tornara-se agressivo e perigoso.
— Seu civil gordo! Seu inútil! Toma!
Kayerts baixou-se do outro lado da mesa e o banco foi embater na parede.
Então, como Carlier estava a tentar virar a mesa, Kayerts, em desespero, fez uma investida cega, de cabeça baixa, como um porco encurralado, e derrubando o amigo, fugiu pela varanda para o seu quarto. Fechou a porta, puxou do revólver e ficou a arfar. (…)

O Director da Grande Companhia Civilizadora (como se sabe, a civilização segue o comércio) foi o primeiro a desembarcar e deixou imediatamente de ver o vapor. A bruma junto ao rio era extremamente densa; lá em cima, no posto, a sineta tocava sem descanso.
O Director gritou alto para o vapor:
— Não está aqui ninguém à nossa espera; deve-se passar qualquer coisa, embora eles estejam a tocar. Era melhor virem também comigo.
Pôs-se a escalar a margem. O comandante e o chefe--maquinista foram atrás dele. À medida que subiam, o nevoeiro foi-se desfazendo, e avistaram o Director já a uma boa distância. De repente viram-no lançar-se para a frente, ao mesmo tempo que os chamava: — Corram! Corram para a casa! Encontrei um. Corram, procurem o outro!
Tinha encontrado um! E mesmo ele, o homem da multifacetado e sensacional experiência, ficou um tanto perturbado com o que descobriu. Parou e remexeu nos bolsos à procura duma faca, enquanto enfrentava Kayerts, suspenso da cruz por meio duma correia de couro. Ele tinha trepado, com toda a evidência, à campa, que era alta e estreita, e depois de ter atado o cinto das calças ao braço da cruz, enforcara-se. Os dedos dos pés quase tocavam o solo - os braços pendiam-lhe ao longo do corpo; parecia perfilado em sentido, mas com uma das faces, roxa, caída por travessura sobre o ombro. E, irreverentemente, mostrava a língua inchada ao seu Director.

GLICÍNIA QUARTIM: OITENTA ANOS DE MUITA HISTÓRIA E LUCIDEZ

A actriz conheceu meio mundo nos seus oitenta anos de vida. Sentada em frente à câmara ela vai desfiando as suas memórias sob a forma de muitíssimas histórias, protagonizadas por quem com ela conviveu nas diferentes fases da sua vida.
No MUD, por exemplo conheceu Mário Soares, cuja impressão inicial nela vincada terá sido negativa. Ele parecera-lhe um intrometido, quando afinal era um dos principais dirigentes da organização aonde ela dava os primeiros passos.
António Pedro tê-la-á convencido a ser actriz a tempo inteiro, esquecendo o projecto de avançar nos seus estudos de Agronomia, quando ela estava sob o sortilégio do movimento surrealista, que nunca a deixaria de seduzir. E que não renegaria, mesmo quando Ernesto de Sousa lhe deu o papel principal no filme «Dom Roberto» com um ainda muito jovem Raul Solnado.
De Amélia Rey Colaço receberia, mais tarde, outra grande influência e reconhecimento, ao dizer-lhe estar à sua espera no Nacional o lugar, que lhe caberia por direito. Numa altura em que estava desempregada há um ano, e já desesperava de voltar a pisar os palcos. Ela que aí respirava, toda devotada a vestir a pele das suas personagens.
E, no entanto, ela começara muito cedo em récitas em pequenas salas (da Casa de Arganil ou do Liceu Francês), representando todos os grandes clássicos numa sucessão de papéis, que ia decorando sem ter tempo para os aprofundar.
Existia, na época (anos 40) uma Lisboa pequena em dimensão e em população, tornando-se frequente ela encontrar no eléctrico as pessoas, que a tinham ovacionado na noite anterior.
Mas os seus grandes papéis aparecem nos anos 70, quando se associa à genialidade de Luís Miguel Cintra e de Jorge Silva Melo na Cornucópia. Será aí que os seus grandes papéis dramáticos ganham uma outra espessura, tanto mais que apoiados na cenografia sóbria de Cristina Reis, cuja limitada utilização de objectos em cena, dava ensejo à actriz de se movimentar. Já que a sua interpretação exige sempre um espaço bastante liberto á sua volta. Porque em cena ela não cessa de representar por um momento que seja, mesmo quando as falas são as das demais personagens.
Na sua homenagem a uma cúmplice de múltiplas aventuras, seja na Cornucópia, seja nos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo não precisou de grandes meios: o rosto e a voz de Glicínia bastam, apenas alternados com algumas fotografias ilustrativas do seu discurso imparável.
A exemplo de muitos outros sábios da sua idade, ela tem uma História. Que lhe agrada partilhar!
Desse testemunho só nos pode ficar uma pena: a de não irmos a tempo de testemunhar o seu talento, justificadamente passado à reforma...

