quarta-feira, fevereiro 28, 2018

CINECLUBE GANDAIA: «Os Homens Preferem as Loiras» de Howard Hawks (1953)


Se, ao contrário, do que esperavam os seus produtores, «Niagara» de Henry Hathaway, não tivesse sido um enorme sucesso, esta grande produção de Hollywood seria protagonizada por duas das maiores intérpretes de filmes musicais da época: Jane Russell e Betty Grable.  Mas Marilyn começava a ser reconhecida como uma das atrizes mais apelativas do público, que se sentava nas plateias e pretendia  esquecer os fantasmas da Guerra Fria, então no seu auge desde que os soviéticos tinham conseguido criar o seu próprio arsenal atómico. Entre o exercício do medo com um tipo de filmes em que extraterrestres ameaçadores vinham invadir a terra do tio Sam e acabar com o seu conceito de sonho americano e este tipo de filmes de pretendido entretenimento, as plateias mostravam-se muito atraídas por estes últimos.
Para os executivos da 20th Century Fox Marilyn trazia consigo outra vantagem: era muito mais barata do que Betty Grable, a única que poderia ser descartada dos planos iniciais, já que Howard Hughes não veria com bons olhos que a amante fosse a preterida. Resultado: enquanto Jane Russell ganhou 200 mil dólares por cada semana de rodagem, Marilyn ficou-se pelos … 500.
Compreende-se assim que uma produção que custou 2,26 milhões de dólares tenha auferido 5,3 milhões de receitas.
E, no entanto, muito embora Russell se revelasse irrepreensível na interpretação dessa mulher de respostas incisivas perante comparsas masculinos, desarmando-os nas intenções e desconsiderações, o filme seria sobretudo recordado pelo papel de Marilyn, que levara o profissionalismo a assistir vezes sem conta ao desempenho de Carol Channing no musical, com o mesmo título que abrilhantava então um dos palcos da Broadway.
Apesar da diferença de tratamento dos produtores em relação às duas atrizes - uma tratada como vedeta, a outra como atriz de segunda categoria -, Jane Russell e Marilyn Monroe ficariam amigas para sempre, embora nunca mais tivessem trabalhado juntas.
Além desta curiosidade, o filme também merece ser apreciado na forma como viola explicitamente o Código Hayes, que impunha, por essa altura, uma censura feroz a tudo quanto pudesse significar um choque para as mentes puritanas. Embora nunca se fale de sexo, ele está omnipresente nessa interação constante entre homens e mulheres, com os primeiros a não pensarem senão na sua satisfação, e elas a usarem-se dessa obsessão para melhor os dobrarem à sua vontade.
Ao contrário do que alguns poderão pensar - que estes filmes estão condenados a serem meras curiosidades históricas! - eles revelam-se bem mais pertinentes nesta atualidade em que continuam na ordem do dia as questões de género.

(DIM) «A Sinfonia de Leninegrado» de Carsten Gutschmidt e Christian Frey (2017)


Em Setembro de 1941 o exército alemão chegou às portas de Leninegrado. A Wehrmacht cercou a cidade, mas não arriscou o assalto final: Hitler pretendia matar á fome os seus habitantes. Durante oitocentos e setenta dias a situação não se alterou suscitando a morte de um milhão de civis.
No meio de tão dolorosa provação o Partido Comunista incumbe um maestro de dirigir a Orquestra local na apresentação da obra que Dimitri Chostakovitch está a compor: a Sinfonia nº 7.
Esse espetáculo simbolizaria, doravante, a vitória da cultura russa contra a barbárie nazi, mas a dificuldade imediata que se colocara a Carl Eliasberg era o facto de só contar com dezasseis sobreviventes dos vários naipes para concretizar o desejo de Estaline.
É sobre essa estória dentro da História da Segunda Guerra Mundial, que os realizadores criam um documentário com múltiplos pontos de vista, que lhe conferem a devida veracidade. Historiadores e sobreviventes do cerco lembram o que as imagens de arquivos pressupõem, intercaladas por sequências ficcionadas, que ilustram as vicissitudes conhecidas nesses dias pelo próprio Chostakovitch, pelo maestro e por Olga, uma das sobreviventes e autora de um dos mais impressivos testemunhos do filme. E a perspetiva do campo adversário, a do sargento alemão Wolfgang Buff, é dada pelo irmão.
A apresentação da «Sinfonia de Leninegrado» seria uma operação muito bem sucedida de propaganda, que contribuiria para a viragem que a relação de forças entre ocupantes e ocupados se infletisse definitivamente.



