sábado, abril 29, 2006

A ILUSÃO DE UM MUNDO ESQUIZOFRÉNICO

O que mais surpreende no testemunho de Traudl Junge é a sua complexidade enquanto personalidade envolvida em acontecimentos históricos, que a transcenderam. Secretária de Hitler, ela simpatizou com esse homem simpático em quem não adivinhava o monstro depois revelado pelos acontecimentos. E só se viria a perdoar desse comprometimento emotivo com ele já muito tarde, quando a vida a estava a abandonar. Porque, durante cinquenta anos, ela rejeitara qualquer abordagem de quanto vivera no bunker de Berlim.
Ora, a propósito desse inglório epílogo do nazismo, ela tornou-se uma das sobreviventes capazes de retratarem o ambiente singular desses dignitários de um regime à beira da derrocada. Por exemplo ela brincou com os filhos do casal Goebbells antes de Martha envenenar os filhos para que estes não fossem obrigados a viver numa «Alemanha que os não mereceria». Ou seria a ela própria, que Adolf Hitler ditaria o seu testamento, antes de se suicidar com Eva Braun.
Mas a própria história pessoal de Traudl não deixa de ser curiosa: educada sem pai e com as maiores dificuldades, ela encontraria em Hitler e na aparente segurança do bunker de Berlim, essa substituição de uma carência íntima, que lhe obnubilaria uma análise racional de quanto ocorria à sua volta.
O que não a impediria de reconhecer que a sua juventude não justifica a miopia perante tão gravosos sintomas de um mal estar perceptível em pequenos episódios da corte hitleriana: ela presenciara a queda em desgraça da esposa de von Schirach por lamentar as condições em que os judeus eram embarcados em Amesterdão a caminho dos campos de concentração…
Sophie Scholl, por exemplo, surge-lhe como uma rapariga da sua geração, que optara por um percurso totalmente oposto ao do seu…
Traudl confessa que só após a Segunda Guerra Mundial, no decorrente processo de desnazificação, é que as ilusões semeadas pelo defunto regime foram desfeitas. E que viver em liberdade não apresentava os perigos outrora aludidos pelo antigo patrão.
É uma mulher octogenária reconciliada consigo própria, que se vislumbra nas imagens do documentário hoje apresentado pelo canal 2. Que deixa como alerta os riscos de nos comprometermos com algo tão atraente quanto perverso na sua essência intrínseca ...

sábado, abril 22, 2006

VINTE ANOS DEPOIS DE TCHERNOBYL

Daqui a uns dias cumprir-se-á mais um aniversário sobre o desastre de Tchernobyl. Sempre atenta a ARTE transmitiu um documentário interessante de Christoph Boekel que, na primeira pessoa, relacionou o seu próprio drama - a viuvez da sua mulher, a quem um cancro levou antes dos quarenta anos - com o de quantos perderam a vida ou estão muito doentes como consequência da radiação recebida nas semanas subsequentes a esse acidente. Uma atenção particular é por ele dada a Dima, um jovem soldado, de grande vocação artística, a quem as funções de limpeza de uma zona próxima da Central, causou a morte em 2002.
Estão em causa os erros de construção da Central, os erros dos seus operadores e a inexperiência, se não mesmo ignorância, dos responsáveis pelas operações de contingência. O resultado não tardou a manifestar-se: as mortes, em atroz sofrimento, de quantos se sacrificaram para conter as radiações através da construção do sarcófago em betão.
Numa época em que a União Soviética via falidos os seus esforços expansionistas na guerra do Afeganistão, a explosão de Tchernobyl anunciava a implosão próxima do regime fundado por Vladimir Lenine.
No documentário desta alemão, que casara com uma rapariga ucraniana, quando procurara seguir a peugada do pai, que participara na Segunda Guerra nas fileiras do exército nazi, e a contratara como tradutora, importam os rostos das pessoas: o desse pintor, cujos quadros exultavam de cores vivas antes dessa experiência, e dela viera apostado em só ilustrar os terrores da radiação através de cores cinzentas. Os dos amigos, que o tinham conhecido na escola, e dela evocam a singularidade das suas preocupações artísticas. Os dos técnicos de cinema ou do jornalista, que percorreram a zona sinistrada nos dias seguintes à explosão para tentarem compreender o como e o porquê da sua ocorrência. Ou a da mãe desse mesmo Dima, que considera uma vergonha tudo quanto aconteceu na época e nos anos subsequentes, quando os poderes políticos se eximiram de qualquer responsabilidade quanto ao sucedido.
Vinte anos depois a evocação deste acidente ganha particular relevância numa altura de requentados fervores pró-nuclearistas de quem vê em tal forma de energia a oportunidade de ganhar significativas mais-valias sem atender às consequências do que nela possa correr mal…

sexta-feira, abril 14, 2006

UM FILME SOBRE A CHINA DE HOJE

Passaram oito anos sobre os meus quase cinquenta dias em Xangai: uma experiência inesquecível pelo que me trouxe de vivido sobre uma realidade tão candente quanto o é a evolução da sociedade chinesa nesta sua transição de um comunismo puro e duro para uma terceira via, que procura melhores soluções do que a lamentável «perestroika» russa.
Independentemente da abordagem mais aprofundada de críticas do «Público» algumas páginas à frente, «O Mundo», de Jia Zhang-Ke reflecte três aspectos singulares dessa evolução:
Existe enquanto evidência mais óbvia a incapacidade de se encontrar a felicidade na realidade pequinense de hoje. Mesmo mergulhadas no sonho virtual representado por este parque de atracções, os que nele trabalham não sentem quaisquer outras aspirações para além das da mais prosaica sobrevivência.
Noutra vertente pode-se encarar o parque como um universo concentracionário, idêntico em qualquer outra latitude por muito que se parta de avião à procura de novas realidades. Não vem a russa Anna revelar a impossibilidade de se encontrar lá fora algo de diferente em relação aos vários tipos de tráfico, que a acabará por enredar?
Finalmente, e numa abordagem mais directamente política, pode-se concluir que se o comunismo não deu felicidade aos seus protagonistas, o capitalismo - com o advento do trabalho escravo - não significa nenhuma melhoria.
O filme de Jia Zhang Ke frustra quem o vê porque só identifica razões de tristeza e de infelicidade, mas não adivinha portas de saída.
Em tempos de atroz pessimismo, ele prossegue na mesma onda...