sexta-feira, janeiro 31, 2020

Diário de Leituras: O Amor como busca do absoluto


Alain Fournier morreu na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914, quando já vira publicado alguns extratos do seu único romance - «Le Grand Meaulnes» - na «Nouvelle Revue Française», de que o cunhado, Jacques Rivière, era secretário. E ficaria sempre a questão de se saber até que ponto a celebridade ganha com esse único título teria durado acaso lhe conhecêssemos obra mais vasta propiciada por vida mais longa. Acredito que ninguém arrisca uma resposta, porque «O Grande Meaulnes» foi escrito em circunstâncias únicas, quase autobiográficas, nascido do fascínio de Fournier por uma beldade, Yvonne de Quiévrécourt, no ditoso dia em que com ela se cruzou na visita a uma exposição no Grand Palais. Embora tudo fizesse para se lhe aproximar, Yvonne representaria para ele a paixão impossível na fronteira dos sonhos irrealizáveis, tanto mais que a soube casada em 1907.
Traduzir essa assolapada paixão no papel e transportá-la para a paisagem da sua infância foi a estratégia mais expedita para construir uma trama, que fascinou gerações sucessivas de adolescentes, entre os quais me incluí, já que li o livro, quando andava nos treze, catorze anos, e dele colhi a ideia de que o sentimento amoroso teria de ser precisamente assim.
François Seurel, filho dos professores da escola, que Augustin Meaulnes frequenta, é o narrador da história, que arranca verdadeiramente quando, numa escapada noturna, esse condiscípulo dá com um estranho castelo povoado de artistas, saltimbancos e crianças para ali convocados porque o anfitrião, o jovem Frantz de Galais, vai anunciar o noivado com a bela Valentine.
Só que a festa depressa acaba, porque a noiva não marca comparência. Mas Augustin fica embeiçado por Yvonne, a irmã de Frantz, que passará a povoar as suas obsessões amorosas. Razão porque, ao sabê-la em Paris, para lá parte à procura, sem o conseguir.
Vale-lhe, tempos depois, o próprio François, que consegue pô-los em contacto e até propiciar-lhes o casamento. Mas a esperada felicidade não lhes vem ao encontro, porque veem-se condicionados pela permanente tristeza do abandonado Frantz. E depois de dar-lhe uma filha, Yvonne morre, deixando Augustin sozinho a cuidar da criança. Só que François acaba por descobrir o outro lado da tragédia: na estadia em Paris, Augustin encontrara Valentine e fora seu amante. Agora, para ressarcir-se de quanto fizera infeliz Yvonne, acaba por devolver ao cunhado a efémera amante, que este nunca deixara de querer reconquistar...

Galerias: A infância que moldou Kazimir Malevich


Confesso que nunca dei a Malevich outra importância que não fosse a de reconhece-lo como um dos primeiros artistas abstracionistas do século XX e nome incontornável das vanguardas soviéticas logo após a Revolução de Outubro. O Suprematismo, de que era um dos principais expoentes, parecia anunciar a chegada de uma expressão estética sem os constrangimentos até então conhecidos.
Desconhecia-lhe, porém, a importância de ter crescido na aldeia ucraniana de Parjomovska onde, nos últimos anos do séc. XIX, os camponeses plantavam beterrabas para os operários transformarem em açúcar na fábrica local. Era nela que o pai do jovem Kazimir trabalhava, mas o rapaz só tinha olhos para as cores e as linhas geométricas dos campos em redor: “contemplava admirativamente os camponeses como se fossem manchas de cor a removerem as ervas daninhas nos campos”. E agradava-lhe, igualmente, colaborar com esses mesmos camponeses nas pinturas murais, que faziam nas paredes dos casebres, utilizando motivos florais ou galos por simbolicamente comportarem os melhores dos augúrios.
A Revolução de 1917 entusiasmou-o, mas depressa se desiludiu, quando o poder bolchevique cerceou a criatividade das suas vanguardas, que acusou de formalistas. Ademais as notícias da Grande Fome na Ucrânia demonstraram-lhe a pior faceta do estalinismo em ascensão. Foi por essa altura que se deixou influenciar pelos ícones das igrejas ortodoxas, nos quais identificou a mais genuína expressão artística do povo.
Estigmatizado pelo poder, Malevich passou várias vezes pela prisão até morrer em 1935, quando vivia na maior das pobrezas...

