domingo, abril 29, 2007

SINGAPURA SEGUNDO MONTALBAN

Há certas leituras, que me fazem confrontar com uma evidência: sítios houve aonde estive, que desaproveitei por não ter cultura suficiente para os saber aproveitar devidamente.
Essa evidência surgiu-me, uma vez mais, na leitura de «Milénio», o livro do Manuel Vasquez Montalban, com que ele se despediu da vida. Neste momento, Pepe de Carvalho e Biscuter estão em Singapura e surge-lhes como obrigatória uma visita ao Hotel Raffles, um edifício mítico, que a escrita de Somerset Maugham e de outros escritores eternizou.
Ora acontece que tendo estado tantas vezes nessa cidade da ponta sul da península malaia e aí chegando a permanecer dias inteiros - nomeadamente quando me mudei do «Fernando Pessoa» para o «Team Trinta» em escala no norte da Austrália - e passou-me ao lado tal edifício.
É certo que o dinheiro não abundava e que, segundo Montalban, cada noite aí passada mede-se pelos milhares de dólares, mas teria sido perfeitamente possível entrar no seu hall e, quiçá, beber um sumo de laranja no seu bar. Seria uma forma de sentir que fizera algo de significativo ali para além de um memorável jantar no último andar do mercado local ou da compra de uma écharpe com motivos picassianos no seu Bairro Chinês.
A sensação, que me fica é a de ter conquistado alguma cultura desde muito cedo, mas ter ficado muito aquém da erudição necessária para ter registado do meu passado de andarilho pelo mundo as memórias necessárias para delas extrair alguns textos literários com potencial, se não pelo estilo, pelo menos pelo que de diferente pudesse neles estar contido.

segunda-feira, abril 23, 2007

A alegria dada por Ségolène e o epílogo de um oportunista

A passagem de Ségolène Royal à segunda volta das eleições francesas, aonde irá encontrar o inefável Sarkozy, veio desarmar a intensa campanha que, quer em França, quer em Portugal, a davam como potencialmente derrotada, fosse pelo cinzento Bayrou, fosse, mais recentemente, pelo sinistro Le Pen.
Os eleitores franceses foram em massa às urnas e deram a resposta adequada a esses arautos do crepúsculo da esquerda.
Em 6 de Maio vão confrontar-se, de facto, dois projectos bem distintos de sociedade: por um lado uma direita musculada, que vê na expulsão dos que são diferentes em cor e/ou em credo, para corresponder à óbvia decadência gaulesa na sociedade das nações.
Por outro lado, uma mulher bonita e inteligente, que acredita na possibilidade de tornar a esquerda resiliente às mudanças, tornando-a capaz de dar as mais eficazes respostas aos difíceis desafios do futuro.
As armas de ambos são desiguais ou não tenha Sarkozy o apoio dos interesses capitalistas, que tomaram de assalto os órgãos de informação para influenciarem a opinião pública com as suas campanhas (des)informativas.
Mas há em Ségolène a imagem serena de quem acredita na capacidade colectiva para superar os problemas de hoje e de amanhã, que pode fazer regressar a França à esperança de 1981, quando Mitterrand encarnou uma verdadeira revolução tranquila.


A morte de Boris Ieltsin é daquelas, que lembra uma velha expressão: já há muito que a História o atirara para o caixote do lixo e ele insistia em negar-lhe o último dos ritos, o do enterro.
É claro que, nesta altura, os políticos, os jornais e as televisões vão acotovelar-se a encontrar fórmulas simpáticas para designar um oportunista, que foi um fiel seguidor de Brejnev enquanto o poder soviético ainda mantinha uma certa aparência de sustentabilidade, mas logo virou o bico ao prego ao constatar o fracasso completo da campanha no Afeganistão e a desigualdade de capacidade militar em relação aos Estados Unidos.
Interpretando o sentido da História, que impunha o fim do projecto político outrora lançado por Lenine, por Trotski e por Estaline, ele aproveitou a fraqueza de Gorbatchov para chegar ao poder num autêntico golpe de Estado.
O que se sucedeu já se conhece sobejamente embora surja muito escamoteado pelos que defendem a estratégia do arrivista: um enriquecimento obsceno de uns quantos oligarcas à sombra do novo senhor do Kremlin e a terrível pauperização de milhões de antigos cidadãos soviéticos atirados para condições de nacionalidade completamente abstrusas - tajiques, cosaques, chechenos, uzbeques, azeris e tantos mais.
Guerras civis e a ruína do tecido produtivo anterior a 1989 conduziram populações inteiras a atroz miséria. E esse é o legado do oportunista, que hoje morreu...

