quinta-feira, março 31, 2016

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: O fim do Império Otomano III - O Médio Oriente em fanicos

Desde 1938 que a 10 de novembro, pelas 9.05 da manhã, toda a Turquia pára em homenagem a Ataturk, na hora a que ele morreu. Considerado o pai da nação, ele fundou a República em 1923, pondo um ponto final na História do Império Otomano.
Tinha demorado mais de um século a retirada definitiva do Império do continente europeu, mas bastariam apenas os quatro anos da I Guerra Mundial para que ele ruísse. Das suas últimas possessões orientais, na Arábia e na Mesopotâmia, na Síria e na Palestina, emergiria o Médio Oriente moderno com fronteiras, que serão tantas outras fraturas ainda hoje por resolver.
Em 25 de abril de 1915 as forças franco-britânicas procuraram conquistar Gallipoli no Estreito dos Dardanelos depois do envolvimento otomano  na guerra a partir de 1914, como aliado da Alemanha, do Império Austro-Húngaro e da Bulgária.

Mustafa Kemal foi um dos principais comandantes que conseguiram repelir o ataque inimigo, apesar do saldo de 500 mil mortos, mas para os turcos Gallipoli significou uma vitória, uma das raras obtidas nessa guerra em que tinham alinhado contrafeitos.
Não houvera de facto grande entusiasmo por essa guerra, que só exigia s sua participação para evitar que o vizinho russo saisse dela bastante reforçado. Por isso até tinham contactado com os franceses, com os ingleses e com os próprios russos para receberem garantias de nada terem a perder se mantivessem o estatuto de neutralidade. Mas nenhuma das potências da Entente deu resposta satisfatória a essa auscultação.
Desde 1913, que o Império era dirigido por um triunvirato autoritário e nacionalista designado pela Revolução dos Jovens Turcos e constituído por Djemal Pacha, ministro da Marinha, Talaat Pacha, ministro do Interior e Enver Pacha, ministro da Guerra. Este último era o mais favorável à aliança com a Alemanha, conseguindo levar por diante a mobilização geral.
Se a oeste os exércitos resistiram aos ataques inimigos, a leste é o desastre total, quando Enver Pacha atacou a Rússia persuadido da possibilidade de recuperar os territórios perdidos no Cáucaso e empurrar as fronteiras otomanas até à Ásia Central. O Inverno russo dizimou-lhe o exército, mal equipado e alimentado. O tifo e a cólera espalharam-se como uma praga, mesmo antes de se iniciarem os combates.
Como não quiseram reconhecer as responsabilidades nessa derrota, os comandos turcos arranjaram um bode expiatório - os arménios -, logo acusados de conluio com os russos.
Iniciaram-se assim as ações de retaliação contra as populações arménias da Anatólia Oriental que tomariam em breve a dimensão de um massacre coletivo. Seria o primeiro genocídio moderno da História da Humanidade.
Duzentos intelectuais dessa nacionalidade, que viviam em Istambul, foram  aprisionados e prontamente assassinados. É esse o ponto de partida do genocídio. Da Anatólia os arménios foram deportados para o deserto sírio onde morreram de fome, de exaustão ou friamente assassinados. Mais de um milhão de pessoas morreram nesse holocausto avant la lettre.
Concluiu-se que, doravante, as populações católicas deixavam de poder viver onde sempre tinham convivido com as de todas as demais confissões religiosas do Império.. O próprio sultão dera o exemplo ao apelar, logo em 1914, à mobilização para a Guerra Santa, tentando conseguir o apoio de todos os seguidores de Alá. Mas não percebeu a falta de recursos para empreender tal desafio.
Djemal Pacha, o ministro da Marinha, fixou a sua sede em Damasco donde passou a comandar todas as operações nos territórios sírios, libaneses, israelitas, palestinianos e jordanos. O objetivo era o de reconquistar o Egito. Mas a batalha contra os ingleses no canal do Suez revelou-se um fracasso total: o apelo à Guerra Santa deixara as árabes indiferentes à sua suposta fraternidade religiosa com os turcos. Pelo contrário, por todo o Império as populações árabes indignaram-se com o centralismo autoritário dos Jovens Turcos, exigindo a legalização das suas línguas e  uma maior autonomia. Temendo esse inimigo interior, Djemal Pacha mandou prender os intelectuais árabes em Damasco e em Jerusalém, acusando-os de traição e mandando-os enforcar. O resultado foi o crescimento do descontentamento desses vassalos com cujo apoio tinham contado, tanto mais que os Britânicos prometiam-lhes dar tudo quanto desejavam: a independência.
Em junho de 1916 Hussein, xeque e guardião das cidades sagradas de Meca e de Medina apelou à rebelião de todas as populações árabes dentro do Império Otomano. Feiçal, o filho de Hussein, conduz a revolta com a ajuda de Thomas Edward Lawrence, cujas aventuras apareceram ilustradas no épico «Lawrence da Arabia».