Palcos: Andreas Scholl a cantar «Greensleeves»

Diário das Imagens em Movimento: «Nenhum Homem era dela» de Mitchell Leisen (1950)


Soberba foi a época em que a indústria cinematográfica norte-americana socorreu-se dos romances policiais de escritores talentosos e criou um género - o do filme negro! - que serviu de válvula de escape quando os piores fantasmas do macartismo assaltaram Hollywood e fomentou a nefanda Lista Negra.
O autor do romance, que permitiu ao competente artesão Mitchell Leisen a criação deste filme, foi Cornell Woolrich e isso bastou para garantir uma intriga bem construída. E depois contou com Barbara Stanwyck, atriz sempre dotada para este tipo de papéis dúplices, entre a vontade de agir de uma forma e as pressões, que a obrigam a comprometer-se nos gestos contrários.
O filme começa logo por nos confrontar com um dilema: há um bairro tranquilo numa cidade de província e, numa das mansões mais vistosas, um casal sabe que a polícia está prestes a chegar para os vir buscar. Tudo se conjuga para que possam ser felizes, mas os acontecimentos precipitavam-se para de tal os impedir.
Temos, então, o flash back, que nos faz recuar ao dia em que Helen Ferguson, grávida de oito meses, foi escorraçada pelo amante, já rendido aos encantos de outra rival.
Regressando a São Francisco, donde era natural, ela é uma das poucas sobreviventes do acidente ferroviário, que mata nomeadamente o casal Harkness, por quem fora acarinhada no breve trecho da viagem em que os conhecera.
Em coma é identificada como Patrícia Harkness, que fazia essa viagem para conhecer a família do marido, até então sua desconhecida. E, porque essa vítima do acidente também estava grávida de sete meses, ninguém estranha que o seu bebé fosse identificado e recebido com entusiasmo pela família desse defunto casal, que vê na «nora» e no «neto» a compensação para as dolorosas perdas sofridas.
Nos meses seguintes a integração de Helen no papel de Patrícia decorre quase sem incidentes, embora alguns lapsos ponham de sobreaviso o irmão de Hugh Harkness, e seu quase sósia, que desconfia da verdadeira identidade da «cunhada». Mas, porque ela encanta-o nada diz e até a vai ajudar quando o ex-amante dela aparece na cidade a chantageá-la de forma a abocanhar parte significativa da potencial fortuna, quando os velhos sogros morrerem. Numa noite em que Steve forçara-a a um casamento, que o oficializa como co-herdeiro do que a ela couber nessa circunstância, acaba morto a tiro e compreendemos ser essa a razão da iminente chegada da polícia no início do filme.
Helen não pode mais esconder de Bill o logro que, quase involuntariamente, construíra, mas ele reage com a elevação de quem está enamorado: “"I don't care who you were, what you've done. I love you, don't you understand ? I love you (...) As far as I'm concerned you were born the day I met you. What happened before doesn't even exist. The name the girl I love is Patrice. She has no other name."
Como seria de esperar o happy end é o que mais afeta a verosimilhança da história, embora desde início soubéssemos da promessa da sucessora feita a Steve pela nova amante: tentasse ele escorraçá-la como o vira fazer á antecessora e não enfrentaria a mesma passiva resposta. É o que a polícia vem revelar para alívio das plateias dos cinemas em que o filme se estreou: fora ela a antecipar-se à rival na decisão de matar o amante tão só soubera do súbito casamento.
Os espectadores dos anos 50 não estariam disponíveis para outro desenlace, que não esse.

quinta-feira, janeiro 30, 2020

Diário de Leituras: Nos romances de Modiano o mundo é deveras pequeno!


