quarta-feira, setembro 28, 2005

PICASSO E «GUERNICA»


É conhecida a campanha de denigrimento sistemático da memória de Pablo Picasso, seja através de um filme execrável com Anthony Hopkins, quer pelo «testemunho» de uma neta, que considerou bom negócio escrever o pior possível sobre o seu antepassado.
Picasso colhe, porventura, os custos de ter tomado posições assumidamente de esquerda enquanto foi vivo. Para além de ter rompido com os cânones da pintura do século XX, que revolucionou de uma forma irreversível.
Um dos ícones mais conhecidos do século XX é o seu «Guernica». Que ele pintou na sequência do bombardeamento dessa cidade basca durante a Guerra Civil Espanhola pelos aviões alemães, que tinham ido apoiar Franco. Quadro que ele tinha no seu atelier de Paris durante a Ocupação nazi.
Um dia seria aí visitado por um oficial alemão, que apontou para o quadro e lhe perguntou:
- Foi você quem fez isto?
E a resposta do pintor foi:
- Não! Foram vocês!

terça-feira, setembro 27, 2005

AS HABILIDADES DE ERROL FLYNN

Uma das histórias mais conhecidas de Hollywood diz respeito a Errol
Flynn: quando os estúdios proibiram o álcool na rodagem dos seus filmes,
ele passou a comer muitas laranjas. Como nelas injectara previamente
vodka o resultado era acabar o dia embriagado.

segunda-feira, setembro 26, 2005

RITA: O FURACÃO QUE FICOU AQUÉM DA DEVASTAÇÃO ESPERADA

Eugene Dobson é um habitante de Galveston, cidade texana aonde se aproximava o furacão Rita, que prometia ser tão ou mais devastador que o ainda recente Katrina.
Causticado pela queda abrupta nas sondagens, George W. Bush não arriscou e mandou evacuar as zonas costeiras do Texas, do Mississipi e do Luisiana. Para minimizar essa evidência de se preocupar mais com os iraquianos do que com o seu próprio povo.
Mas, afinal, a montanha pariu um rato: a tempestade desceu até ao nível 3 e ficou-se pelos danos materiais. Se descontarmos os vinte idosos carbonizados num autocarro durante essa evacuação…
Esperemos que esta decepção dos media perante a expectativa de um espectáculo frustrado - quão bem sucedidas em temos de audiência são as imagens das desgraças alheias!!! - não se traduza na desculpabilização do inquilino da Casa Branca, agora excessivo na forma como quis salvaguardar os seus cidadãos das sequelas de tal intempérie…
Porque nada pode apagar na biografia do actual Presidente a negligência criminosa de ter cortado o Orçamento dedicado ao reforço dos diques de Nova Orleães para lhe sobrar mais dinheiro para as suas agressões a outros povos...

domingo, setembro 25, 2005

A BARBÁRIE NUM PAÍS CIVILIZADO

Hoje a Finlândia é reconhecida como um dos países mais desenvolvidos. A sua população é educada e usufrui de um nível de vida invejável. No entanto é aí que o lobo cinzento está em extinção devido à perseguição de que é alvo pelos danos causados nos rebanhos de renas. Hoje restarão uns cem exemplares, cuja esperança de vida será limitada.
Num documentário sobre este tema nota-se um outro comportamento dos finlandeses a respeito dos seus cães-pastores. Habituados a andarem de mota de neve em vez de correrem em torno dos rebanhos de renas, eles terão ficado preguiçosos. Hoje, os donos desses rebanhos confrontam-se com as atitudes de rebeldia desses canídeos, quando os tentam desalojar do conforto desses veículos.