terça-feira, fevereiro 27, 2018

(S) O Allegretto da Sinfonietta de Leos Janacek

(DIM) «Os Jogos de Hitler - Berlim 1936» de Jerôme Prieur (2016)


Há dois anos, a pretexto dos oitenta anos passados sobre os Jogos Olímpicos de Berlim, o realizador Jêrome Prieur realizou este documentário com o objetivo de descodificar a gigantesca operação de propaganda organizada pelo regime nazi desde 1933. Na quase hora e meia, que dura, detalha-se a preparação, a orquestração e a encenação do espetáculo, que se revelaria bem mais político do que desportivo. E para tal recorre a muitos filmes inéditos rodados por amadores e por extratos do que Leni Riefenstahl rodou com a intenção de alimentar essa mesma propaganda.
Berlim, nesse ano de 1936, era apresentada como uma cidade magnífica, cosmopolita, agradabilíssima de viver e onde os polícias conseguiam expressar-se em várias línguas. Na chefia do Estado o führer era apresentado como um déspota iluminado, pacífico. Nos quinze dias em que decorreram esses Jogos Olímpicos, a Alemanha nazi tudo fez para assim se apresentar perante o resto do mundo. E conseguiu-o, porque o Comité Olímpico Internacional, os governantes convidados e os turistas, que acorreram a presenciar as competições deixaram-se envolver por esse logro. E a mistificação perdurou, porque ainda hoje as quatro medalhas de ouro do atleta negro Jesse Owens tendem a consagrar a vitória do desporto e do ideal olímpico, que não tem qualquer consonância com a realidade.
Os Jogos de Berlim foram um instrumento decisivo do controlo da sociedade alemã pelo partido nazi, constituindo uma vistosa montra para que o regime obtivesse o útil reconhecimento internacional.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

AS PARTES DO TODO (XVIII): Jacques Weber, Flaubert, Clínicas de IVG nos States, Bill Gates e Hélène Cixous


1. O ator e realizador Jacques Weber acaba de publicar uma investigação sua sobre Gustave Flaubert em cujo percurso se revê como fosse um espelho: “a vida de Flaubert faz-me pensar em quem sou, nessa vontade em estar só sem o conseguir, perentório, impetuoso, guloso …

Entre a correspondência - contraditória e reveladora de uma exuberante liberdade - e os romances e contos, que zurziam na melancolia pelo passado ou no tédio e estupidez do espírito burguês, Flaubert, ora eremita, ora mundano, surge como um dos vultos fundamentais do seu tempo. Não gosta dos portos, preferindo-lhes o mar alto com as suas vagas e correntes.

Weber mergulha nessa movimentada existência criativa, percorrendo os campos  e greves da Bretanha, a lama e os estaleiros da avenida Haussmann, os bordéis do Cairo e as saias das cortesãs da rua Saint-Honoré, os silêncios partilhados com a mãe, o jardineiro ou o cão, o segredo dos amores londrinos com miss Herbert ou o oficial, mas tempestuoso, com Louise Collet.

Místico e desassombrado, guloso e ascético, Weber busca o ser invisível, o nada, esse outro universo que, como a Terra, mantém-se suspenso sem nada a apoiá-lo, o silêncio da literatura. Ao longo dessa viagem à obra e à vida de Flaubert, as palavras de Weber ricocheteiam nas dele.

2. Há vinte anos existiam 450 clínicas, que praticavam interrupções voluntárias de gravidez. Hoje reduziram-se para metade e tendem a ser ainda menos. No Kentucky a última resistente irá fechar nos próximos dias: a pressão é tanta, que as pacientes são obrigadas a deslocarem-se sob escolta para conseguirem ali chegar.