A guerra de guerrilha, que sabotou a linha férrea mandada construir por Abdul Hamid, depressa ganhou expressão de conquistas territoriais em Aqaba.
Em dezembro de 1917, o general Allenby entrou vitorioso em Jerusalém com os seus subordinados indianos e em setembro de 1918 ocorre a queda de Damasco.
Em 30 de outubro, o novo sultão Mehmet VI - que acabara de suceder ao irmão - foi obrigado a assinar o armistício enquanto os três Pachas, que tinham levado o país à ruína abandonaram-no a bordo de um submarino alemão.
A Conferência de Paz em Paris não deu a Feiçal o que lhe fora prometido, porque a Grã-Bretanha e a França decidiram ficar respetivamente com a Mesopotâmia e com a Síria. Cria-se assim um problema, que perdurará durante todo o século XX: como assimilar os traçados fronteiriços desenhados a esquadro e compasso pelas potências vencedoras em todo o Médio Oriente?

quarta-feira, março 30, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Vidas Apócrifas» de Amadeu Lopes Sabino (2005)

Há quarenta anos ainda vivia o delírio ideológico maoísta, quando Amadeu Lopes Sabino decidiu virar costas à política e dedicar-se à sua vidinha. Como era uma época em que o «Grande Educador» estava bastante ativo na designação dos que incorriam na «linha negra do Partido» essa desafeição de um dos mais conhecidos fundadores do MRPP confundiu-se com a de outros - nomeadamente Saldanha Sanches! - que, porém, nunca virariam tão ostensivamente as costas aos valores e princípios anteriores.
Acontece que, depois de penar nas prisões do marcelismo e de ter liderado a tentativa de criar uma justiça revolucionária, o autor de «Vidas Apócrifas» acabou por partir para uma bem sucedida carreira de burocrata europeu, que culminaria na sua nomeação para conselheiro especial de Durão Barroso.
Não admira, pois, que estas novelas, aglutinadas sob o título de «Vidas Apócrifas», sejam a sua confessada tentativa de abordar percursos biográficos excessivos como o reconhece num posfácio. Gente capaz de ir da glória à perdição, da existência burguesa ao manicómio, da santidade ao homicídio. Porque, porventura, na sua própria passagem da extrema-esquerda para a direita burocrática de Bruxelas,  Amadeu Lopes Sabino ter-se-á sentido, ele próprio apócrifo? Recordemos que sinónimos possíveis para este adjetivo são fingido, falsificado ou inautêntico. É assim que acompanhamos sucessivos personagens mais do que ambíguos.
Em «O Silêncio» um professor de Almada recorda o amigo morto em Aqaba depois de um brilhante percurso académico na América e de uma sucessão de casos amorosos com mulheres tão opostas como uma israelita ou uma palestiniana, enquanto perseguia o sonho impossível de identificar os vestígios da suposta língua primitiva de que teriam evoluído todas as que integram a Babel atual. Pelo meio há um escritor, o Gordo, que passa da medicina veterinária para a literatura a pretexto dos relatos das suas experiências na Guerra Colonial e converte-se num dos mais bem sucedidos nas letras lusas. Não me admiraria, que tivesse sido plasmado de um célebre invejoso, que nunca conseguirá curar-se de não ter sido ele a ganhar o Nobel.
E, porque a Guerra Civil de Espanha, ainda foi mítica para a geração dos que mal tinham deixado a adolescência na época da Revolução de Abril, outra das novelas tem a ver com esse período, evocando-se o extermínio operado pelos criminosos franquistas sobre todos quantos suspeitassem de serem rojos. Em «A Sibila de Badajoz» até um escrupuloso padre é forçado a dar um tiro de misericórdia num seu conhecido de Roma.
Em «A Nau Perfeitíssima» há algo de Conrad não só na personagem que Brando representara em «Apocalipse Now», mas sobretudo nos marinheiros de «The Shadow Line», quase enlouquecidos por dias a fio num mar espelhado e sem ponta de vento.
Em «O Lobo Eterno» arrisco a influência do Bergman de «O Sétimo Selo»: visitada pela morte que a quer levar, uma anciã pede alguns dias para comparecer no casamento do neto numa das capitais escandinavas. Julgava assim enganar o mafarrico, sem imaginar que ele a seguiria na sua viagem, reaparecendo-lhe na figura de um pintor apostado em indagar sete formas de preencher de branco as suas telas.
E em «O Violino» há a loucura de Baudelaire, a boémia desenfreada de Félicien Kops e o comedimento nem sempre bem sucedido do editor Auguste, que com eles formava um trio de amigos na cidade belga de Namur.
Cheguei à última página sem nunca me deixar entusiasmar pelo livro: há erudição e talento, mas nunca senti aquela vontade de adiar eventuais compromissos para desvendar estas histórias até ao fim.