sábado, setembro 24, 2005

NAS CINZAS DE BAMYAN

E se se encontrasse o mítico Buda deitado nas redondezas do local aonde os talibãs destruíram as gigantescas estátuas de Bamyan? Sem conseguir resgatar o crime de lesa cultura, que esse acontecimento significou, tratar-se-ia de uma boa resposta da arqueologia ao vazio deixado por esse regime financiado pelos EUA para facilitar os seus projectos geo-estratégicos.
Porque nunca se poderá esquecer que o Afeganistão foi um país aonde a cultura teve um papel determinante.
Nos anos 60 o Museu de Cabul era uma instituição recheada de tesouros das muitas civilizações, que por ali foram passando ao longo dos séculos. E que energúmenos destruíram à machadada, porque o islamismo fundamentalista condena a representação humana.
Como destruíram todas as bobines do cinema afegão, que produzira centenas de títulos ao longo do século XX!
Depois de os terem financiado durante a guerra contra a Ocupação soviética, a Casa Branca nunca se incomodou com tais crimes. O cheiro a petróleo oriundo das grandes planícies da Ásia Central justificava uma empatia de interesses, que já provava dar tão bons resultados com o regime saudita.
Veio o 11 de Setembro e George W. Bush pôs-se a ouvir vozes. De Deus, sabe-se agora…
E em vez de o internarem num manicómio, os norte-americanos deixaram-se arrastar por ele para os verdadeiros atoleiros em que se converteram o Afeganistão e o Iraque.
Se em relação aos talibãs, todo o Ocidente civilizado suspirou de alívio esperançado numa melhoria significativa do respeito pelos direitos humanos, e mais especificamente por um maior respeito pelas mulheres, quanto ao Iraque já isso não se verificou. E foi a intervenção norte-americana, que não só destruiu inúmeros tesouros arqueológicos, doravante sujeitos a pilhagens, como criou uma base logística de apoio aos terroristas anteriormente aí inexistente.

sexta-feira, setembro 23, 2005

«GABRIELLE», UM FILME DE PATRICE CHÉREAU

Numa entrevista à TV5 o actor Pascal Greggori conta como lhe custou fazer o luto do seu personagem no mais recente filme de Patrice Chéreau. «Gabrielle» baseia-se num conto de Joseph Conrad, que possibilita um «jeu de massacre» intenso entre duas personagens: por um lado a mulher, aqui interpretada por Isabelle Huppert, que deixa um bilhete ao marido a anunciar-lhe a ruptura conjugal, mas decide regressar a casa antes do final da noite; por outro esse marido, que começamos por conhecer cheio de certezas a propósito da sua vida e vê-as todas abaladas por um bilhete inesperado.
No filme Greggori vai passar por essa intensa revolução interior, revelando-a verbalmente e através dos recursos expressivos do seu rosto. Que revelam uma assumpção quase vampírica da «alma» do personagem…
Não admira, pois, essa revelação do Greggori nesse programa televisivo. As primeiras impressões, que ressaltam dos críticos, é uma interpretação superlativa, que merece ser apreciada por quem gosta de cinema.

DAVID SINGTON, «EM BUSCA DO ELDORADO»

Em 1541, o explorador espanhol Francisco de Orellana recebeu da coroa a ordem de partir em busca do Eldorado.
Regressado de oito meses de viagem, ele descreveu uma maravilhosa raça de guerreiras, a que chamou Amazonas de acordo com a mitologia grega.
Segundo as suas descrições a sua civilização desenvolvera-se tanto quanto a dos Incas.
Um século depois os missionários jesuítas não encontraram qualquer vestígio dela.
A história continuou a viver no imaginário dos exploradores sob a forma de uma lenda - a do mítico Eldorado.
Recentemente a ousadia de alguns arqueólogos, que teimaram em explorar a região, deu azo a novas descobertas.
Tratar-se-ão de vestígios dessa civilização descrita por Orellana?
Diversos especialistas interessam-se pela questão e tentam esclarecer o mistério. Alargando as buscas às colinas bolivianas, descobrem cerâmicas antigas muito sofisticadas...
No filme «Em Busca do El Dorado», o professor Clark Erickson, da Universidade da Pensilvânia, prova que uma civilização desaparecida construiu no meio da selva amazónica algumas cidades ligadas entre si por canais e estradas.
O investigador descobriu, nomeadamente, um solo negro fértil, sintetizado a partir do carvão e outros elementos, que teriam permitido aos habitantes a aquisição de comida sem destruir a floresta.
Quinhentos anos após o seu desaparecimento, esta civilização misteriosa faculta-nos preciosos ensinamentos sobre a fertilização dos solos áridos.
O documentário baseia-se na infografia, que dá forma às hipóteses dos investigadores e sobre as explicações de eminentes especialistas.