terça-feira, agosto 16, 2005

HILLA E BERND BECHER: AS IMAGENS DE UMA INDÚSTRIA EM VIAS DE DESAPARECIMENTO






















A objectividade é uma questão de rigor - eis a tese do casal Becher que, desde os anos 50 do século XX têm captado paisagens industriais um pouco por todo o mundo.
A aventura começou em 1958, quando eles fotografam instalações da bacia do Rhur, região donde Bernd era natural e em cuja indústria mineira haviam trabalhado os seus antepassados.
Da Alemanha, os Becher estenderam a sua pesquisa estética a França, a Inglaterra (a partir de 1965) e à Pensilvânia (EUA, 1972). O tema, sempre o mesmo, é a indústria mineira, siderúrgica, os depósitos de água ou os recuperadores de calor. E sem a presença de pessoas, já que, a bem do rigor, os fotógrafos optam por longos tempos de exposição sob um céu, normalmente, enevoado.
A partir de uma similitude de formas, os Becher congregam essas imagens em instalações, que devem transmitir um certo sentido da harmonia. Nesses conjuntos de doze, quinze ou mais fotografias, existe sempre uma correspondência horizontal, vertical ou diagonal.
Os Becher revelam-se uns maníacos do enquadramento, que é perfeito, seja me fotografias de 30 x 40, seja nas de 50 x 60. E pretendem que a fotografia seja a expressão objectiva do que se vê, sem nelas inculcar emoções ou estados de alma.

segunda-feira, agosto 15, 2005

«OS IDIOTAS», UM CONTO INQUIETO DE JOSEPH CONRAD


Um dos temas mais recorrentes da literatura do século XIX é o das famílias ricas, que conhecem uma irreversível decadência.
É a saga das casas arruinadas devido à loucura dos seus derradeiros descendentes, seja por razões genéticas indefinidas, seja pela consequência de um incesto voluntário ou não.
«A Queda da Casa Usher» de Edgar Allan Poe torna-se numa das referências fundamentais de tal género literário, que tem neste conto de Conrad uma das suas óbvias sequelas.
Jean Pierre Bacadou é o protagonista, conhecido pelo seu pendor republicano. Talvez seja essa a causa da maldição, que penderá sobre a sua cabeça, razão mais que suficiente para olhar com alguma prudência este exercício.
Essa maldição traduzir-se-á em sucessivos filhos deficientes, nenhum deles capaz de assumir a herança da propriedade familiar.
Bem pode ele aceder à vontade da mulher, Suzanne, e abrir as portas de sua casa aos clérigos da região. Não será, assim, que conquistará a deferência divina…
E por isso bebe, insulta os outros, procura violentar a mulher vista como responsável da sua desgraça.
Conrad faz crescer a tensão preparando o inevitável desenlace: este tipo de narrativa acaba, inexoravelmente em tragédia.
Numa noite de tempestade - é o conhecido cânone romântico da identificação do tempo e da paisagem com os estados de alma dos seus personagens, Conrad leva Suzanne a matar o marido, quando este tentava forçá-la a nova gravidez e a escapulir-se desvairada para a beira de uma falésia. Acreditando-se perseguida pelo espectro vingativo do defunto.
Dessa noite restarão esses idiotas, que vagabundeiam pela região, incapazes de assumirem a herança a eles deixada pelo pai.
Ao invés, será o marquês, que lidera os monárquicos dessa região, quem abocanhará essa fortuna, satisfeito por ela não servir de proveito a mais nenhum republicano...


Extractos:


Seguíamos de Treguier para Kervanda. Passávamos a bom trote entre as sebes que encimam os taludes de ambos os lados da estrada e então, no princípio da subida íngreme antes de Ploumar, o cavalo abrandou e pôs-se a passo e o cocheiro saltou da boleia para o chão pesadamente. Fazendo estalar o chicote, um tanto trôpego, caminhava ao lado da carruagem, com uma mão apoiada no estribo e de olhos postos no chão. Ao fim de algum tempo ergueu a cabeça e, apontando com o chicote para o alto da estrada, disse:
— Lá está o idiota!
O sol brilhava com violência sobre os campos ondulados. Grupos de árvores, com os ramos tão elevados no céu como se estivessem em cima de andas, coroavam as elevações do terreno. Os campos, de pequena dimensão e conformados por sebes e muros de pedra que ziguezagueavam ao longo das encostas, formavam manchas rectangulares de verdes e amarelos naturais semelhantes às desajeitadas pinceladas dum quadro náif. E a paisagem era cortada ao meio pelo risco branco duma estrada que se estirava em voltas até muito longe, como um rio de poeira que tivesse descido das montanhas e rastejasse agora a caminho do mar.
— Cá está ele! — voltou a dizer o cocheiro.
No meio da erva alta da berma da estrada e à altura das rodas vimos aparecer uma cara, que ficou para trás à medida que a carruagem avançava lentamente. Era uma cara imbecil, vermelha e a cabeça bicuda de cabelo cortado rente, parecia existir sem corpo, mergulhando na poeira pelo queixo. O corpo perdia-se nos tufos espessos que cresciam ao longo da valeta. Era uma cara de rapaz. Poderia ter dezasseis anos, a julgar pela altura — talvez menos, talvez mais.