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: O fim do Império Otomano, II - De derrota em derrota!

Em 1888 a chegada do Oriente Expresso a Istambul cria condições para uma maior influência dos valores e modas europeias na nova burguesia turca em formação. E porque muitas empresas europeias têm as suas sucursais na capital do Bósforo, as respetivas nações passaram a não ter grande interesse em pôr em causa a estabilidade do império Otomano até porque, desde 1881, possuíam localmente um consórcio para verificar se a riqueza produzida era canalizada para o pagamento da enorme divida. Tratava-se de uma espécie de equipa de técnicos da troika da época apostados em dar prioridade aos interesses dos credores em detrimento da população. O que suscita naturalmente um enorme ressentimento.
Essa cordialidade cessa no final do século XIX, quando as pretensões imperialistas das grandes potências leva-as a apossarem-se dos territórios com menos capacidade de porem em causa a sua colonização. É assim que a França apossa-se da Argélia e da Tunísia enquanto a Grã-Bretanha toma conta do Egito e de Chipre. De fora ficou a Alemanha do Kaiser Guilherme II, que se apressa a visitar Istambul para declarar o apoio, e até mesmo a proteção, ao Império decadente.
Abdul Hamid II sente então que deverá concentrar os esforços militares na preservação de um núcleo duro do território por si dominado e que integrava a Albânia, o Curdistão e a própria Turquia. E pretendendo assumir-se como o grande líder do islão consegue inaugurar em 1900 uma ligação ferroviária entre Istambul e Meca, que facilitará a viagem de todos os crentes à sua cidade santa.
Os problemas não tardam a surgir na Anatólia Oriental com os arménios a reivindicarem a sua independência. Esmagada em sangue no prenúncio do que ocorrerá em 1915, essa revolta leva o sultão a defender a legitimidade de massacrar toda uma população se tal vier a revelar-se necessário para manter a unidade do que resta do seu Império.
A opinião pública europeia indigna-se com a dimensão do morticínio, mas nada faz para defender as populações supostamente protegidas pelo Tratado de Berlim.
À Arménia sucedem-se novos problemas nos Balcãs, onde os gregos ambicionam anexar a Macedónia, mas são contrariados pelos Búlgaros, igualmente interessados em expandirem-se nessa direção. Aproveitando a fraqueza do soberano, os Jovens Turcos exigem o cumprimento da Constituição, que Abdul Hamid II tornara letra morta. Mas a suposta igualdade de deveres e direitos por todos os povos otomanos já não convencerá os mais destemidos a exigirem ser donos de si mesmos. A Albânia liberta-se e a Líbia é anexada pelos italianos. Mesmo com um novo sultão o Império perde outra das suas jóias: Salónica, que era a sua capital nos Balcãs.
O fim da presença otomana nessa Península  equivale a uma guerra brutal em que centenas de milhares de pessoas, sobretudo muçulmanas, são desalojadas para escaparem à limpeza étnica aí implementada.
Em 1913 um novo tratado redefine as novas fronteiras do que resta do antigo Império, que caminha aceleradamente para o seu estertor.

terça-feira, março 29, 2016

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: O fim do Império Otomano, I - Do auge até à chegada da eletricidade