quinta-feira, setembro 22, 2005

ELIA KAZAN: «A LESTE DO PARAÍSO»

Califórnia, no começo do século. Uma luta fratricida ecoa com os efeitos da guerra na Europa.
Uma fábula metafísica interpretada por James Dean, um Caim destroçado à procura das suas origens.
Adam é um homem de bem. Alguém que, diz-se, «vive como nos tempos da Bíblia». Mas se o seu filho Aron, rapaz educado, noivo da encantadora Abra, é ffeito à sua imagem e semelhança, o outro filho, Cal sente-se diferente.
Ele descobre que a origem desse mal pode relacionar-se com a sua descoberta em como a sua mãe não morrera, como lhe dissera o pai: mulher intrigante, vestida de preto, ela gere uma casa de má nota do outro lado da baía - mais a leste.
Dividido entre a perturbante familiaridade decorrente da existência libertina da mãe e a vontade de se redimir, Cal investe corpo e alma num projecto de refrigeração de alimentos imaginado pelo pai.
O custo dos seus esforços - julga ele - será o amor do pai, que até então não soubera ganhar...
As paisagens filmadas por Kazan, com céus muito azuis e campos de milho recortados por granjas poeirentas, dão a James Dean a oportunidade de demonstrar todos os seus recursos expressivos naquele que foi o seu primeiro grande papel no cinema.
Vagabundo agitado pelas suas emoções a apanhar comboios de mercadorias para uma errância sem fim entre o insustentável lugar de perdição e o impossível refúgio, ele vê-se na contingência de alcançar o perdão em vez do amor. E, atrás de Cal, é Caim que se deve ver, tal como Aron personifica um Abel disfarçado. Porque Elia Kazan não se preocupa muito em escamotear o lado simbólico do seu filme: Cal, que quer encontrar a salvação a qualquer preço, vê-se alvo do amor da noiva do seu irmão e trabalha intensamente para devolver ao pai a fortuna perdida no projecto de refrigeração. Mas comete um crime fracticida…
Este filme notável pelos seusplanos expressionistas e a sua iluminação extremamente contrastada, conta a mais velha das histórias: a do crescimento de um rapaz até se tornar adulto através da iniciação pelas vias da dor, da paixão e da morte...

quarta-feira, setembro 21, 2005

FUTEBOL NO FEMININO

As mudanças mais eficazes são as oriundas dos pequenos acontecimentos. Como o desta fotografia: apesar do estádio vazio e do equipamento singular de uma das jogadoras, existe nesse afã em torno de uma bola algo de subversivo. Porque ambas contestam o papel tradicional da mulher na sociedade islâmica: em casa a tratarem dos filhos.
Aqui a iraniana Shihrin Nasiri e a jordana Diana Akkad disputam uma das partidas do Campeonato feminino de futebol organizado pela Federação de Futebol da Ásia Ocidental. E a diferença do equipamento transmite, por si, o nível de evolução da imagem da mulher em qualquer desses países muçulmanos. Mais fechado o iraniano, que obriga ao lenço a tapar os cabelos e o fato de treino a tapar todo o corpo. Mais ocidentalizado o jordano, que já permite a ostentação do cabelo e das pernas das suas jogadoras.
Mas, mesmo nessas diferenças, há os sinais premonitórios de uma irreversível tendência para a igualdade dos sexos numa sociedade ainda marcada pelas suas tradições mais arcaicas.