3. “ Costumo escolher um preguiçoso para fazer um trabalho difícil, porque será quem encontrará a forma mais expedita de o concretizar”, disse Bill Gates. A psicóloga Gwenaëlle Hamelin, especialista em stress no trabalho, garante que “fazer menos é uma estratégia ganhadora”.

4. A citação é de um texto da escritora Hélène Cixous: “inclino-me sobre uma espécie de promontório, pendurada no topo de uma árvore. Espero que o vento sopre, posso aguardar muito tempo. Sou extremamente paciente. Depois, de súbito, há o clique, ponho-me a escrever. O livro chega, não o vou procurar, não o programo. Chega como se enviado por um mensageiro sob a forma de frases curtas.”

(S) A música barroca de Giovanni Gabrieli

(AV) Quando Picasso revolucionou a arte moderna


Ao chegar a Paris no início do século XX, Pablo Picasso, então com vinte anos, instalou-se no bairro de Montmartre, que já era conhecido por ali se concentrarem os artistas. Nos dez anos seguintes contribuiu decisivamente para revolucionar os conceitos estéticos da arte no atelier do Bateau Lavoir. Ali vive parte do período azul, frio e melancólico, e, de seguida, o período cor-de-rosa, feliz e evanescente.
Ao contrário do que se lhe conhece hoje - movimentado miradouro sobre a vasta urbe parisiense - Montmartre era então muito diferente, porque arrabalde ainda com quintas e estábulos, sem água canalizada, nem eletricidade. O jovem Picasso chegou atraído pela Exposição Universal e decidiu instalar-se onde já tinham vivido Van Gogh, Degas, Renoir ou Toulouse-Lautrec. A exemplo desses prestigiados antecessores, Montmartre constituiu inesgotável fonte de inspiração para o jovem espanhol, que representou na tela o que testemunhava diariamente: o baile do Moulin de la Galette, ao estilo impressionista, ou a vista da cidade a partir do seu quarto.
O «Le Bateau Lavoir» tornou-se numa tertúlia aonde acorriam muitos artistas e intelectuais: Max Jacob, Guillaume Apollinaire, Georges Braque e aquele que se tornaria o seu primeiro grande amor: Fernande Olivier. Ali nasceu «Les Demoiselles d’Avignon», o quadro que lançou o movimento cubista, que estilhaçou todos os códigos até então vigentes de representação da perspetiva. Tratou-se de um autêntico manifesto sobre o que deveria ser a arte moderna. De artista talentoso, Pablo Picasso passou a ser reconhecido como um verdadeiro criador…
Para consubstanciar a ideia, que congeminara para a obra, Pablo Picasso passou noites sem fim a frequentar bordéis e a neles preencher estudos em quinze cadernos, que seriam fundamentais para chegar ao seu objetivo criativo.
O fim do período azul coincidiu com o traumático suicídio do seu amigo Casagemas, logo compensado pela paixão luminosa, que descobre em Fernande. Passou a frequentar o animado Au Lapin Agile, o mais antigo cabaré de Paris,  onde atuavam saltimbancos e chansonniers, que apelavam à participação do público, assim o envolvendo num ambiente festivo e solidário.
Picasso e os amigos viveram aí ininterruptas noites de boémia, ao som do piano e do acordeão, pintando um quadro daquele espaço para oferecer ao proprietário, depressa convertido num dos seus mais inestimáveis admiradores. Nele representa-se como Arlequim e com esse anfitrião a tocar guitarra ao fundo, estando entre eles Germaine, outra modelo que animava o grupo de convivas.
Apesar de se instalar depois em Montparnasse, Picasso nunca deixaria de reconhecer o quanto fora feliz no sítio onde o seu génio se revelara.