E muito conhecido o aforismo de Santayana, que lembra o risco de se repetir o passado àqueles que o esquecem. Porque a Turquia está a desempenhar um papel determinante na Europa atual, quer quanto aos refugiados, quer quanto ao terrorismo do Daesh - e em ambos os casos de forma mais do que censurável!  -, importa olhar para a estratégia do seu presidente, Erdogan, à luz do que foi o passado otomano. É que recorrendo à religião, ele não enjeita a possibilidade de liderar um novo Califado, seja o que foi anunciado pelos seus aliados no combate a Assad na Síria, e agora derrotados em Palmira, seja o que ele desejaria recriar se tivesse engenho e arte para ser proclamado líder de todo o mundo muçulmano.
O auge do Império Otomano aconteceu em 1529, quando o avanço para ocidente estacou às portas de Viena apesar do cerco duríssimo a que a sujeitou. Dominando todos os Balcãs, a Arménia e o Norte de África, o sultão de Istambul liderava uma das grandes potências de então. E até se elogiava a relativa tolerância que os cristãos arménios, os cristãos ortodoxos e os judeus então gozavam, o que não era tanto assim já que existiam discriminações nos impostos, pagando muito mais do que os de confissão islâmica, e estando impedidos de qualquer proselitismo.
A Revolução Francesa abalou seriamente os alicerces do Império ao fornecer argumentos para que muitos dos povos oprimidos nas suas fronteiras exigissem a sua autonomia, se não mesmo a independência. Os gregos foram os primeiros a adotar a luta armada, mas logo serviram de exemplo a todos os católicos da Península Balcânica, que contaram com o apoio da Inglaterra, da França e da Rússia.
Todas essas potências defendiam os seus interesses específicos com a assunção de tal apoio: os russos queriam uma saída para o Mediterrâneo e a Inglaterra prezava o domínio naval no mesmo mar.
Em 1829, depois de uma guerra dura e prolongada, os gregos alcançaram a independência, enquanto a Sérvia e a Roménia viram reconhecidas as respetivas autonomias.
Em 1839 Abd-ul-Medjid I sucedeu ao pai na liderança do Império e levou por diante políticas progressistas, que reconheciam a igualdade de direitos e deveres de todos os cidadãos otomanos independentemente das suas crenças religiosas. Mas já apareceu tarde, porque todos os povos começavam a organizar-se em função da sua língua e credo.
As intenções do sultão desfizeram-se quando, em 1875, os sérvios e os bósnios, maioritariamente católicos, revoltaram-se contra os latifundiários, quase todos muçulmanos, sofrendo uma repressão brutal, ativamente criticada pelas potências europeias.
Pressentindo os efeitos dessa campanha antiturca os militares fazem um golpe militar e depuseram o sultão, substituindo-o pelo irmão Mourad. Mas a doença impediu-o de cumprir as suas responsabilidades e foi Abdulhamid II  o empossado poucos meses depois, comprometendo-se com a aprovação de uma nova Constituição de cunho liberal, que criasse um parlamento e respeitasse a igualdade entre todos os cidadãos do Império.
As ilusões pouco duraram, porquanto a Rússia declara guerra em nome da sua condição de protetora dos povos eslavos. Em poucas semanas a vitória militar foi avassaladora e a Turquia foi espoliada de alguns dos seus territórios no Tratado de Berlim, onde as grandes nações europeias dividiram os despojos dos derrotados: a Sérvia, o Montenegro, a Roménia e a Bulgária ganharam a independência e a Bósnia-Herzegovina foi acolhida pela Áustria.
A espoliação humilhante de parte do Império convenceu Abdulhamid a acabar com a legislação liberal, assumindo-se como um déspota iluminado, que apostou na saúde, na educação e na eletricidade.