terça-feira, setembro 20, 2005

JAMES CAMERON e GARY JOHNSTONE: «EXPEDIÇÃO BISMARCK»

A 4800 metros de profundidade, os projectores de um pequeno submarino iluminam a bota de um oficial, a ponte de comando tombada na areia, e depois a imponente massa do couraçado e dos seus canhões.
Eis-nos perante os vestígios de um monstro lendário - o «Bismarck» - orgulho da Marinha de Guerra do IIIReich.
Com 50 mil toneladas, este navio ultramoderno, capaz de atingir uma velocidade de 50 nós, e equipado com canhões com potencia de tiro até 25 quilómetros e uma blindagem de trinta centímetros, envia para o fundo a 24 de Maio de 1941, o ex-libris da frota britãnica , o couraçado «HMS Hood».
Um único obus explode no paiol de munições. Resultado: 1415 marinheiros mortos e apenas três sobreviventes.
As represálias de Winston Churchill não se fazem esperar: a «Home Fleet» é lançada na perseguição do «Bismarck» com os Swordfish a descolarem do porta-aviões «Royal Ark» para lançarem torpedos contra o couraçado. Um leme é atingido.
A 27 de Maio, quando já não pode manobrar, o «Bismarck» é bombardeado incessantemente por seis navios britânicos: num total 2876 obuses e três torpedos afundam o couraçado, que pousa a 4760 metros de profundidade, a ocidente de Brest.
Dos 220 membros da tripulação, apenas 110 sobrevivem…
James Cameron, o realizador do «Titanic» é o nosso guia para a descoberta dos destroços, que são filmados graças a robots-câmaras telecomandadas. Que revelam as centenas de impactos no flanco do couraçado e penetram no seu interior através de um buraco criado por um torpedo, naquela que se revela uma autêntica autópsia de um navio lendário...

segunda-feira, setembro 19, 2005

JOSEPH CONRAD: «A LAGUNA» (DO LIVRO «HISTÓRIAS INQUIETAS»)