(S) Kid Moxie a interpretar "Mysteries Of Love" de Angelo Badalamenti

CINECLUBE GANDAIA: «Os Homens Preferem as Loiras» ou como Marilyn foi mais do que um sex-symbol


O março cinematográfico na Associação Gandaia vai ter como protagonista Marilyn Monroe, escolhendo da sua filmografia aqueles títulos em que ela nos andou a divertir. E a primeira pergunta, que se justifica colocar a seu respeito é esta: faz sentido celebrá-la a sessenta anos de distância?
A nosso ver a resposta é plenamente afirmativa, porque sendo esta a época em que, a pretexto da luta contra o assédio sexual, as mulheres ocidentais andam a reivindicar um estatuto de maior equidade e de respeito em relação à atávica dominação masculina, faz todo o sentido analisar a forma como o mito Marilyn perdura e se enquadra nesta nova realidade. Porque ela é vista por muitos, nomeadamente pelas feministas mais radicais como o paradigma da mulher bonita e tonta, que existia exclusivamente para usufruto da libido misógina.
Que as nozes são bem mais do que as vozes iremos ver caso a caso, ao longo de cinco excelentes filmes. E o início é logo em grande com «Os Homens Preferem as Loiras», a única comédia musical que Howard Hawks assinou e baseado num romance de sucesso de Anita Loos, publicado em 1925.
Mais não fosse para assistir à antológica interpretação de Marilyn de vestido cor-de-rosa a cantar que os diamantes são os melhores amigos das raparigas e a deslocação para ver o filme num ecrã de cinema já valeria a pena. Mas há muito mais neste título que o alemão Rainer Werner Fassbinder elegia para a sua lista dos dez melhores filmes de todos os tempos. Há por exemplo essas duas facetas do eterno feminino, encarnadas por Marilyn e pela exuberante Jane Russell, então no auge da fama pela ligação ao magnata Howard Hughes. Imperdível é a cena em que esta imita Marilyn na sessão de tribunal onde a amiga está a ser julgada como ladra. É jubilatória essa interpretação de uma personalidade frívola, incrivelmente sedutora e falsa.
Onde cai pela base a tal imagem, que o maniqueísmo quis transformar numa caricatura lamentável do que é ser Mulher, está no facto de Marilyn e Russell personificarem caracteres fortes e independentes  perante os comparsas masculinos, eles sim caricaturados sem possibilidade de redenção, na sua cobardia, lascívia babada ou falsidade. O poder feminino assenta aqui na capacidade de disfarçar a superior inteligência em sorrisos convidativos, que desarmam os incautos “sedutores”.
“Façamos-lhes crer que somos estúpidas para melhor os controlar» é o credo de Dorothy e de Lorelei, que mostram uma solidariedade inquebrantável. Os homens são reduzidos a cretinos, que pensam sempre com a metade de baixo do corpo, pondo o minguado cérebro de férias.
Um dos melhores diálogos do filme terá sido até da lavra da própria Marilyn: “posso ser inteligente quando é necessário, mas a maioria dos homens detesta isso”.
Esta sátira sobre as relações entre homens e mulheres, com estas a dominarem-nos mediante a sensualidade de um erotismo, realçado pelas cores vivas da fotografia, não só desafiava o puritanismo dos censores de Hollywood (e não só!) mas é, igualmente, a primeira demonstração neste Ciclo de quanto, parecendo o contrário, Marilyn ilustrou como a inteligência feminina pôde exprimir-se de formas equívocas na História do Cinema.

domingo, fevereiro 25, 2018

(AV) Rimaldas Vikšraitis: uma Europa desconhecida


É uma Europa quase de todos desconhecida, a retratada nas fotografias de Rimaldas Vikšraitis, que escolheu como tema exclusivo da obra os recantos mais pobres da sua Lituânia natal. Principalmente aquele onde vai fazendo por sobreviver. Mesmo que a miséria evidenciada nessas imagens também conviva com um surpreendente humor e insolência.
Aos sessenta e três anos ele desloca o corpo como se fosse um fardo difícil de carregar e tem dificuldades em se exprimir oralmente como consequências da meningite sofrida aos cinco anos. A fotografia acabou por representar para ele uma verdadeira prancha a que, náufrago, se agarrou.
“Na juventude era muito complexado. A fotografia ajudou-me a superar essa perturbação, facilitando-me a aproximação às pessoas.”
Os temas captados refletem a sua própria vida. À margem do mundo conhecido, à margem da Europa: a vida dura das aldeias, sem dinheiro, sem trabalho e muito álcool para tornar a pobreza mais suportável.
Fotografa quase obsessivamente. A casa dos pais e a da aldeia, os vizinhos. É um mundo singular, aparentemente estagnado no tempo, que proporciona testemunhos fascinantes, mas também chocantes, sobretudo por os sabermos não tão antigos quanto parecem pressupor: todas essas imagens são posteriores a 1990, muitas já deste milénio.
O crescimento económico e a modernidade não chegaram a estas paragens. Não se notaram melhorias nenhumas desde que a União Soviética implodiu e o país se tornou independente. Daí que Rimaldas Vikšraitis queira dar existência aos mais frágeis, aos velhos, aos pobres.
É um prazer constatar a forma como contacta com aqueles que pede para caberem na sua fotografia. Porque ela acaba por também o incluir na forma como se revela próximo dos que lhe servem de modelos.
Foi Martin Parr, da agência Magnum, quem o deu a conhecer e fez tudo por o divulgar nos fóruns artísticos do continente. Com pleno merecimento como se pode constatar.