(…)
Suzanne abraçou o seu homem. Ele ficou hirto, depois rodou nos calcanhares e saiu. E então, quando uma soutane preta ensombrava a entrada da casa, não punha objecções; ele mesmo oferecia cidra ao padre. Assistia mansamente à conversa; ia à missa no meio das duas mulheres; cumpriu pela Páscoa o que o padre dizia serem os seus «deveres religiosos». Nessa manhã sentiu-se como um homem que vendeu a alma. Ã tarde envolveu-se à pancada com um vizinho, um velho amigo, por este ter dito que os padres tinham levado a melhor e que agora iam comer o come-padres. Entrou em casa desgrenhado e a sangrar e calhando de olhar para os filhos (mantinham-lhos fora da vista geralmente), pôs-se a
praguejar e blasfemar incoerentemente e a dar murros na mesa. Suzanne chorou.
A senhora Levaille ficou sentada, impassível. Garantiu à filha que — «isso passa» — e, pegando no seu grosso guarda-chuva, foi-se embora, com pressa de saber duma escuna para carregar uns blocos da sua pedreira.
Cerca dum ano depois, nasceu a rapariga. Uma rapariga!
Foram dar a notícia a Jean-Pierre, que andava no campo, e ele sentiu-se tão desanimado que se deixou ficar sentado num muro da vedação até à noite, em vez de ir depressa para casa, tal como lhe tinham pedido. Uma rapariga! Sentiu-se um tanto ludibriado. Podia-se casá-la com um tipo às direitas — não com um que não faça nada, mas com um tipo que tenha algum tino e braços fortes.
Demais a mais, o próximo pode ser rapaz, pensava ele. E é claro, haviam de ser escorreitos.
A sua nova credulidade não conhecia a dúvida. A má sorte fora quebrada. Falou alegremente com a mulher. Também ela estava cheia de esperança. Para este baptizado vieram três padres e a senhora Levaille foi a madrinha, A rapariga saiu idiota como os outros.
Então, em dias de feira, as pessoas viam Jean-Pierre discutir com azedume, quezilento, avaro; e depois embebedava-se com uma gravidade macambúzia; e à noitinha, no regresso a casa, guiava a carroça com uma cara de enterro e num andamento mais próprio para um casamento.
Às vezes insistia com a mulher para que o acompanhasse; e saiam de manhãzinha, aos solavancos, sentados ao lado um do outro e com o porco atrás, amarrado e a grunhir melancolicamente a cada safanão. Estas saídas matinais decorriam em silêncio; mas à noite, no regresso Jean-Pierre, tocado, resmungava maldosamente e berrava com a mulher abominável que não era capaz de parir filhos como os dos outros. Suzanne, segurando-se por causa dos solavancos da carroça, fingia não ouvir. E uma vez, ao atravessarem Píoumar, um obscuro impulso de bêbado levou-o a parar bruscamente mesmo em frente à igreja. A lua nadava entre finas nuvens brancas. As lajes funerárias brilhavam palidamente sob as sombras entrecruzadas das árvores do adro. Até os cães da aldeia dormiam. E só os rouxinóis, acordados, lançavam o estrídulo do seu cantar sobre o silêncio das campas.
— Sabes quem está ali? — disse com voz grossa Jean-Pierre para a mulher.
Com o chicote apontou para a torre — na qual, com o luar, o enorme relógio parecia uma cara branca e sem olhos — e, apesar do cuidado com que quis saltar da carroça, estatelou-se ao lado da roda. Levantou-se e subiu um a um os poucos degrau até ao portão do adro. Com a cara colada às grades chamou lá para dentro com voz pastosa:
— Ei! Anda cá para fora!
— Jean! Anda-te embora! Anda! — suplicou a mulher em voz baixa.
Ele não ligou e parecia ir ficar ali à espera. O canto dos rouxinóis embatia de todos os lados contra as altas paredes da igreja e refluía para entre as cruzes e as lajes cinzentas onde se gravavam palavras de dor e de esperança.
— Eí! Anda cá para fora! — gritava em voz alta Jean-Pierre.
Os rouxinóis calaram-se.
— Não está aí ninguém? — continuou. — Não está lá ninguém. Uma vigarice dos corvos negros. É o que isto é. Não está ninguém em parte nenhuma. Desprezo-te. Allez, hop!
Pôs-se a abanar o portão com toda a força e as barras de ferro ressoaram assustadoramente, com um barulho semelhante ao de correntes arrastadas em degraus de pedra.

Um cão, muito perto da igreja, começou a ladrar. Jean-Pierre cambaleou para trás e ao fim de três tentativas subiu para a carroça. Suzanne mantinha-se muito calma e imóvel.

(…)