Eis um conto ao estilo do Conrad, que foi tripulante de navios mercantes nos cenários exóticos das costas e asiáticas.
A história parte da perspectiva de um branco - porventura o único por aquelas paragens - quando este ordena à sua tripulação a escala na concessão do seu amigo Arbat.
Ao fundo da avenida rectilínea aberta na floresta pela cintilação do rio, o sol aparecia, sem nuvens e encandeante, pousado sobre a água que brilhava como uma folha de metal. A floresta sombria e triste erguia-se de ambos os lados do largo rio numa imobilidade silenciosa. Nas lamas da margem e por baixo das majestosas árvores de grande porte cresciam as palmeiras nipa, sem tronco e com as enormes e pesadas folhas suspensas sobre o remoinhar das águas pardacentas. No ar parado, as árvores, as folhas, os ramos, as lianas, as pétalas das flores recém-desabrochadas pareciam ter sido encantadas e fixadas numa imobilidade perfeita e definitiva. No rio também nada mexia, a não ser os oito remos que regularmente subiam relampejando para mer­gulhar na água ao mesmo tempo como um só; e o timoneiro descrevia uma curva luminosa por cima da cabeça com a pagaia antes de a mergulhar regularmente à direita e à esquerda.
O branco, de costas para o sol, percorria com o olhar a vasta extensão deserta do estuário. Durante as últimas três milhas do seu curso, o rio, até aí hesitante e sinuoso, corre a direito para o mar, como que corre atraído irresistivelmente pela liberdade dum horizonte a leste — para o leste que abriga simultaneamente a luz e as trevas. A retaguarda do barco, o grito repentino duma ave, um grito não harmónico e em decrescendo, deslizou pela superfície polida das águas e perdeu-se, antes de chegar à outra margem, a um silêncio de morte em que tudo estava mergulhado.
Compreendia-se esse ambiente soturno: na cabana da concessão está uma mulher a morrer. É Diemelen, a mulher que Arbat muito amara. Apesar de, pela sua condição servil, ele não poder aspirar a tal objecto de desejo.
Agora, enquanto aguardam pelo último suspiro dela, Arbat conta como decidira fugir com ela, ajudado pelo irmão, que nutria por ele um profundo amor fraternal:
O meu amor era tão grande que pensava que me poderia guiar até um país onde não haveria morte se conseguisse escapar à cólera de Inchi Midah e à espada do Rajá. Remávamos com toda a força, respirando por entre os dentes cerrados. As pás dos remos mergulhavam profun­damente na água plana. Saímos do rio; vogámos em canais claros entre baixios. Contornámos a costa negra; bordejámos a praia arenosa onde o mar diz segredos à terra; e a areia branca cintilava à nossa passagem, tão rápido o nosso barco corria sobre a água. Não falávamos. Eu disse só uma vez: — «Dorme, Diamelen, pois dentro de pouco tempo vais precisar de todas as tuas forças». — Ouvi a doçura da sua voz mas não voltei a cabeça uma só vez. O sol nasceu e continuámos a remar. O suor pingava-nos da cara como a chuva das nuvens. Fugíamos envoltos em luz e calor. Não olhei para trás uma vez sequer mas sabia que os olhos do meu irmão, atrás de mim, olhavam fixamente em frente, pois o barco avançava tão a direito como o dardo dum homem da floresta quando sai do sutripitan. Não havia melhor remador, melhor timoneiro que o meu irmão. Tínhamos ganho muitas corridas os dois com aquela canoa. Mas nunca usáramos as nossas forças como naquela altura — naquela altura que foi a última em que remámos juntos! Não havia guerreiro mais valente nem mais forte que o meu irmão. Não podia desperdiçar forças para me voltar e olhar para ele, mas ouvia a sua respiração tornar-se cada vez mais ruidosa. No entanto ele não falava. O sol estava alto. O calor colava-se-nos aos rins como uma língua de fogo. As costelas pareciam ir rebentar-se-nos e eu já não conseguia encher o peito de ar. E então senti que me era necessário gritar com o meu último fôlego: — «Descansemos...»— «Está bem» — respondeu ele; e a sua voz era firme. Ele era forte. Ele era valente. Ele não conhecia o medo nem a fadiga... o meu irmão!
Um murmúrio forte e doce, um longo e débil murmúrio; o murmúrio de folhas, de ramagens agitadas, correu das profundezas emaranhadas da floresta, correu sobre a planura da laguna marulhou subitamente contra as estacas lodosas. Um sopro de ar quente veio aflorar os rostos dos dois homens e passou com um ruído lúgubre— um sopro profundo e curto como um suspiro inquieto do sonho da terra. Arsat retomou a sua narrativa em voz baixa e monocórdica:
— Varámos a canoa na praia duma pequena baía perto duma língua de terra que parecia barrar-nos o caminho; um extenso promontório coberto de árvores que penetra profundamente no mar. O meu irmão conhecia aquele lugar. Do outro lado do cabo, desagua um rio e existe um caminho estreito que vai dum lado ao outro através da selva. Fizemos uma fogueira e cozemos arroz. Depois deitámo-nos na areia macia, à sombra da canoa, para dormirmos enquanto ela vigiava. E mal tinha fechado os olhos ouvi-a soltar um grito de alarme. Erguemo-nos dum salto. O sol tinha já feito três quartos do seu curso e, na abertura da baía, avistámos um parau tripulado por muitos homens. Reconhecemo-lo imediatamente; era um parau do Rajá. Eles estavam a esquadrinhar a costa e viram-nos. Fizeram soar o gong e rumaram para dentro da baía. Senti o coração faltar-me. Dicmelen sentou-se na areia e cobriu o rosto. Não tínhamos fuga possível por mar. O meu irmão riu-se. Tinha a espingarda que tu lhe tinhas oferecido antes de partires, mas só uma mão-cheia de pólvora. E disse rapidamente: — «Leva-a pelo caminho. Eu aguento-os pois eles não têm armas de fogo e desembarcar contra um homem armado é morte certa para alguns. Foge com ela. Do outro lado daquele bosque vive um pescador... com uma canoa. Logo que tenha gasto os cartuchos todos vou atrás de vós. Tu sabes como corro e antes de eles terem tido tempo de chegar ao outro lado já nós teremos partido. Vou aguentar o mais que puder pois ela é só uma mulher... que não sabe lutar nem correr mas tem o teu coração nas suas mãos frágeis». — Agachou-se atrás da canoa. O parau aproximava-se. Nós os dois corremos e já íamos no caminho quando ouvi tiros.
O irmão de Arbat morreria nesse combate para possibilitar a fuga dos amantes malditos. Tão malditos, que a doença estava em vias de levar consigo a frágil Diemelen.
Tendo perdido quem muito amara, Arbat planeia um último gesto: o de vingar o irmão, procurando e matando o poderoso e injusto rajá:

O sol iluminava-lhe o rosto, aparecendo já a rasar o topo das árvores, na sua ascensão constante. A brisa tornou-se fria; a superfície da laguna brilhava com a luminosidade. A floresta emergiu das sombras da manhã, tornou-se distinta como se se tivesse aproximado para mais perto — e estacado numa grande agitação de folhas e de ramagens. Na luminosidade impiedosa, o segredar da vida inconsciente elevou-se, envolvendo com uma ressonância incompreensível as trevas mudas da dor humana. Os olhos de Arsat erravam lentamente e depois fixaram-se no sol nascente.
- Não vejo nada — disse para si a meia voz.
- Não há nada — disse o branco, andando para a borda da plataforma e fazendo um aceno com a mão para o barco. Um grito veio de lá, através da laguna, e o sampan começou a deslizar em direcção à morada do amigo dos fantasmas.
- Se queres vir comigo, posso esperar por ti a manhã toda — disse o branco olhando para longe, para a água.
- Não, Tuan — disse docemente Arsat. — Não comerei nem dormirei nesta casa, mas primeiro tenho de ver o meu caminho. Agora não vejo nada — não vejo nada! Não há luz nem paz no mundo; mas há morte — morte para muitos. Nós somos filhos da mesma mãe... e eu deixei-o sozinho no meio dos inimigos; mas agora vou voltar.
Respirou profundamente e acrescentou como num sonho:
- Dentro de pouco tempo hei-de ser capaz de ver o suficiente para bater... para bater. Mas ela morreu e… agora ...só há escuridão.
Abriu os braços, deixou-os cair ao longo do corpo e depois ficou imóvel, de cara impassível e olhar petrificado, olhando fixamente para o sol. O branco desceu para a canoa. Os homens, manobrando as varas, correram ao longo do barco, olhando pelo ombro para o começo duma jornada esgotante. À popa, de cabeça coberta por um farrapo branco, o juragan continuou sentado, mal disposto e deixando a pagaia arrastar-se na água. O branco, com os cotovelos apoiados no telhado de folhas da casota pequena seguia com o olhar a esteira cintilante do barco. Antes 'de o sampan ter deixado a laguna e entrado no rio, ergueu os olhos. Arsat não se tinha mexido. Mantinha-se solitário, debaixo da luz penetrante do sol.

