segunda-feira, maio 29, 2006

CARLOS REYGADAS: «JAPAN», UM FILME SOBRE O SUICÍDIO

Há a viagem de carro da cidade para a periferia. Aonde a crueldade é perceptível sobre os animais: um miúdo apanha um pássaro e, como não o consegue matar, pede ao protagonista para que lhe torça o pescoço. O que ele faz, sem grandes estados de alma…
Mas este homem de meia-idade, que se arrasta com a ajuda de uma bengala, é um pintor a contas com um drama íntimo: o seu desejo é o de encontrar a morte na pequena aldeola escondida no fundo de um canyon.
A câmara abandona-o muitas vezes enquanto personagem e cola-se aos seus olhos, transmitindo-nos a sua progressão por caminhos e carreiros, que reiteram a austeridade de uma paisagem, que imita a rudeza dos rostos marcados por profundas rugas.
A senhoria em cuja casa ele se hospeda é Ascen, uma velha viúva cujos gestos de aproximação - a oferta de uma taça de chá, por exemplo - são rechaçados. Mas, como se essa rejeição lhe desse má consciência, o forasteiro mostra-lhe os seus quadros e inicia-a na marijuana.
Quem constitui uma ameaça, bem diversa da generalizada simpatia com que ele se vê acolhido na aldeia, é Juan Luís, o sobrinho de Ascen que, depois de passar pela penitenciária, está agora ansioso por espoliar a tia da casa, que fora do seu avô.
As tentativas do pintor para sair da sua letargia não são bem sucedidas - não são bem sucedidas nem as tentativas de se masturbar, nem as de se matar.
A impotência torna-se uma explicação cada vez mais óbvia para esse desejo em acabar consigo mesmo - quando vê uns miúdos rirem-se de um velho cavalo incapaz de copular com uma égua, ele sente alguma identificação com o animal.
Em desespero, no dia em que o sobrinho de Ascen virá subtrair-lhe a casa, ele consegue dela a oferta do corpo para inflamar a sua arrefecida libido. Mas em vão …
A morte é inevitável, já que nada mais justificará a continuidade dos seus dias sempre iguais na incapacidade de lidar com tão indizível desespero...

segunda-feira, maio 08, 2006

«A GAIVOTA»: PARADIGMAS REVOLUTOS

Há Irina Nicolaevna Arkadina, superlativamente interpretada por Rita Loureiro.
É uma conhecida actriz de teatro, que detesta ver-se envelhecer. Por isso o filho de vinte e cinco anos coloca-lhe um sério dilema: enquanto mãe deve amá-lo, mas a sua simples presença é bem demonstrativa de como já está longe do fulgor da sua juventude. Por isso é infeliz e semeia infelicidade à sua volta, quer inferiorizando os esforços criativos de Costia, quer negando-lhe o dinheiro, que o poderia ajudar a uma melhor inserção social.
E, quando o próprio amante a deixa em benefício de uma actriz mais jovem, ela não hesita em recebê-lo de volta, porquanto vive muito mais das aparências do que das realidades afectivas.
Numa peça em que quase todos são infelizes por viverem na frustração de não alcançarem os seus objectivos, Irina poderia personificar a felicidade do sucesso. Mas não: apesar da riqueza, apesar da beleza, apesar do sucesso junto do público, ela sente escoar-se por entre os dedos tudo quanto poderia dar-lhe o contentamento de ter chegado a algum lado…
O filho é Konstantin Gavrilovich Treplev, ou simplesmente Kostia. Na interpretação esforçada de Duarte Guimarães. Vinte anos depois seriam destes Kostias, que a Revolução de Outubro emergiria. Porque eles cresceram na burguesia e não têm dinheiro. E porque, em termos artísticos, aspiram a formas novas e já não suportam todos os academismos, que fundamentavam as obras passadas.
Por isso há uma peça estranha, que só ao médico Dorn sensibilizará. E há a ânsia de uma amor profundo, que se revelará impossível. Por isso a frustração é tanta que, sem razão aparente, ele disparará sobre a gaivota, que dá título à peça. Uma vítima inocente e colateral a todo o sofrimento colectivo.
E, sem se dar conta disso, Kostia será, afinal, a verdadeira gaivota dos dramas a que assiste. Porque viver sempre também cansa e as armas são objectos, que até se mostram bastante disponíveis.
A paixão impossível de Kostia incidira em Nina Mihailovna Zarechnaia. Uma renovada oportunidade para apreciar as qualidades de Rita Durão em papéis, que exijam a explicitação de uma diáfana fragilidade.
É ela - a rapariga rejeitada pela família, que parte para Moscovo em busca do sonho impossível (o amor de Trigorin, o sucesso nos palcos) - quem reivindica a condição de gaivota.
Mas ela é tão só uma mulher infeliz nas suas opções afectivas e incapaz de se entregar ao único homem, que lhe deseja dar todos os impossíveis.
Será a sua frivolidade, que a levará a aproximar-se demasiado do sol em que se pretende translacionar e a aí perder as penas.
Num papel bem mais secundário, mas afinal tão relevante, porque ilustrativo, pelo exagero, do percurso de Nina, temos Masha, a filha do feitor, numa interpretação contida de Teresa Sobral.
Sempre vestida de negro em luto pela própria vida, ela persegue o sonho impossível de ser amada por Kostia, embora ceda ao realismo de se casar com o mestre-escola. Uma opção, que acabou por não a recompensar, porque essa relação dá-lhe uma criança, mas não a afasta dos seus óbvios desejos. E por isso bebe e cheira rapé numa procura catártica de compensações, que nunca se revelam satisfatórias.
A mãe dela, Polina Andreevna, na prodigiosa interpretação da imensa Márcia Breia, viveu a relação clandestina com o médico, que hoje a afasta sucessivamente, ora porque os seus encantos já desapareceram, ora porque ele próprio, aos cinquenta e cinco anos, já deixou de ser o bem sucedido sedutor de todas as mulheres das redondezas.
Mas, viajado, este Yevgeny Aleksievich Dorn, interpretao por Luís Lima Barreto, é o único a encarar todo aquele drama com a lucidez de quem sabe confrontar-se com forças, que o extravasam.
Na arte de Kostia ele pressente o novo, que o fascina, mas sem saber bem porquê. Talvez, porque ao fazer parte dos privilegiados, ele se sinta incapaz de entender o fulgor revolucionário, que se vislumbra à distância...
Quem representa a arte decadente de uma sociedade em crise é Boris Aleksievich Trigorin, interpretado por Ricardo Aibéo.
Ele é o típico escritor, que olha para a realidade com a caneta e o bloco de apontamentos sempre preparados para anotar possíveis hipóteses de ficção.
No resto do tempo ele queda-se à beira do lago, de cana de pesca estendida à espera de alguma perca.
A sua relação com Irina tem mais de conformismo do que de exaltação.
Ela serve-se do seu prestígio para ilustrar a sua imagem de actriz de sucesso, bela e adulada pelos homens, enquanto a ele o interessam as pessoas com quem ela o põe em contacto nas suas estadias na casa de campo.
De entre os demais personagens secundários desta história, que alguns consideraram a mais autobiográfica de quantas Tchekov escreveu, ainda se deve evocar a veterania competente de José Manuel Mendes no papel do feitor, a sobriedade de Dinis Gomes no de mestre-escola, e sobretudo, a sapiência de Luís Miguel Cintra no do tio Piotr Nicolaievich Triplev. Muito envelhecido, este antigo conselheiro do Czar perde a alma no campo, quando sempre fora urbano por natureza. Mas o dinheiro desaparece completamente na conservação daquela quinta e a irmã recusa-lhe, através de Kostia, o empréstimo necessário para recuperar a sua prestigiada posição social.
A esse título ele representa a velha aristocracia, que os bolcheviques iriam erradicar violentamente, já que se revelava incapaz de compreender as urgências da História humana. Ao contrário do velho príncipe Salinas, os Piotr Triplevs degeneravam fisicamente, depois de há muito a alma lhes ter acinzentado.
Ainda assim, e a exemplo de Dorn, há nele uma ternura pelo sobrinho, que nada tem a ver com os seus conceitos ideológicos ou estéticos. É uma mera atracção pela juventude definitivamente perdida.
Em balanço é uma peça notável nas leituras possíveis de quanto revelam os seus personagens e bem actual nesta época, que parece ser a do fim de um conjunto significativo de paradigmas.