Corria com leveza, inconsciente de qualquer esforço do seu corpo. Os rochedos altos e escarpados que na maré alta emergem acima da planície resplandecente da água azulada com torres pontiagudas de igrejas submersas, passaram ao lado dela, correndo como enlouquecidos para
terra. À sua esquerda, ao longe, viu brilhar qualquer coisa: um disco largo de luz, à volta do qual giravam sombras delgadas, como os raios duma roda. Ouviu uma voz chamar por ela:
— Ei! Ei! — e respondeu-lhe com um grito selvagem. Então ele ainda podia chamar! Ele dizia-lhe
que parasse. Nunca!... Entrou pela noite dentro, passou por um grupo de sargaceiros, agrupados à volta duma lanterna e paralisados de medo pelo grito sobrenatural daquela sombra esvoaçante. Os homens apoiavam-se aos ancinhos, com o medo estampado nos olhos. Uma mulher caiu de joelhos e, benzendo-se, pôs-se a rezar em voz alta. Uma rapariguinha com a saia rota coberta de algas viscosas começou a soluçar desesperadamente, arrastando o seu molho de algas para junto do homem que transportava a lanterna. Alguém disse:
— Aquela coisa ia a correr para o mar!
Outra voz exclamou:
—E o mar está a subir!
Olha para os charcos a alargar. Ouça, você, ó mulher, você aí! Ponha-se em pé! — Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: — Sim, é melhor irmos embora; essa coisa maldita que vá para o mar! — Começaram a andar, agrupados à roda da luz. De repente um homem lançou uma praga em voz alta. Ele ia lá ver o que era aquilo. Tinha sido uma voz de mulher. Ele ia lá. As mulheres protestaram com gritos estridentes — mas o vulto alto separou-se do grupo e partiu a correr. Um coro de vozes aterroriza das seguiu-lhe no encalço e um insulto trocista, lançado da escuridão, veio-lhes ao encontro. Uma mulher começou a gemer. Um homem velho disse gravemente: — Coisas como aquela devem ser deixadas sozinhas. — Continuaram a andar, mais devagar, arrastando os pés
na areia mole e segredando duns para os outros que Millot não tinha medo de nada, que não tinha religião e um dia havia de acabar mal.
A maré enchente apanhou Suzanne junto à ilhota do Corvo e ela parou ofegante, com os pés na água. Ouviu-lhe o murmúrio e sentiu a carícia fria do mar e, agora mais calma, distinguiu a massa escura e confusa do Corvo dum lado e do outro a longa faixa branca das areias de Molène que, em cada vazante, ficam a descoberto muito acima do fundo seco da Baía de Fougères. Voltou-se e viu
ao longe, contra o fundo estrelado do céu, a torre da igreja de Ploumar, uma pirâmide esguia e alta, lançada para o ar e com a ponta mergulhada no meio das estrelas. Sentiu-se estranhamente calma. Sabia onde estava e começou a lembrar-se de como tinha vindo ali parar — e porquê. Perscrutava a escuridão à sua volta. Estava sozinha. Não estava ali ninguém; não havia ninguém perto, vivo ou morto.
A maré avançava, rastejando em silêncio, lançando longos e impacientes braços de estranhos regatozinhos que corriam para terra entre montículos de areia. Devido à noite, as poças cresciam com uma rapidez misteriosa, enquanto o grande mar, ainda longe, trovejava num ritmo regular, ao longo da linha indistinta do horizonte. Suzanne recuou alguns passos, mas já sem ser capaz de se livrar da água que murmurava ternamente à sua volta e que bruscamente, com um gorgolão rancoroso, quase a fez perder pé. O coração bateu-lhe de medo. Este lugar era demasiado grande e demasiado vazio para morrer. Amanhã eles fariam dela o que quisessem. Mas antes de morrer havia de lhes dizer — aos senhores vestidos de preto — que há coisas que uma mulher não pode suportar! Explicar-lhes-ia como foi que aquilo aconteceu... Patinhou através duma poça e molhou-se até à cintura mas estava demasiado absorta para se importar... Tinha que lhes explicar:
— Ele chegou-se para mim da mesma maneira de sempre e disse assim: — «Julgas que vou deixar as terras àquela gente de Morbihan que nem sequer conheço? »

(…)
De olhos secos, a senhora Levaille estava sentada na erva rala do lado da colina, com as grossas pernas estendidas e os pés calçados com escarpins de lã preta apontando para cima. Os tamancos estavam ao lado, mais longe, o guarda-chuva jazia abandonado como uma arma que um guerreiro vencido tivesse largado da mão. O marquês de Chavannes, a cavalo, de mão enluvada apoiada na coxa, seguiu-lhe os movimentos quando ela se ergueu penosamente a gemer. Pelo carreiro estreito que as carroças das algas tinham aberto, quatro homens traziam para terra o corpo de Suzanne num carro de mão, e outros iam ficando para trás. A senhora Levaille olhava para a procissão.
— Sim, senhor marquês — disse, calma, no seu tom de voz habitual, de mulher velha e sensata — há pessoas com má sorte neste mundo. Eu tinha só uma filha. Só uma! E eles não querem enterrá-la em terra sagrada!
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, que lhe correram pelas faces abaixo. Envolveu-se mais no xaile. O marquês curvou-se ligeiramente na sela e disse:
— É uma tristeza. Você tem toda a minha compreensão.
Eu vou falar com o padre. Ela perdeu o juízo, com toda a certeza, e a queda foi acidental. É o que afirma claramente Millot. Bom dia, minha senhora.
E afastou-se a trote, enquanto pensava: — «Tenho que conseguir que esta pobre mulher fique tutora dos idiotas e a administrar a quinta. É melhor isso do que aparecer aí outro Bacadou, se calhar um republicano vermelho, a corromper-me a comuna».

