domingo, março 27, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: Biografar, autobiografando-se

O projeto para a criação deste romance biográfico surgiu a Rosa Montero, quando a desafiaram para se encarregar do prefácio do Diário escrito por Madame Curie nos meses subsequentes à inesperada morte do seu marido Pierre. Devastada pela forma como, de um dia para o outro, perdera o grande amor da sua vida, a prestigiada cientista isolara-se e encontrara algum consolo nesse encontro com as páginas em branco.
O convite a Rosa para contextualizar esse texto não fora inocente: a editora sabia-a igualmente sofrida pela perda recente de Pablo, o homem a quem amara anos suficientes para sentir a sua perda como algo de insuportável. Por isso, mais do que a encomenda, Rosa Montero vai ao encontro de Madame Curie para melhor exorcizar o seu próprio sentimento de solidão.
Nalguns aspetos o livro respeita alguns dos principais padrões do género biográfico: apesar de remeter muitas vezes para o que acontecerá no futuro ou recordar o que para trás ocorrera, existe o respeito por uma sequência cronológica: começamos por conhecer o ambiente em que a cientista nasceu e cresceu, bem como o seu primeiro amor, quando estava contratada como precetora das crianças de uma família abastada.

Ocorre aí um dos exemplos de como Rosa Montero aposta em ir bastante além do que mandam os cânones do género, porque equaciona possibilidades com o seu quê de pertinentes: o que teria sucedido se em vez de humilhada e ostracizada pela família do primeiro amante, Casimir, ela se visse aceite e fadada para a condição de dona-de-casa e mãe de família? Provavelmente a ciência desse início do século XX teria perdido uma das suas mentes mais geniais.
Há depois o sentido de sacrifício, que a leva a trabalhar anos a fio para pagar os estudos da irmã mais velha em Paris. Será só quando esta se forma em Medicina, que estará em condições de, por sua vez, financiar os estudos de Marie.
 Por essa altura estamos totalmente inteirados de duas características inabaláveis na sua personalidade: uma determinação inquebrantável e uma energia, que lhe permitem suportar os mais desafiantes esforços físicos.
Passamos pelos estudos brilhantes, pelo casamento com Pierre e pela descoberta comum do rádio. Contemplados com o Nobel, só ele irá a Estocolmo recebe-lo, porque a Academia Sueca ainda não estava capacitada para se livrar dos seus preconceitos de género.
A viuvez poderia ter quebrado o ânimo da cientista, mas não foi o caso: depois de uns meses de luto ela regressou ao laboratório, sucedeu a Pierre na cátedra da Sorbonne e dispôs-se a prosseguir os trabalhos, que ambos tinham deixado interrompidos.
É por essa altura, que ela volta a apaixonar-se, o que lhe vale a condenação pública de se ver como uma devassa capaz de roubar o marido a outra mulher. O efémero amante foi outro cientista com quem trabalhava, Paul Langevin, que conciliava o brilhantismo científico com uma inacreditável fraqueza de carácter.
O episódio permite à autora desenvolver o tema da fraqueza dos homens em comparação com a força de carácter das mulheres. Vale a pena citar aqui dois trechos retirados, respetivamente das páginas 120 e 121 da edição portuguesa:
Tenho para mim que o verdadeiro sexo fraco é o masculino. Não acontece com todos os homens e nem sempre acontece de todo, mas no que respeita a uma fraqueza genérica, os homens ganham-nos aos pontos - de qualquer maneira, nós achamo-los fracos e, por con seguinte, tratamo-los com atenções e com uma superproteção alu cinantes. Talvez seja consequência do instinto maternal, que é, sem dúvida, uma pulsão poderosa, mas o facto é que, com frequência, mimamos os homens como se fossem meninos e temos um cuidado enorme em não lhes ferirmos o orgulho, a autoestima, a sua frágil vai dade. Parecem-nos imaturos, inseguros, infinitamente necessitados de atenção, admiração e aplauso.” (…)
“Quantas vezes nós, mulheres, mentimos aos homens; em quan tas ocasiões fingimos saber menos do que sabemos, para que pareça que eles sabem mais; ou lhes dizemos que precisamos deles para alguma coisa, mesmo que não seja verdade, só para que se sintam bem; ou os adulamos à descarada para celebrar qualquer pequena vitória, e até achamos enternecedor constatar que, por mais exage rada que seja a lisonja, nunca se dão conta de que lhes estamos a dar graxa, porque na verdade precisam de ouvir elogios, como aqueles adolescentes que necessitam de apoio extra para poderem acreditar em si próprios. Sim, são capazes de ir para a frente combater em guerras pavorosas; de arriscar a vida subindo ao Evereste; de atra vessar selvas tormentosas para encontrar as fontes do Nilo; mas, no plano emocional, no sentimental, na realidade de cada dia, os ho mens, para falar com franqueza, parecem-nos #Fracos.”
Por sorte, e quando já estava em vias de ser estraçalhada pela campanha hedionda dos moralistas do costume, a Academia Sueca volta a atribuir-lhe outro Nobel, sem o ter de partilhar com mais ninguém!
Será, porém, a I Guerra a garantir-lhe a definitiva reconciliação com os franceses, ao organizar um serviço de ambulâncias, que percorriam as retaguardas dos campos de batalha para proceder às radiografias dos feridos, ajudando assim a minimizar os custos humanos do conflito.
A saúde começou, então, a deteriorar-se por causa da forma como manuseara o rádio. Até à morte, em 1934, ela já pouco trabalho adicional concretizou até por ter na filha Irene uma digna sucessora.
Toda esta evocação dos factos escolhidos por Rosa Montero para criar os vários capítulos pressupõem com razão, que Rosa Montero acaba por falar pouco da sua experiencia com Pablo. Existe nela um compreensível pudor em abordar a vida pessoal, sendo muito mais fácil sugeri-la através das sucessivas interpretações sobre o percurso da biografada.
Quando chegamos ao fim temos de concluir que passámos excelentes momentos com uma leitura empática e que nos faz compreender com rigor bastante o que foi a conjuntura em que Marie e Rosa perderam os respetivos companheiros e souberam dar a volta ao sofrimento de os saberem insubstituíveis.


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