quinta-feira, julho 30, 2020

(DIM) «Fevereiros» de Marcio Debellian (2017)


Em 2016 a Mangueira foi a escola campeã do carnaval do Rio de Janeiro num ano em que o seu samba enredo homenageava a religiosidade de Maria Bethânia na mistura sincrética entre o catolicismo e o candomblé. Sabendo desse projeto o realizador Márcio Debellian planeou criar uma longa-metragem que se focalizasse na preparação do cortejo, ouvindo o seu criador, Leandro Vieira, mas também acompanhando a cantora na cidade natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano. Comprova-se obrigatória a sua presença a 2 de fevereiro, quando se celebra anualmente a festa em honra de Iemanjá e da Senhora dos Navegantes, compromisso que vem de quando a mãe, Dona Canô, era viva, mas depois sempre respeitado.
Um historiador, Luís António Simas, explica como as crenças africanas trazidas pelos escravos se misturaram com as dos índios e se repercutiram nos rituais católicos atrás dos quais escondiam a sua verdadeira natureza perante as proibições da Igreja e dos governantes. Mabel Velloso, irmã de Bethânia, conta como, sendo mais negra do que ela, viu-se impedida desde criança de personificar a Virgem nas procissões. Caetano lembra como Julio Cortazar coincidiu paradoxalmente com a Mãe Menininha do Gantois em como ele e a irmã eram um só e por isso mesmo, quando Bethânia fez o santo, a conhecida Ialorixá exigiu que os dois irmãos partilhassem a cerimónia. Igualmente chamado a testemunhar, Chico Buarque lembra como, sendo profundamente ateu, a religiosidade da amiga só não o deixava indiferente por achar bela a idiossincrasia por ela tanto interiorizada.
O documentário de Debellian é fundamental para compreender melhor o universo musical de Maria Bethânia. E recolher as chaves interpretativas para muitos dos poemas que canta ou declama em espetáculos tão do nosso rendido agrado.

quarta-feira, julho 29, 2020

(DL) Mulheres insatisfeitas, aprendizes de escritores e um padrinho na Casa Branca


1. Escritora californiana com pouco mais de trinta anos, Emma Cline é considerada uma das mais prometedoras autoras da literatura norte-americana dos anos vindouros. Em Portugal já lhe pudemos ler As Raparigas, romance passado no verão de 1969, quando uma adolescente solitária se deixava fascinar pela descontração de outras raparigas num parque.  É tema muito semelhante ao do conto Los Angeles em que Alice chega à cidade do cinema para aí singrar como atriz. Para se sustentar arranja emprego numa loja de roupa de marca e assegura-se que a mãe lhe paga os cursos de interpretação julgados necessários para conseguir a sua oportunidade. Porque, a falhá-la, não consegue imaginar-se como poderá suportar uma vida tão cinzenta quanto a de mera empregada numa qualquer loja.
Imitando uma colega de trabalho começa a ganhar uns cobres complementares com a venda da sua roupa interior usada, que homens doentios estão dispostos a pagar para que ela lhas entregue em locais públicos onde possa sentir-se protegida. Até ao dia em que um deles a insta a entrar no carro para lhe pagar, a tranca lá dentro, deixando-nos a nós, leitores na ignorância se lhe voltará ou não a abrir a porta.
2 . Han Kang é uma escritora coreana, que suscita entre nós algum entusiasmo, desde que dela se publicaram A Vegetariana e Atos Humanos.
No conto O Fruto da Minha Mulher um narrador conta como começaram a aparecer manchas negras e indolores no corpo da mulher sem que o médico nela detetasse qualquer motivo para as apresentar. Depressa desconfiamos que a jovem, de apenas 29 anos, está acometida de profunda depressão, justificada por viver num sítio que considera apodrecido: no décimo terceiro andar de um prédio rodeado de outros exatamente iguais e com o ar poluído a tornar quase irrespirável o ar.
A situação vai-se agravando e o narrador apenas denota o profundo egoísmo de se sentir lesado na perda do bem estar trazido pelo casamento quatro anos atrás. Um dia, ao regressar a casa, depois de uma viagem de negócios ao estrangeiro, vê acentuado o processo de transformação da mulher: na marquise ela deixou a forma humana e convertera-se numa árvore. Que seca na estação outonal, mas promete reflorescer ao chegar a primavera.
A metáfora é engenhosa, a escrita fluida, embora desconcerte a inserção dos pensamentos da mulher, quando já na nova condição, porque dela só conhecêramos a versão do marido enquanto ainda não se convertera num vegetal.
3. No Manual de Sobrevivência de um Escritor João Tordo lembra o conselho de Aristóteles para os aprendizes de feiticeiro nas artes da escrita: “Se queres escrever bem pensa como um sábio, mas expressa-te como as pessoas comuns.” E o de E.B. White: “Não escrevas sobre o Homem, escreve sobre um homem.” Sobre o qual não se conte tudo, mantendo uma margem de sugerido, porque senão, segundo Voltaire, estaria garantido ser chato.
Interessante, então, a forma como João Tordo sugere o trabalho da escrita: o seu autor é como o oleiro sem forno, que vai moldando laboriosamente o romance, tendo o cuidado de saber que o primeiro molde é inconsistente, uma espécie de plasticina húmida que ainda não servirá.
Ele avisa, igualmente, quão perigoso pode ser esse trabalho, quão difícil será sair dele incólume. Porque exige esforço, deixa um lastro pesado e abre uma clareira em volta de quem nele se arrisca.
4. Un Parrain à la Maison Blanche aparece na altura certa, quando faltam cem dias para a eleição que definirá o futuro de Donald Trump. Fabrizio Calvi, o seu autor, é um jornalista respeitado, que esteve ligado ao «Libération» desde a sua criação. Agora juntou documentos comprovativos em como o pato bravo nova-iorquino conseguiu a sua fortuna ao associar-se à Mafia, que lhe permitiu vencer a concorrência, mormente através do recurso a sindicatos controlados pela associação criminosa. Comportando-se como um Padrinho contou com a ajuda de Roy Cohn, célebre advogado, que fora cão de fila do senador McCarthy na época da caça aos comunistas e sempre defendeu as causas mais consonantes com os interesses da mais extrema direita norte-americana. E ainda hoje conta com réplicas desse tipo de colaboradores como é exemplo esse Roger Stone que, escandalosamente, indultou para não cumprir a pena de prisão decidida judicialmente e por ele enviado de visita a Julian Assange, quando quis da Wikileaks a publicação de documentos pirateados a Hillary Clinton.
Donald Trump na Casa Branca não é apenas uma história de fanatismo ideológico na cúpula do poder norte-americano. É, sobretudo, o crime organizado a aceder a tão perigosa ascensão.