(DL) A despedida literária de Kurt Vonnegut


Três anos antes de morrer, aos 85 anos de idade, Kurt Vonnegut escreveu um delicioso livro autobiográfico intitulado «Um Homem sem Pátria - Memórias da América de George W. Bush» no qual abordou sem preocupações cronológicas, e com assinalável humor, alguns dos aspetos da sua vida, sem deixar de zurzir na Administração da Casa Branca, então envolvida na operação militar de agressão ao Iraque de Saddam Hussein.
Desde muito cedo que apreciei a obra do autor. A primeira abordagem não foi a literária, mas através da versão cinematográfica que George Roy Hill fez do seu «Matadouro 5» em 1972. Tinha dezasseis anos e saí do Apolo 70 - então uma das mais entusiasmantes salas de cinema da capital - com um fascínio algo transcendente por essa estória, que misturava a II Guerra Mundial com o exílio inexplicável no planeta Transfalmadore.
Vonnegut conhecera bem demais a guerra em causa, porque estava preso em Dresden, quando os Aliados, por quem tinha vestido a farda, despejaram toneladas de bombas sobre a cidade transformando-a num pavoroso campo de ruínas. O jovem Kurt viu-se, então, obrigado a participar na remoção e incineração dos cadáveres, colhendo imagens inesquecíveis do horror mais indescritível.  Daí a necessidade de lhe fazer a catarse através de uma narrativa, que o remeteria injustamente para a classificação de autor de ficção científica.
Hoje sabemos bem como esse acantonamento de alguns excelentes escritores a um género tido como menor, os impediu de serem corretamente apreciados pelo seu talento. Aconteceu a Vonnegut, como se repetiu com Ursula Le Guin, recentemente desaparecida.
A experiência traumática não impediu o autor de olhar para a realidade com o humor possível de quem provavelmente subscreveria o que sobre ele disse Albert Memmi: o último refugio dos desesperados. Vonnegut lembra o que disse Bernard Shaw sobre a possibilidade de existirem selenitas e terem escolhido fazer da Terra o asilo dos seus alienados. Porque é irracional este esforço de destruição de um planeta - através de ameaças nucleares, de excessos demográficos, de agressões ambientais - que o parecem conduzir a incontornável Apocalipse.
E um dos melhores gags contra a xenofobia é aquele em que Vonnegut aventa a possibilidade de George Dabliú ter invadido o Médio Oriente por se sentir agastado com os árabes, inventores dos algarismos que utilizamos no dia-a-dia. «Experimentem fazer uma divisão recorrendo a números romanos», propõe. E essa é apenas uma das muitas blagues, que vai semeando pelo texto, provocando-nos um riso inteligente. Vivenciá-lo constitui uma das melhores benesses que, como leitores, podemos usufruir.