quinta-feira, agosto 11, 2005

RONI HORN, A ARTISTA EM FUGA



A sua base é o desenho. Que a leva à descoberta. E lhe dá o mote aos trabalhos fotográficos. Feitos de múltiplas imagens que, só na sua complexidade, lhe dão sentido.
De início ela começara por fotografar paisagens islandesas, quase despojadas de indícios da presença humana. Nesses sítios aonde se permitiu sentir-se mais ela própria…
Ela descobre nesse país setentrional, que a própria meteorologia define a percepção das coisas. Que dependem totalmente da luminosidade existente.
Essa descoberta constitui uma ruptura com a sua condição de materialista norte-americana. Porque existe uma realidade para além daquilo, que se consegue ver… Como, por exemplo, essa linha imaginária do Círculo Polar Árctico, que ela fotografa através dessa imagem de um mar de múltiplos matizes desenhados pela sua mistura de gelo e água… Umas vezes limpo até à linha do horizonte, outras vezes meio enevoado pela presença da neblina…
Nessa altura os acontecimentos circulares e cíclicos passam a ser o leitmotiv do seu trabalho… Através de uma instalação de 46 imagens não só sobre essas paragens boreais, mas também sobre um casal aí a residir.
Mas outros temas a aguardam depois. Como o desse edifício dos anos 20 convertido em piscina pública e cujo arquitecto deveria ser um apreciador de xadrez.
Ou os retratos de amigos e conhecidos, que ela capta em momentos significativos das suas vidas.
Aos cinquenta anos Roni Horn define-se como uma artista em fuga, receosa de ser descoberta...

quarta-feira, agosto 10, 2005

Já vai sendo raro, mas a aventura espacial ainda vai dando azo a alguma expectativa.
Foi o que aconteceu esta tarde com a chegada do «Discovery». Depois da explosão do «Columbia» esperava-se pelo momento da chegada, não fosse repetir-se a transformação da nave numa imensa bola de fogo, seguida da sua projecção em minúsculos estilhaços.
Mas a reparação da zona do escudo térmico efectuada no espaço dava confiança quanto a um happy end. E assim sucedeu...
De qualquer forma - e a exemplo do que tinha sucedido, há um par de dias, com o resgate dos nove marinheiros russos de um submarino afundado no Pacífico - as pessoas andam ansiosas por notícias positivas. Que constituem o contraponto à alietoriedade da morte absurda suscitada pelos atentados terroristas ou pelos acidentes aéreos, sempre caracterizados por imensas vítimas.
A crise agora superada com a aterragem da «Discovery» não resolve, porém, o impasse a que a exploração do espaço chegou. Não garantindo um rápido retorno das verbas investidas, os governos tendem a olhar esse desígnio como algo de secundário. Adiando a inevitabilidade de se ter de começar a pensar noutras paragens mais promissoras, já que o planeta vai vendo esgotados os seus recursos, nomeadamente os energéticos.
Se já é possível chegar a milhões de quilómetros de distãncia para enviar um míssil contra um cometa ou para fotografar planetas dos confins do sistema solar, é evidente que as verbas hoje aplicadas numa política de agressão continuada a pretensos impérios do Mal seriam melhor canalizadas na procura da viabilidade da sobrevivência humana numa perspectiva de longo prazo.

terça-feira, agosto 09, 2005

ANARQUISTA NOS TEMPOS DE HOJE?

O que pode levar alguém a proclamar-se anarquista nos tempos, que vão correndo?
Foi isso mesmo, que ouvi do H. um dia destes ao jantar, quando discutíamos a situação política do país. Os seus argumentos eram aqueles que costumamos ouvir nos foruns televisivos e radiofónicos, aonde ganham importância conceitos perigosos do tipo «os políticos só querem é tacho» ou «são todos a mesma coisa».
São estes conceitos, que abrem aquecem esse ovo da serpente donde emergem os totalitarismos. Porque preparam caminho ao Redentor, que vindo de uma qualquer Santa Comba, logo começa por cercear as liberdades fundamentais.
E, no entanto, como é fácil identificar as características deste tipo de pessoas: normalmente de raiz pequeno-burguesa, vêem as suas aspirações condicionadas por uma crise económica passível de os projectar numa insegurança, que os aterroriza. O desemprego, a marginalidade ou o aumento do custo de vida inquieta-os, enquanto as televisões e as revistas cor-de-rosa mostram as vivendas de luxo em condomínios fechados, os porsches, os iates e as férias de sonho de um jet set olhado com inveja. Essa tal inveja tão realçada pelo José Gil no livro recentemente publicado, que se transformou num inesperado - mas, afinal, lógico - sucesso editorial.
Este tipo de pessoa não se compromete na acção cívica de transformar a realidade. Mas acha que os políticos deveriam ter em mente o bem colectivo em prejuízo do seu próprio bem estar. Quando é o primeiro a calçar as pantufas e sentar-se em frente ao televisor a vituperar esses governantes, que algum jornalismo irresponsável transforma em proto-delinquentes sobre os quais se justificam todas as suspeitas.
Vão difíceis estes tempos em que a seca prolongada e o irreversível evolução dos preços do petróleo limitam as hipóteses de governar bem. E o discurso destructivo das oposições em nada contribui para suscitar mitigados optimismos...