segunda-feira, março 28, 2016

LEITURAS AVULSAS: Adam Johnson, um escritor a conhecer

A entrevista que Isabel Coutinho fez a Adam Johnson a propósito do seu livro «Vida Roubada», que ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção - e inserida no «Público» de hoje - veio-me abrir a expectativa quanto a um escritor americano cujo nome nada me dizia até agora. Mas vem também ao encontro da curiosidade, que me faz parar tudo o que estou a fazer quando me surge perante os olhos algum documentário sobre a Coreia do Norte.
Quando andei por aquelas longitudes sempre me espantei com os comportamentos das pessoas comuns chegando-as a associar a verdadeiros alienígenas - e isso mais no Japão do que na China, cujos habitantes me pareceram bem mais próximos das nossas idiossincrasias!
Então que dizer de um povo sujeito durante décadas às contínuas ações de propaganda para assimilarem os valores e os conhecimentos permitidos pelos seus dirigentes?
Eu sei que temos o relato de José Luís Peixoto sobre a experiência de visitante do país de Kim Il Sung, mas do que dele recordo ficou a ideia de nunca ter havido a capacidade para sair de um olhar verdadeiramente exterior e arriscar uma perspetiva vista de dentro.
O que Adam Johnson faz é precisamente isso: porque não está numa lógica de ensaísta, pode ficcionar o que realmente sentem essas pessoas, como amam ou vivem outros tipos de emoções. Será que acreditam realmente em tudo quanto lhes dizem? São as questões que o autor responde depois de um aturado trabalho de investigação.
Haverá também quem diga que contamos com os relatos dos que conseguiram fugir desse universo concentracionário e procurar no sul da península um outro modo de vida. Mas é o próprio Johnson quem alerta para a falta de verosimilhança de muitos desses testemunhos, porquanto eivados dos traumas inerentes a essa desafeição e às dificuldades de integração numa outra realidade.
Desconfio que irei muito em breve travar conhecimento com um dos prováveis sucessores de uns quantos escritores norte-americanos do meu agrado que, ou deixaram de escrever (Philip Roth), ou que andam a morrer ultimamente (Salter, Morrison).

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A Grande Odisseia Humana

Descendentes de um dos diversos ramos em que se segmentaram os símios ao longo da sua evolução,  só muito engenho e circunstâncias excecionais permitiram que sobrevivêssemos, porque, há duzentos mil anos, não existiam mais do que seiscentos homo sapiens na África subsariana. Como foi possível ultrapassar todas as contingências e alcançar este patamar em que somos a única espécie do planeta com a consciência da forte probabilidade da sua extinção.? É essa a resposta procurada pelo antropólogo Niobe Thompson num conjunto de três documentários excelentes, que têm estado a passar no Canal Odisseia.
No primeiro desses episódios surgem os Bosquímanos, que mostram como foi possível encontrar alimentos nas paisagens mais áridas como aquelas em que eles vivem no Calaári. Onde cada gota de água é preciosa e as proteínas se encontram nos sítios mais inimagináveis.
Noutra latitude, a das Filipinas, descobrem-se as espantosas capacidades dos Badjao para o mergulho em apneia, permitindo-lhes a recolha de moluscos e peixes. No passado o acesso a esses alimentos permitiu desenvolver maiores capacidades cognitivas.
No segundo episódio Niobe Thompson acompanha ma caravana de Beduínos para teorizar quanto à forma como os humanos conseguiram vencer o desafio do inóspito deserto saariano. De acordo com escavações em Israel, eles já ali se encontravam há 120 mil anos. Do encontro com neandertais e com denisovianos terão surgido alterações genéticas positivas, sobretudo ao nível da imunidade relativamente a algumas doenças então letais.
O convívio com essas outras espécies de hominídeos na Europa cessou há 25 mil anos, quando a nova Idade do Gelo demonstrou serem os homo sapiens os únicos com capacidades de resiliência às súbitas mudanças climáticas. E o facto de terem agulhas para poderem confecionar roupas quentes poderá ter feito toda a diferença.
Para dar uma ideia do que seriam as condições dificílimas de então, Thompson leva-nos ao encontro dos Chukris da Sibéria, que continuam na sua atividade nómada de pastoreio de renas sob frios intensos.
No terceiro episódio estão em causa as migrações por mar. Utilizando canoas, nalguns casos com estabilizadores, o Homem foi-se propagando entre as ilhas do Pacífico Sul até chegar à Nova Guiné há 50 mil anos. O ritual de transição dos rapazes para a vida adulta, mediante a escarificação da pele para se assemelharem às placas do crocodilo proveem de tempos imemoriais.
 Em 1947, Thor Heyerdahl procurou demonstrar como se expandiram as populações humanas no sul do Pacífico ao partir da América do Sul: com o seu «Kontiki» e, aproveitando ventos e correntes marítimas, chegou ao Tahiti.
Mas os avanços da Genética permitiuram dissociar as populações latino-americanas das polinésias, cujo ADN tem muito mais a ver com as asiáticas.  Isso permitiu dar fôlego a outra teoria segundo a qual foram os polinésios quem, com os seus barcos tradicionais, empreenderam essas viagens, que os levaram não só à Ilha de Páscoa, mas também às costas chilenas. Aí encontraram outras populações, que tinham ali chegado através do estreito de Bering durante a glaciação.
Olhando para a Grande Odisseia Humana, conclui-se terem sido vencidas dificuldades infinitas para chegarmos até hoje.