(S) O Scherzo da 3ª Sinfonia de Mendelssohn dirigida por Dudamel

sábado, fevereiro 24, 2018

(DL) As duas estruturas simétricas do romance «O Principezinho»


Se lermos «O Principezinho» na perspetiva do adulto ele torna-se-nos um romance de aventuras, na continuidade dos romances precedentes de Saint-Exupéry, quase todos eles a explorarem a mística da sua participação na epopeia da aeronáutica nos seus primórdios. A exceção é «A Citadela», que deixou inacabado e só viria a conhecer-se depois da sua morte, convencendo muitos em como se trataria da sua obra-prima.
O início do romance evoca um acontecimento real na vida do autor, ocorrido em 1935, quando do raid aéreo entre Paris e Saigão: um problema mecânico fá-lo cair no deserto da Líbia. Podemos, pois, supor que terá sido da memória dessa vivência, que ele encontrou matéria para o início do romance, afinal não propriamente uma obra inventada, mas de autoficção, porque testemunha todas as emoções e carências físicas sentidas por quem viveu na pele aquela circunstância: a fome, a sede, o frio, a angústia de se ir morrer. O Principezinho surge, pois, de uma alucinação perante o estado alterado da mente sujeita a um desafio extremo.
O leitor embrenha-se no relato com a empatia sentida em «A Terra dos Homens» ou «Voo Noturno» em que se interessava pela experiência real de quem a narrava.
Inserido nesse romance de aventuras surge o que melhor se associa à natureza dos contos fantásticos através dessa figura infantil vinda do famoso asteroide onde costumava viver, mas de que partira para empreender uma viagem maravilhosa, que o levará a encontrar um conjunto de personagens alegóricas, todas elas importantes para lhe redefinirem o trajeto da busca concluída com o seu regresso a casa. Trata-se de um conto de formação segundo critérios e códigos muito semelhantes aos dos contos tradicionais. Há a dimensão da busca iniciática, que a narratologia evidenciou neste romance e se assemelha, por exemplo, à de «Alice no País das Maravilhas»: o protagonista terá de vencer um conjunto de provas para se afirmar a si próprio, transformando-se o bastante para chegar a casa com outra maturidade.
O interesse do livro reside, precisamente, em ver como essas duas estruturas distintas - a do romance realista e a dos contos maravilhosos - se relacionam para, ao longo de toda a história, concretizarem um bem conseguido efeito de simetria. Ora, desde um célebre ensaio de Todorov, que sabemos ser a Literatura Fantástica esse permanente estado de indeterminação entre o que é realista e fantástico. Podemos, ao mesmo tempo, considerar que o Principezinho existe realmente, mas também nos podemos ficar pela convicção de se tratar de uma criação do estado alucinado do aviador acidentado. As duas possibilidades de leitura são aceitáveis e é a simultaneidade dessas interpretações contraditórias, que faz o livro balancear entre os dois registos.
No livro tudo se passa como se o adulto fosse também uma criança. No primeiro capítulo, quando se queixa de não saber desenhar, o narrador põe-se do lado das crianças contra os adultos, que exigiriam representações mais aperfeiçoadas dos motivos desenhados, que não exigissem grandes explicações sobre o que representariam. E fora por o terem desaconselhado a desenhar, quando tinha seis anos, que o narrador se decidira tornar aviador.

(S) Uma das árias de Pamina na «Flauta Mágica»