segunda-feira, maio 01, 2006

«LISBOETAS» de SÉRGIO TRÉFAUT

Eles estão aí no meio de nós. São brancos (muito claros, porque eslavos), são negros, são amarelos. De todas as cores e de todas as latitudes. Mas lisboetas de facto, porque aqui procuram esse paraíso na Terra, que lhes escapou no lugar onde nasceram.
E temos a concretização de tudo quanto de pior encontramos na emigração e nos escusamos de olhar.
A exploração, por exemplo. Há um negro, que trabalhou doze horas de seguida para só receber 25 euros. Ou o engajador, que nem quer continuar a conversa, quando lhe acenam com a exigência de contrato de trabalho.
As condições de miséria. A pernoita em quartos minúsculos e caros, quando não mesmo em frágeis abrigos na rua. A tentação do alcoolismo, quando não se tem qualquer família e apenas se encontra socorro para a doença na carrinha, apenas dotada do suficiente para os cuidados mais básicos.
A dificuldade de comunicação. Que se procura debelar no difícil manejar do português em aulas aonde se aprende a dizer «aldrabão» ou «coçar-se. Ou quando nos Serviços de Emigração são inexistentes os tradutores, que pudessem facilitar a compreensão quanto aos (muitos) papéis a preencher como forma de se legalizarem. Ainda assim existem jornais apostados em servirem de veículo facilitador dos passos perdidos desses homens e mulheres nos caminhos da cidade.
A religião. Que é uma forma de identidade, seja ela ortodoxa, muçulmana, protestante ou qualquer outra. Aonde as pessoas se encontram e trocam experiências, sentindo-se menos sós neste sítio, que se julgou recheado de gente rica e, afinal, tão diferente do que, lá longe, se imaginara.
Mas há também o contraponto: os telefonemas para casa como forma de mitigar saudades, os bailes animados ou as idas à praia para encontrar o fascínio do oceano. No limite há quem se arrisque a ter filhos, apostando num futuro bem mais próspero do que este presente de empregos inseguros e mal pagos.
O filme do Sérgio está à medida do que dele conhecemos: sensível e fraterno para com esses desvalidos de todos os continentes a quem a pobreza empurrou para a aventura tremenda de buscar a sobrevivência entre nós.
Que os olhamos desconfiados, como se não fizessem parte integrante da sociedade, que é a nossa...