Por muito que pareça ser mais do mesmo, gosto sempre de ler Modiano. E, a exemplo do que sucedera, com Le Clézio, apreciei bastante que a Academia Sueca o tivesse contemplado com o Nobel em 2014. Porque premiou um estilo inconfundível e um universo narrativo, que possui a sedução dos mistérios radicados em ambientes instáveis, porque povoados de personagens semelhantes a funâmbulos em permanente risco de se despenharem do estreito fio em que se julgam avançar.
«Encre Sympathique», o título mais recente do autor, lançado pela Gallimard no final do ano transato, retoma o seu tema mais constante: há um narrador à procura de alguém, multiplicando encontros casuais em que a investigação vai avançando. Ele é Jean Eyben, que reabre uma pequena pasta com documentos das breves semanas em que trabalhara para a agência Hutte trinta anos atrás. Fora-lhe então destinada a missão de encontrar uma tal Nöelle Lefebvre, que trabalhara nos armazéns Lancel da Praça da Ópera e costumava frequentar uma boîte chamada La Marine.
O insucesso dessa busca marcara-o suficientemente para, espaçadamente nas décadas seguintes, ir acumulando informações sobre alguns homens que a haviam conhecido: um Gérard Mourade, que fora efémero ator de teatro e de cinema, conhecido pela megalomania; um Roger, com quem ela se casara e não conseguia assentar em nenhum emprego; um Sancho, que aparecia em Annecy com o seu descapotável e lhe legara o apelido por que se fazia chamar; Georges Brainos, que tinha um castelo onde passara alguns meses. Às tantas Jean chega a ansiar que a agenda de Nöelle, um dos documentos da pasta, tivesse sido escrito nessa «tinta simpática» do título, invisível durante uns anos, mas depois destacando-se nítida nessas páginas, mais pródigas em perguntas do que em respostas.
Os nomes nela referenciados, presumivelmente secundários, na vida da rapariga, tinham entrado e saído de cena, sem nunca se saber donde tinham emergido e em que exílio acabaram por se fazer esquecidos. Como nunca se chega a perceber do que vivem, porque os negócios ou empregos em que se dizem vinculados, parecem demasiado precários para justificarem um estilo de vida hedonista.
Nas últimas páginas Modiano liberta Eyben do seu papel e confia à omnisciência do leitor o desenlace: acontece em Roma, onde encontra Nöelle e tudo se prepara para que, no dia seguinte àquele em que o romance chega ao fim, ambos partilharão as verdadeiras identidades. Nomeadamente, que afinal essa duradoura procura voltava a juntar aqueles que tinham sido dois adolescentes de Annecy tantas vezes atentos um ao outro, quando apanhavam o mesmo autocarro, ela a voltar para casa depois do emprego de criada num hotel ou num restaurante e ele de regresso ao pensionato onde estava matriculado como aluno interno.
Donde se conclui que, para Modiano, o mundo é pequeno o bastante para que reencontremos quem há muito julgáramos remetidos para as catacumbas da memória.

Palcos: Ton Koopman a interpretar a Sonatina de «Actus Tragicus» de J. S. Bach

Diário das Imagens em Movimento: «Ao Encontro da Guerra e do Amor» de Peter Hyams (1979)


Este filme representou para Harrison Ford a possibilidade de encabeçar um elenco cinematográfico pela primeira vez mas, não só recusou ver o resultado final ou sequer promove-lo, como confessaria ter sido uma rodagem que detestara viver. Mas, convenhamos que, tendo de as interromper para ir num saltinho a Los Angeles para se divorciar da primeira mulher, a vida pessoal não estava então a correr-lhe de feição.
Peter Hyams, o realizador, também estava num período complicado: os títulos que, anteriormente, assinara, tinham fracassado e estava quase sem cheta e com a família a cargo dela constando duas crianças de tenra idade.
Perante as vicissitudes por que passavam os principais envolvidos neste projeto, não se pode dizer que Hanover Street delas padeça: não é um daqueles filmes de ficar de queixo caído, mas como variante de Casablanca ou de Waterloo Bridge, não se sai particularmente mal.
Estamos perante um triângulo amoroso, centrado em Margaret, uma dona-de-casa, que faz serviço voluntário de enfermeira nos hospitais militares e divide os afetos entre Paul, o marido que não a encanta, mas nada faz para que o possa odiar, e David, o piloto norte-americano com quem se encontra às quintas-feiras para tórridos encontros clandestinos.
As coisas complicam-se quando esse amante, até então tido como um dos mais audazes do seu batalhão, começa a prezar em demasia o dever de resiliência, levando a que outros morram numa missão a que se furtara sob a alegação de ter ouvido um barulho estranho num dos motores do avião.
Como castigo atribuem-lhe a missão quase suicida de levar até França um agente dos serviços secretos aí incumbido de recolher da sede da Gestapo em Lyon a lista dos agentes ao serviço dos nazis em Londres.
É assim que marido e amante conjugam esforços como únicos sobreviventes do voo, que vitima o resto da tripulação de David. E convenhamos que Hyames tem alguma dificuldade em garantir a verosimilhança das cenas passadas em solo francês. Mas é no final, que ele revela-se mais moralista: entre os dois homens, a infiel Margaret acaba por ficar com o marido, restando ao amante a hipótese de a lembrar sempre que beber chá. O que, convenhamos, não parece ser bebida particularmente do seu agrado.
Na época os mais puristas assinalaram o facto de as cenas aéreas serem feitas com aparelhos diferentes dos utilizados na época nos céus ingleses, mas a produção só conseguira contratar outros, da mesma altura, vindos propositadamente dos EUA. E, enquanto espectadores, ficamos com questões por resolver porque, se de início pareceria relevante descobrir-se quem andava a passar informações secretas para os nazis, nada ficamos a saber dos documentos recolhidos pelos dois homens na sua surtida francesa. 
Mas, que importa, se o maior interesse do filme reside na sua condição de exemplo sobre a forma como se entendia fazer cinema de grande espetáculo nos finais dos anos 70?