COERÊNCIA VS. BEM COLECTIVO

Como se diz a alguém, que vai ficar despedido a partir do mês seguinte?
Sobretudo, quando se acaba de saber que ele foi pai de uma criança dias atrás e tem toda uma carga de novas responsabilidades a nortear-lhe os dias?
Foi esse um dos momentos difíceis de hoje e que colide com todo um conjunto de princípios morais e ideológicos inerentes à minha condição de homem de esquerda.
E, no entanto fi-lo. Como tantas vezes a vida me tem obrigado a comportar-me a contra-corrente do que a vontade me impeliria.
É a velha questão da coerência! Aquela que leva, por exemplo, Mário Soares a perfilar-se a novo mandato presidencial, colocando a amizade com Manuel Alegre em risco.
E, no entanto, todos sabemos quão mais fácil será vencer Cavaco Silva, se o candidato de esquerda for o primeiro. Por isso, entre o bem colectivo e a coerência individual, será a segunda a curvar-se às prioridades do primeiro. Como, no caso das minhas opções profissionais, será o bem colectivo (expurgando a empresa de elementos menos rentabilizáveis) a sobrepôr-se à pena, que me faz endossar alguém com escassas competências para as sinuosas vias do desemprego...

FILME:«BLUE IN THE FACE» DE WAYNE WANG E PAUL AUSTER

Estamos em Brooklyn, um dos bairros mais típicos de Nova Iorque. Dotado de uma cultura própria, que começa por ser descrita por Lou Reed, como única e insusceptível de atemorizar. Apesar dos muitos assaltos e homicídios aí rastreados todos os anos.
Numa das primeiras cenas Harvey Keitel - aqui a protagonizar o papel de responsável por uma tabacaria de bairro convertida em tertúlia de quem vive nas redondezas - deixa escapar um jovem delinquente, quando a vítima do seu furto ( Mia Sorvino) recusa a convocação da polícia para o prender.
As cenas subsequentes permitem compreender essa atitude de Auggie: tudo nele está a contracorrente dos cânones de uma atitude sensata. Ele ouve, por exemplo, a mulher do patrão (Roseanne) queixar-se da indiferença do marido e quase se deixa levar pelos seus beijos e abraços, que visam torná-lo cúmplice de uma fuga para Las Vegas. Ou promete a Violet (Mel Gorhan), que irá dançar com ela num sábado à noite e logo inventa para essa noite um álibi estapafúrdio.
Jim Jarmusch é outro que aparece na tabacaria a fumar o seu derradeiro cigarro e a conceptualizar ideias, mais tarde, traduzidas no seu «Coffee and Cigarettes». Cá fora um Michael J. Fox é um louco, de casaco e calções, que interroga um antigo colega de escola sobre Deus e outros problemas existenciais, até concluir com uma máxima definitiva: «Numa sociedade louca, o homem são deve parecer louco!»
Vários testemunhas abordam o acontecimento traumático, que mudou Brooklyn para sempre: a mudança da equipa de basebol, os Dodgers, para a Califórnia. Para garantir a especulação imobiliária dos terrenos aonde se situava o seu mítico estádio.
Algo de semelhante ameaça a tabacaria: atraído pela perspectiva de um bom negócio, Vinnie planeia vendê-la. Apesar da condenação de Auggie, que lhe faz ver a importância desse espaço de encontro na normalização do bairro. Por sorte, Dot convence-o, finalmente, a levá-la a Las Vegas. É de lá, que, reencontrado nos amores com ela adiados, Vinnie muda de ideias. Enviando a Auggie um telegrama cantado (ademais por Madonna).
Tanto basta para, em frente à loja, todo o bairro comungar num enorme «happening»: Auggie acaba por dançar com Violet e, nove meses depois, é ele quem oferece charutos aos amigos…
Apesar de curto nos meios, no tempo de rodagem e nos seus setenta minutos de duração, «Blue in the Face» é um belíssimo exercício, que nos devolve ao universo criativo de Paul Auster e ao prazer das histórias anónimas misturadas numa demonstração plena da especificidade de um bairro nova-iorquino a antípodas de distância dos valores da Quinta Avenida.