segunda-feira, abril 09, 2007

«REIS E RAINHA»: PERSONAGENS COM DENSIDADE

Nora tem 35 anos e é mãe de Elias, o miúdo que tivera do seu primeiro marido, esse Pierre precocemente falecido num acidente estúpido do qual a sua responsabilidade não fora totalmente demonstrada.
Agora a vida corre-lhe bem: dirige uma galeria de arte parisiense há seis meses e prepara-se para casar com um namorado imensamente rico.
Para trás deixou, igualmente, um segundo companheiro, Ismael, violetista problemático agora a contas com um internamento coercivo numa instituição psiquiátrica.
Mas a vida está em vias de lhe dar umas inesperadas lições quando acorre a Grenoble para ir buscar o filho, por algumas semanas alojado em casa do avô, e constata que Louis está prestes a morrer, vítima de um cancro generalizado.
Esse reencontro com a morte e os seus rituais vai obrigá-la a recordar esse passado e clarificar as razões porque o próprio pai lhe confessa o desgosto, que lhe causa a evidência do seu egoísmo.
Mas o filme é também sobre Ismael e a forma como ele irá evoluir na sua experiência no manicómio, ora denotando uma tremenda agressividade para com as mulheres - e a terapeuta interpretada por Catherine Deneuve num pequeno papel bem lhe atura as cenas emotivas - , ora sentindo por uma parceira de infortúnio (Arielle) uma notória solidariedade.
E outros personagens complexos se vão sucedendo: Jean Jacques, o impotente noivo de Nora; Elizabeth, a problemática irmã de Ismael, responsável pelo seu internamento, que o acusa de ele ter pretendido obrigá-la a ser outra que não ela; Chloe, a não menos desequilibrada irmã de Nora, que vive no fio da navalha e na maior das indigências; Mammane, o advogado de Ismael, viciado em comprimidos alucinogéneos; Christian, o novo líder do quarteto a que ele pertencia, e decidido a empurrá-lo para o manicómio como forma de eliminá-lo da direcção criativa desse grupo; Virag, o editor de Louis, que é indiferente ao sofrimento e à iminente morte do autor, para só se interessar pelos seus escritos derradeiros, o pai do músico, que domina em Roubaix os mais desesperados delinquentes, quando lhe procuram assaltar a mercearia.
O filme não se reduz, pois às excelentes interpretações de Emmanuelle Devos e de Mathieu Amalric. Todos os personagens, mesmo secundários, têm direito à expressão da sua complexidade própria e ostentam por isso a sua própria substância.
«Reis e Rainha», o filme sobre que aqui escrevo, é um belíssimo título do realizador Arnaud Desplechin. Que dá sobeja demonstração da superioridade do cinema europeu, quando trata as pessoas com o respeito devido à sua consistente realidade íntima…

KEVIN CARTER: A OBSCENA DICOTOMIA DE UMA FOTOGRAFIA

É uma fotografia terrível já com catorze anos: no Sudão uma miúda já não tem forças para chegar ao campo de refugiados a um quilómetro dali e tomba de exaustão, de derrota. Ali perto, um abutre aguarda: ele sabe quão pouco falta para ter acesso a um a nova refeição.
O autor desta fotografia, premiada em 1994 com o Pulitzer, foi o sul-africano Kevin Carter, que já parecia vacinado contra todos os terrores por si presenciados em sucessivos cenário de guerra. E só sobreviveria quatro meses a essa consagração, já que deprimido pelo facto de não ter ajudado a criança a encontrar a salvação, se suicidou com monóxido de carbono com apenas 33 anos. Na nota, que acompanhou o seu gesto derradeiro, ele confessava o paradoxo de se sentir como outro urubu na mesma imagem: tal qual o necrófago, ele aguardara longos minutos pelo voo rasante da ave até se decidir a captar assim a imagem e a afastar depois o urubu…
Jornalista com consciência, Kevin Carter não se conformara com o seu papel face a um drama humano, que o ultrapassava.
No drama da criança exangue está bem presente essa obscena dicotomia entre um ocidente abastado e voyeur perante um cenário africano pejado de terríveis vinganças…