domingo, setembro 18, 2005

«YEHUDI MENHUIN, O VIOLINISTA DO SÉCULO», UM FILME DE BRUNO MONSAINGEON

Durante muito tempo, Bruno Monsaingeon julgou ter chegado demasiado tarde: embora tivesse na sua colecção todos os discos gravados por Yehudi Menhuin entre 1928 e 1944, não saberia como emcontrar quaisquer registos em imagens do fabuloso violinista, que lhe garantisse a exequibilidade de um documentário. Até que essas imagens começaram a sair dos baús e esse filme tornou-se possível para dar a conhecer a vida e a obra de um artista de excepção.
O próprio Yehudi, já em provecta idade, vai situando os registos fotográficos e cinematográficos, que Monsaingeon lhe vai apresentando.
Começando, naturalmente, no seu nascimento, que definiu à partida o seu destino através do nome escolhido pela mãe: ao sentir-se na iminência de ver aumentada a família, a mãe de Yehudi procurou um novo apartamento em Nova Iorque, quando ela e o marido estudavam na Universidade do Bronx. Ao escolher uma determinada casa, ela vira a futura senhoria dar como referências do bom ambiente do seu prédio o facto de dele excluir os judeus. Isso decidiu a futura mãe a dar ao seu rebento - e às duas filhas, que se lhe seguiriam - nomes indubitavelmente judeus.
Desde muito cedo essa mesma mãe revelaria uma determinação singular em dar a Yehudi uma boa educação musical, tão só descortinou nele o interesse pelo violino. Uma rotina exigente, quase obsessiva, daria origem ao génio precoce, que não tardaria a maravilhar as plateias das salas de concertos.
Paul Paray, que conhecerá Yehudi em Paris, quando ele tem dez anos, fica rendido à sua interpretação da «Sinfonia Espanhola» de Lalo e encaminha-o para Enesco, o grande compositor e professor de violino, que obrigará a família a dividir-se: a mãe e as crianças ficam na cidade luz, enquanto o pai de Yehudi regressa a São Francisco.
Quando se sente incapaz de levar o seu pupilo a maiores progressões, Enesco encaminha-o para Adolf Busch, que tutelará a sua progressão em 1929 e 1930. Mas o rapaz sempre preferirá o vibrato romântico de Enesco à racionalidade alemã do seu novo professor.
Os jornais já proclamam, entretanto, que Menhuin será um novo Mozart, constituindo a sua maestria um autêntico milagre. A gravação, que em 1932, fará em Londres com Elgar constitui um autêntico acontecimento no mundo musical.
Durante a guerra toca em hospitais num contacto directo com os seus auditores. A sua devoção ao esforço de guerra dos aliados é tal, que chega a dar três concertos diários, não lhe sobrando tempo para aperfeiçoar a sua técnica. E a peça com que encerrava esses espectáculos de beneficência era, invariavelmente, o «Ave Maria» de Schubert.
No entanto, quando a guerra acaba e regressa a Berlim, após uma prolongada ausência, não hesita em tocar com Furtwangler ainda então alvo de marginalização devido à sua colaboração com a política cultural nazi. Demonstrando que, mais do que a política, o seu compromisso era, sobretudo, com a música. A grande música, de que foi intérprete superlativo...

sábado, setembro 17, 2005

CORNUCÓPIA: «SANGUE NO PESCOÇO DO GATO»