«KERAIN: UMA RECORDAÇÃO» - UM CONTO DO LIVRO «HISTÓRIAS INQUIETAS» DE JOSEPH CONRAD


Conhecemo-lo naqueles tempos de incerteza em que o facto de cada um ser dono de si e dos seus bens nos bas­tava para vivermos contentes. Nenhum de nós, julgo eu, possui hoje quaisquer bens e ouço dizer que muitos per­deram a vida negligentemente; mas estou certo de que os poucos que ainda vivem, não estarão tão faltos de vista que deixem passar, por entre as brumas da respeitabilidade dos jornais que lêem, as notícias sobre as várias insurreições de nativos no Arquipélago Malaio. O sol cintila entre as linhas desses curtos parágrafos — o sol e o mar resplandecente. Um nome estranho acorda lembranças; as palavras impressas impregnam levemente os fumos dos dias de hoje com o perfume subtil e penetrante das brisas da terra que atravessavam os céus estrelados das noites de outrora; o fogo dum posto de sinalização brilha como uma jóia no alto duma falésia; árvores de grande porte, sentinelas avançadas de florestas imensas, erguem-se, imóveis e vigilantes, sobre a extensão das águas adormecidas; a linha brancas da rebentação ressoa com estrondo numa praia deserta, os recifes cobrem-se de espuma; e, espalhadas na calma do meio-dia, flutuam ilhotas verdes na planura dum mar polido, como uma mão-cheia de esmeraldas num broquel de aço.
O início do conto - um dos primeiros, que Joseph Conrad publicou - endossa-nos, de imediato para a ambiência exótica da outrora designada Insulíndia, aonde o colonialismo europeu ia sobrevivendo, sem jamais conseguir empatia com a cultura aí predominante.
Os brancos comerciavam nessa região, tinham alguns entrepostos, mas viam as tribos locais guerrearem-se e alterarem os mais frágeis equilíbrios, sem entenderem muitas vezes as consequências dessas batalhas na sua presença futura ali.
Kerain é um dos chefes tribais a quem o narrador vendia armamento
Na sala do Conselho rodeava-o a gravidade dos chefes armados e duas longas filas de anciãos trajados de algodão preto, acocorados e com os braços repousando nos joelhos. Sob o telhado de colmo sustentado por colunas polidas, cada uma das quais custara a vida a uma palmeira jovem, o odor das sebes floridas passava em ondas quentes. O sol declinava. No pátio descoberto, os suplicantes avançavam desde o portão já de mãos postas sobre as cabeças inclinadas e curvando-se profundamente sob a luz do sol. À sombra duma grande árvore estavam sentadas raparigas com o regaço coberto de flores. O fumo azul das fogueiras subia, formando uma bruma ténue por cima dos telhados muito inclinados e sustidos a toda a volta pelos pilares de madeira das casas de juncos. Ele pronunciava a justiça à sombra; do alto dum
assento sobreelevado dava as ordens, o conselho, as repreensões. De tempos a tempos, um murmúrio de aprovação crescia e os homens de lança, encostados indolentemente aos pilares a olhar para as raparigas, voltavam vagarosamente as cabeças. A homem algum fora dado o refúgio de tanto respeito, duma tal confiança e dum temor assim. Contudo, por vezes inclinava-se para a frente e parecia ficar à escuta duma discordância longínqua, como se esperasse ouvir uma voz abafada, o som de passos leves; ou soerguer-se-ia bruscamente, como se lhe tivessem tocado familiarmente no ombro.
Na sua simplicidade, Kekain denota uma segurança de si, que irá tornar estranha a sua atitude subsequente. Na noite em que ele abandona os seus fiéis guarda-costas e aparece no navio comandado pelo narrador para pedir ajuda.
Por fim ele falou. É impossível dar o efeito da sua narrativa, pois esta é uma coisa viva que, embora seja hoje para mim apenas uma reminiscência, é a reminiscência duma vida que, como as emoções contidas num sonho, não pode ser transmitida na sua totalidade aos outros. Era necessário ter visto o esplendor natural deste homem, era necessário tê-lo conhecido antes — olhado para ele então. A luz vacilante e triste da pequena cabina; o silêncio que reinava lá fora e que só o lamber da água contra o casco da escuna perturbava; a cara branca de Hollis, de olhos negros e fixos; a cabeça enérgica de Jackson, enterrada em duas enormes mãos e com a longa barba loura derramando-se sobre as cordas da guitarra pousada sobre a mesa; a rigidez de Karain, a intonação da sua voz, tudo isso causava uma impressão inesquecível. Do outro lado da mesa, enfrentava-nos. A sua cabeça escura e o tronco bronzeado erguiam-se, brilhantes e imóveis como de metal fundido. Só os lábios se lhe mexiam, e os olhos luziam, apagavam-se, voltavam a acender-se ou ganhavam uma expressão fixa e triste. A sua expressão provinha directamente do seu coração atormentado. As palavras eram ditas em voz baixa, num murmúrio triste com o da água que corre; por vezes retumbavam alto como um gong de guerra — ou arrastavam-se como caminhantes exaustos — ou lançavam-no para a frente com a vertigem que o medo dá.
Imperfeitamente, isto é o que ele disse: — Foi depois das grandes convulsões que puseram termo à aliança entre os quatro Estados de Wajo. Guerreámo-nos uns contra os outros e os holandeses observavam de longe, à espera de ficarmos exaustos, Então o fumo dos seus navios de guerra mostrou-se à boca dos rios e os seus homens importantes vieram em barcos cheios de soldados falar-nos de protecção e de paz. Nós respondemos com prudência e saber pois as nossas aldeias tinham sido incendiadas, os nossos fortins eram fracos, o povo estava cansado e as armas embotadas. Eles chegaram e depois partiram; houve muitas palavras mas depois de se terem ido embora tudo voltou a ter o mesmo aspecto que antes, só que os barcos deles permaneciam à vista da costa, e passado pouco tempo os comerciantes deles vieram instalar-se junto de nós, sob promessa de que nada lhes aconteceria. O meu irmão era um Rajá e um dos que tinha dado essa promessa. Eu era muito novo na altura e tinha combatido na
guerra. Pata Matara tinha combatido ao meu lado. Tínhamos partilhado a fome, o perigo, o cansaço e a vitória. Os olhos dele viam o perigo que me ameaçava e por duas vezes o meu braço lhe salvou a vida. Estava escrito que teria de ser assim. Ele era meu amigo. E era um grande do Estado, um dos que estavam perto do meu irmão, o Rajá. Falava no Conselho, a sua coragem era grande, governava muitas aldeias à volta do lago que está no meio do nosso país como o coração está no meio do corpo dum homem. Quando a sua espada era transportada para um Kampong antes dele chegar, as donzelas segredavam extasiadas debaixo das árvores de fruta, os ricos homens reuniam-se em conselho, à sombra, e fazia-se um festim com muita alegria e canções. Pata Matara gozava da graça do Rajá e da afeição dos pobres. Gostava da guerra, de caçar o veado e dos encantos das mulheres. Possuía jóias, armas encantadas e a devoção dos seus homens. Era um homem valente; e eu não tinha outro amigo.
Quando um holandês consegue fugir com a prometida noiva de Pata Matara, Karain acede a acompanhá-lo numa expedição de vingança. Que o leva a percorrer todas as ilhas e costas do Sudeste Asiático e da Oceânia.
Mas a dúvida vai-se instalando até ao momento da descoberta dos fugitivos numa roça de Timor Leste. E, no momento decisivo, Karain mata o amigo antes de o ver disparar sobre os foragidos. Na verdade, durante aquela longa busca ele ganhara uma estranha atracção pela rapariga. Que lhe ia aparecendo nos seus sonhos.
A voz de Karain tinha-se vindo a tornar cada vez mais baixa, como se ele tivesse estado a afastar-se de nós, até que as últimas palavras soaram debilmente mas claras, como se gritadas num dia calmo e duma grande distância. Não se mexia. Olhava fixamente um ponto atrás da cabeça imóvel de Hollis, que estava de frente para ele e tão rígido como ele próprio. Jackson tinha-se posto de lado e com o cotovelo apoiado na mesa cobria os olhos com a palma da mão. E eu presenciava tudo isto, surpreendido e emocionado; olhava para aquele homem fiel à sua visão, traído por um sonho, repelido por uma ilusão e que vinha até nós, os frios e duros, os que não acreditam em nada, em busca de auxílio — contra um pensamento. O silêncio era profundo; mas parecia de silenciosos fantasmas, coisas dolorosas, imateriais e mudas, contra cuja presença invisível o firme tiquetaque dos dois cronómetros de bordo que marcavam sem cessar os segundos do Tempo de Greenwich, me pareciam uma protecção e um alívio. Karain estava petrificado; e ao contemplar a sua figura rígida, eu pensava na sua vida de vagabundo, naquela obscura odisseia da vindicta, em todos os homens que erram entre ilusões; pensava nas ilusões tão agitadas como os homens; nas ilusões fiéis e infiéis; nas ilusões que dão alegria, que dão tristeza, que dão dor, que dão paz; nas ilusões invencíveis que podem fazer com que a vida e a morte se revelem serenas, inspiradoras, atrozes ou ignóbeis.
Ouviu-se um murmúrio; aquela voz longínqua parecia vir dum inundo de sonho e espalhar-se sob a luz do candeeiro de cobre. Karain voltou a falar:

Vivi na floresta.
Ela não voltou a aparecer. Nunca mais! Nem uma só vez! Vivia sozinho. Ela tinha esquecido tudo. Estavabem. Eu não a queria; não queria ninguém. Encontrei uma casa abandonada junto a um terreno desbravado e abandonado havia muito. Ninguém se aproximou de mim. Às vezes ouvia ao longe as vozes de pessoas que passavam num caminho. Dormia; descansava; tinha arroz selvagem, água dum regato — e paz. Sentava-me, à noite, à beira da minha pequena fogueira, à frente da cabana. Muitas noites passaram sobre mim.
Então, um dia, ao fim da tarde, estava eu sentado à fogueira depois de ter comido, e comecei a recordar-me das minhas peregrinações, de olhos postos no chão. Ergui a cabeça. Não tinha dado por nenhum som, não ouvira restolhar de passos — mas ergui a cabeça: um homem caminhava para mim através da clareira. Fiquei à espera. Ele chegou-se sem qualquer saudação e acocorou-se junto à fogueira. Então voltou a cara para mim. Era Matara. Fitava-me ferozmente com os seus olhos grandes e profundos. A noite estava fria. A fogueira perdeu subitamente todo o calor e ele olhava-me fixamente. Levantei-me e afastei-me, deixando-o junto ao fogo que não dava calor.
Caminhei toda a noite, todo o dia seguinte e ao fim da tarde fiz um braseiro enorme e sentei-me — à espera dele. Não se aproximou da luz. Ouvia-o entre os arbustos, aqui e ali, a segredar, a segredar.
A exemplo do coronel Kurtz ou do capitão de «Linha de Sombra», os personagens ficam assombrados por uma culpabilidade assassina, que os afunda na irracionalidade.
Neste caso é Hollis, um dos tripulantes, quem arranja um amuleto, que afasta o fantasma de Pata Matara. Que o perseguia Karain para qualquer das direcções por ele tomadas.
Anos depois, já na Europa, o narrador encontra outro elemento dessa tripulação e recordam esse estranho personagem.
Que não mais se apagara das respectivas memórias
!
- Lembras-te de Karain?
- Fiz que sim com a cabeça.
- Olhar para estas armas fez-me pensar nele — continuou, com a cara quase colada ao vidro... e pude ver um outro homem, forte e barbudo, que olhava de lá intensamente, de entre os canos negros e polidos que podem curar tantas ilusões. — Sim, fez-me pensar nele — continuou, lentamente: — Hoje de manhã vi num jornal; há lá guerra outra vez. Ele está metido de certeza. Vai dar que fazer aos caballeros. Bom, que tenha sorte, pobre diabo! Ele era formidável!
Continuámos a andar.