(I) Onze variações sobre o tédio


1. O tédio é nada ter para fazer. É estar confrontado, inevitavelmente, ao vazio que nos precede e ao nada que nos espera. Quer isto dizer que o tédio, o “mortal aborrecimento” de que falava Racine, não é coisa pouca, porque constitui uma tragédia.
2. Escreve Schopenhauer: “A vida oscila, como um pêndulo, de um lado para o outro, entre a dor e o tédio. A vida do ser humano flui inteiramente entre o querer e o conseguir. O desejo, conforme sua natureza, é dor: alcançá-lo significa gerar rapidamente a saciedade. O objetivo era apenas aparente; a posse tira o encanto; o desejo e a necessidade reapresentam-se com um novo aspeto. Quando isso não ocorre, seguem-se a solidão, o vazio e o tédio, contra os quais a luta atormenta tanto quanto contra a miséria. “
3. A vida é uma sucessão de momentos entre aqueles em que sentimos falta de uma coisa e aqueles em que a possuímos. Mas é, nessa altura, que ela perde o interesse antes imaginado. passa-se então para o sofrimento da satisfação de se ter, para o tédio de se sentir saciado.
4.Um exemplo prático deste paradoxo é o de quem trabalha toda a semana a pensar no que poderá fazer no domingo e chega ao dia aprazado e não lhe apetece nada do que julgara nele concretizar, acabando por se aborrecer no sofá em frente à televisão.
5. Fiquemo-nos, então, com Paul Valéry: "Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns da nossa vida. Elas tornaram-se necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas... por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados... Não podemos tolerar mais o que dura. Não sabemos fazer com que o tédio dê frutos. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?"
6. A citação de Valéry explica a necessidade de muita gente repetir as expressões «Fantástico!», que vemos quotidianamente repetidas nas tevês nas mais variadas circunstâncias em que, quem as diz, não tem outra forma de exprimir o que de supostamente excecional está a viver. O objetivo passa a ser o de «matar o tempo», fazer com que o terrível tédio não tenha hipótese de se instalar.
7. Há o desejo permanente de fazer algo, mas se não se consegue formular o objetivo que o direcione para uma ação, está-se condenado ao vazio, a um tempo que desfila devagar sem que nele se invista algo de substantivo. Razão para Cioran constatar que “seremos uns falhados se não encontrarmos um sentido para a vida. Porque só neste caso, tudo o que não tivermos concretizado constitui uma queda, um pecado. Num mundo dotado de uma finalidade, que tenda para alguma coisa, somos obrigados a alcançar os nossos próprios limites”.
8. Há um paralelismo evidente entre o tédio e a morte. Atormentamo-nos com a possibilidade de ambos, que justificam as mais profundas abordagens metafísicas. E soluções, porque era para vencê-las, que importava valorizar o divertimento, mesmo que ele se revelasse contraditório com a condição humana como o denunciava Pascal, que lamentava a miséria de um Homem sem a existência de Deus: “A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
9. Nós somos feitos para a ação, para ter objetivos,. Por isso Kant sentia-se encantado com a expulsão de Adão e de Eva do Paraíso, porque morreriam de tédio se se contentassem em gastar o tempo a cantar temas pastorais. O trabalho agrícola libertara-os dessa maldição.
10. O melhor exemplo de lucidez perante o tédio, rejeitando a vaidade da sua condição e a vacuidade das distrações, dos divertimentos, é o de Oblomov, o protagonista do romance de Goncharov, que passava os dias a dormir sem desejar fazer outra coisa senão esse afundar-se nos seus sonhos.
11. Será necessário aborrecermo-nos para que possamos compreender o que dissimulam as pessoas atarefadas? Será necessário descermos do comboio para nos lembrarmos da catástrofe, que nos espera? Será difícil aceitarmos a ideia de termos nascido por acaso num mundo que se está nas tintas para nós, antes de morrermos sem nunca encontrarmos as respostas? E se o tédio for o melhor dos pedagogos? E se a miséria do homem corresponder à fuga do tédio em vez de o vivenciar na plenitude?