(P) A Rapariga da Neve de Rimsky Korsakov.

(DIM) Os contrastes entre o desespero e quem o consegue relativizar


1. Explicando as razões porque dará tanto ênfase à filmografia de Pedro Costa no próximo Motel X - festival de cinema de terror a decorrer no São Jorge em setembro - um dos seus responsáveis apresentou razão pertinente: os personagens dos filmes do realizador são verdadeiros zombies numa sociedade, que os ignora, os marginaliza, só lhes oferecendo um futuro negro, desesperante.
Ossos é disso exemplo óbvio: existia um tal desejo de morte nos personagens, que viviam num permanente pesadelo entre as noites sem fim e as ruas estreitas de um bairro onde o sol quase não entrava. Estreado no Festival de Veneza em 1997 começava com o nascimento de uma criança, que iria sobreviver a várias mortes possíveis: a mãe tentava suicidar-se abrindo o gás do fogão, o pai levava-a ao colo quando ia mendigar nas ruas e por duas vezes tentava vendê-la. Era a miséria dos que viviam nas Fontainhas, bairro da Amadora, que seria demolido dois anos depois. E labirinto onde uma enfermeira tendia a perder-se.
Meio documentário, meio ficção, o filme remetia para as preocupações do neorrealismo italiano, mas ia mais longe ao assumir-se como obra aberta, ausente, consciente de não o poder ser. Houve quem detestasse, houve quem muito elogiasse. Como acontece naquele tipo de propostas, que a ninguém deixa indiferente. E por isso valem pelo que incomodam, fazem refletir ou, de algum modo, fascinam.
2. Foi a cidade onde Petrarca nasceu há quase setecentos anos. E também aquela onde Roberto Benigni rodou boa parte de A Vida é Bela. Arezzo é a cidade medieval da Toscânia onde o ator-realizador decidiu fixar-se, porque nela viu as aves a voarem nos céus e, poeticamente, a deles caírem mulheres. Como sucedeu a Guido, o dono de uma livraria, que se enamorou da bela Dora e com ela casou, apesar da oposição da burguesia local a que ela pertencia. Sobre a habilidade com que iludia o filho a respeito da realidade por ambos partilhada no campo de concentração para que eram levados, todos nos lembramos. Mas a cidade é um espaço privilegiado onde os amores dos protagonistas evoluiam de acordo com as suas características. A praça central com as suas linhas geométricas e contrastes cromáticos. A parte alta com o miradouro junto à Catedral. A mansão estranha onde Guido resgatava Dora montado num cavalo. A cidade ajustou-se a um criador sempre apostado em explorar a elasticidade dos personagens.
Enriquecida pela banda sonora de Morricone, que lhe enfatizava as emoções, A Vida é Bela tinha muito desse estado de espírito toscano em que se relativiza a gravidade das coisas e a ironia tende a conjugar-se com a poesia.