quarta-feira, abril 04, 2007

UMA CAMPANHA DE QUEM NÃO TEM MAIS ARGUMENTOS

Na campanha, que se vem atiçando contra o Primeiro-ministro e contra o Governo por ele dirigido - por coincidência particularmente intensa desde o fracasso da OPA da SONAE sobre a PT - existem três vertentes, que estão a ser intensamente exploradas:
· a primeira tem a ver com o aeroporto da OTA. Aos comentadores de pouco importa que os anteriores Governos e os respectivos titulares tenham sido, igualmente, apoiantes da existência de um novo aeroporto na margem norte do Tejo. Descoberta uma arma de arremesso com aparente potencial, os antigos apoiantes da ideia mudam de direcção e enfatizam os argumentos de quem agora vem propor exactamente o contrário. É caso para dizer que não fizeram, nem querem deixar fazer;
· a segunda relaciona-se com o perfil académico de José Sócrates e lembra a campanha difamatória, que lavrou na sombra antes das anteriores legislativas. Nessa altura, e bem, o Primeiro-ministro respondeu com o silêncio aos boatos indignos, que exploravama a tese da sua suposta ambiguidade sexual. Como então, o que está em causa não é a, por demais demonstrada capacidade do político para exercer o mister da governação, mas procurar enlameá-lo com a perfídia da suspeição para eventualmente lhe tolher a conhecida determinação.
· a terceira e mais recente estratégia decorre das supostas pressões de assessores do Governo para condicionarem a informação dos jornais e das televisões. Assim, um texto como este lavrado por alguém que nada tem a ver com o Governo, nem sequer conhece um único dos seus elementos, é logo tido como pressão inadmissível do Governo, mesmo que seja tão só o direito de expressão de um cidadão preocupado com o papel perverso de uma comunicação social em manifesta desigualdade de tratamento perante os protagonistas da nossa actividade política.
O que, hoje, a nível político se verifica é a explicita constatação pelos resultados da eficácia da acção política do Governo, sem dar azo às Oposições para se mostrarem credíveis em estratégias de interesse nacional alternativas.
E é essa a razão fundamental para a insidiosa tentativa de manipulação, que blogs, jornais e televisões ensaiam como forma de chegarem aos seus fins sem olharem a meios,

segunda-feira, abril 02, 2007

XANANA AO SERVIÇO DOS INTERESSES AUSTRALIANOS

É cada vez mais óbvia a estratégia de Xanana Gusmão para o seu futuro político em Timor Leste.
A História tem destas coisas: heróis de pés de barro, que pretendem modificar o curso dos acontecimentos por conta do papel mistificador neles previamente vincado.
Sobre o suposto heroísmo de Xanana ainda muito está por demonstrar: as vicissitudes do turbulento processo, que conduziu à independência levou-o a representar um papel muito mais relevante do que resultaria das suas capacidades e convicções.
Está quase esquecido para a maioria, mas há quem não esqueça a estupefacção com que foram recebidas palavras suas de apelo à submissão ao invasor indonésio, quando ainda estava preso e havia quem lhe queria atribuir a grandeza de um Mandela.
Estará, igualmente, por esclarecer o papel desempenhado na sombra por Kirsty Sword, cuja intervenção política mais se assemelha à de uma agente infiltrada australiana na política timorense do que à de primeira dama.
Não é por acaso, que a conspiração terminada com a queda de Mari Alkatiri como primeiro-ministro, teve origem na firmeza com que este político defendeu os interesses do seu país quanto à distribuição das reservas petrolíferas na plataforma continental, que separa Timor Leste da Austrália e que esta viu urgência em derrubar.
Infelizmente o papel do país dos cangurus é demasiado interventor na política timorense, o que pode conduzir à derrota política da Fretilin. Mas Xanana enquanto herói da independência timorense é cada vez mais uma dúvida legítima que assalta quem o vê como mera marioneta dos interesses do seu influente vizinho.