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

AS PARTES DO TODO (XVII): paixões, talentos e feminismos


1.Quando descobri que a filha de Carolina do Mónaco andava dedicada à Filosofia temi o pior. Por assumido preconceito antimonárquico, que não tenho grande intenção em corrigir. Mas o livro por ela coassinado com o antigo professor, que lhe desvendou muitos dos fundamentos da arte de pensar até se revela bastante interessante, quanto mais não seja pela ideia pertinente, que lhe subjaz: a má prestação das ideologias impede as pessoas de analisarem a realidade de acordo com a racionalidade imposta pelos conceitos que deveriam ser os seus. Daí reagirem emotivamente com todos os riscos que isso comporta. Por exemplo a eleição de Trump nada deve a um qualquer raciocínio fundamentado sobre as capacidades e qualidades, que exibia, mas pela empatia conseguida junto de multidões atónitas com as circunstâncias difíceis em que se viam numa sociedade pós-industrial, onde os antigos empregos foram deslocalizados.
É para aferirem essas emoções, passíveis de serem estimuladas no bom ou no mau sentido, que professor e aluna, hoje já emparelhados na condição de coordenadores e organizadores dos Encontros de Filosofia do Mónaco, escalpelizam todas elas, desde as inerentes ao sentimento amoroso até à cólera, das boas intenções à passividade, etc.
O título refere-se a um polvilhar de emoções num enorme arquipélago desnorteado, onde ainda se torna difícil garantir um pensamento estruturado e novamente eivado do necessário cartesianismo, que facilite as estratégias transformadoras necessárias para superar os perigosos impasses em que nos encontramos, quer políticos, quer sociais, quer, sobretudo, ambientais.
2. Se, por exemplo, Jean Echenoz tem escrito sucessivos romances biográficos de assinalável mérito literário - desde Ravel a Zatopek - o esforço de Catherine Cusset parece ser mais arriscado, porque decidiu romancear a vida de alguém, que ainda está vivo: o pintor David Hockney. Mas vistas bem as coisas, existe uma tão pródiga quantidade de monografias do artista, que a escritora apenas teve de fazer o corta e cola e, a partir daí, dar-lhe uma estrutura narrativa própria do romance e não do ensaio.
Iniciei as primeiras páginas e confesso-me rendido: elas fluem com uma facilidade, que costumamos associar àquele tipo de romance pelo qual nos sentimos agarrados e não descansamos enquanto não lhe desvendamos o fim.
Por agora já passei pela infância do futuro pintor, no seio de uma família muito pobre, porque proclamando-se pacifista numa altura em que os alemães ameaçam as ilhas britânicas, o pai é despedido e alvo de desconsideração pelos indignados vizinhos. Como alternativa torna-se biscateiro, resgatando carrinhos de bebé e bicicletas das lixeiras públicas para dar-lhes novo visual e revendê-las em segunda mão. David desde cedo admirará essa transformação de objetos sujos e ferrugentos em coloridas mercadorias com aspeto de novas.
Após o trauma de ter sido apartado da família durante os bombardeamentos, apanhando um daqueles comboios de que vimos inúmeras imagens nos documentários sobre a Segunda Guerra, David regressa a casa e só lhe apetece desenhar. O problema reside na falta de papel, que o obriga a utilizar as margens dos jornais para rabiscar a sua interpretação visual de tudo quanto o rodeia.
Na escola é admirado pelo talento e os professores instam os pais a porem-no a concorrer a uma Escola das Belas Artes do condado onde vivem. Por essa altura ele olha para os enormes cartazes nas fachadas dos cinemas e, sem falsa modéstia, sente-se capaz de fazer bem melhor.
Là dentro, na sala escura, vive a primeira experiência sexual durante um filme com Humphrey Bogart, quando um homem a seu lado lhe agarra na mão e a coloca no sexo, forçando a masturbação. Tinha catorze anos e perturba-o esse elo entre o proibido e uma vaga sensação de prazer.
Será a mudança para Londres e a descoberta das obras expostas nos seus museus, que lhe proporcionarão o salto qualitativo para a arte contemporânea, libertando-o das influências do naturalismo novecentista.
Quando parei a leitura ele estava a viver esse dilema entre a vontade de se manter numa estética figurativa e ceder â moda de então: estava-se em 1957 quando o expressionismo abstrato de Pollock e de outros artistas norte-americanos pareciam ditar rumos que ele não desejaria seguir.
3. Apropriado para esta época em que as atrizes se vestem de preto em galas circunspectas e o anátema cai sobre todos os possuidores de um pénis, é o romance da inglesa Naomi Alderman e intitulado «The Power».
Trata-se de uma longa distopia com 400 páginas em que as mulheres descobrem-se subitamente dotadas do poder de incidir choques elétricos, primeiro pelo toque, depois à distância, contra os misóginos por quem foram dominadas, humilhadas, aviltadas. Mas a escalada nos acontecimentos faz com que todos os rapazes que não estejam à sua guarda por serem os seus filhos ou irmãos, passam a ser inimigos, passíveis de serem reduzidos à escravatura. Naturalmente surge um movimento de resistência contra essa ditadura, que até não se coíbe de substituir o culto a Deus pelo dedicado à mãe Eva.
Os excessos da atual cruzada anti-assédio, que já motivou reações críticas de mui estimáveis mulheres, tornou este tipo de literatura num êxito de vendas, provavelmente Graças às feministas radicais, que bem gostariam de ver o mundo mudar de acordo com esta proposta ficcional.