Há toda uma vida preenchida por estereótipos, uma linguagem recheada de lugares comuns. Um gigolo, que vende ternura a mulheres mais velhas, uma viúva de soldado a contas com irrisória pensão, um empregado humilhado capaz de se vir a transformar em patrão humilhador, a burguesa a viver dos seus rendimentos, uma modelo a preferir o prazer solitário ao propiciado pelos muitos homens da sua vida, a rapariga apanhada a roubar e a quem o pai açoitava em pequena, o velho pederasta sossegado na inquietação da sua diferença, o polícia cuja mãe era uma cabra, o soldado boçal pronto a assediar qualquer rapariga com que se cruza, etc, etc.
É com toda essa gente, que se cruza uma enviada das estrelas, disposta a indagar sobre o significado da civilização humana. Decorando-lhe as palavras, mesmo sem se aperceber do correspondente sentido. Até devolver a esses personagens o eco das suas palavras, neutralizando-os com dentadas de vampiro.
Numa altura em que o mais recente filme de George Romero sobre zombies está aí em Lisboa a explicitar uma crítica inteligente ao capitalismo em época de globalização, a peça de Fassbinder agora estreada na Cornucópia é reveladora dos limites de um tipo de sociedade democrática em que o direito dos seus cidadãos à liberdade se vê condicionado por preconceitos, por frustrações, por desencantos, por pura maldade.
Homens e mulheres diferenciam-se nos seus direitos e deveres numa sociedade, que acautela o poder da força dos primeiros contra a vontade emancipadora das segundas.
Para ilustrar o texto de Fassbinder, Luís Miguel Cintra pôde contar com a colaboração de um excelente naipe de actores, a começar pelo veterano Lima Barreto e pelos experientes Rita Durão, Ricardo Aibéo, Rita Blanco e Luísa Cruz até actores mais novos, mas cuja inserção na companhia traz uma óbvia diversidade de soluções.
Pelo facto de ainda agora ter estreado, a peça padece no seu início de algumas fragilidades interpretativas. Mas quando ganha velocidade de cruzeiro, volta-se a sentir a consistência de uma encenação e de uma cenografia, que sustentam a riqueza polissémica do texto…

sexta-feira, setembro 16, 2005

Ver Impossíveis

Foi uma das mais belas frases, que vi nos últimos tempos e era assaz repetida por Robert Kennedy nos seus comícios, apesar de ser da autoria de George Bernard Shaw:
- Há quem veja a realidade e pergunte «Porquê»? Eu vejo impossíveis e digo-me «Porque não»?
É uma variante de outra bela frase, muito citada na época: «Seja realista, peça o impossível!».
E muito embora sejam próprias de um tempo muito particular da história humana, já aparentemente tão distante, apetece resgatá-las para o presente e impô-las como exigência desta época em que as pessoas andam tão desencantadas.
Porque esse Robert Kennedy, cuja morte tanto me impressionou quando eu tinha doze anos, passara por uma experiência iniciática tão reveladora quanto a de Ernesto Che Guevara no seu périplo pela América Latina ao volante de uma motocicleta. Para o antigo entusiasta das políticas anticomunistas de MacCarthy, o choque do seu encontro com a miséria da região do Mississipi - uma das mais afectadas pela recente passagem do Katrina - fê-lo sacerdote de uma nova doutrina redentora. Aquela que prometia o paraíso na Terra a todos os norte-americanos, a quem prometia libertar da pobreza, do analfabetismo e da obrigação em servir de carne para canhão na ratoeira vietnamita.
Esses impossíveis, que justificavam a pergunta: Porque não?
O mesmo «Porque Não?» que deveremos utilizar ao confrontarmos as nossas frustrações com as realidades feitas tão diversas das nossas ambições.
Precisamos urgentemente de uma outra sociedade, de uma outra forma de desenvolvermos as relações de produção e a correspondente distribuição dos seus dividendos…

quinta-feira, setembro 15, 2005

UMA DIREITA TEMEROSA DA VONTADE DO POVO EXPRESSA EM VOTOS

Querem-nos fazer crer, que a vontade do povo é soberana. Por isso se vota. Para se escolherem os nossos representantes nos órgãos de soberania definindo as políticas a implementar em todos os aspectos da vida social.
O respeito por essa vontade deveria ser um dos paradigmas inquestionáveis dos nossos deputados e governantes. Por ser a expressão legítima da Democracia em que se fundamenta a nossa Constituição.
Ora, nos últimos dias, a direita tem dado um espectáculo deveras degradante de contestação desses princípios elementares ao levantar todos os obstáculos a uma consulta popular sobre a despenalização do aborto.
Esquecendo sequer que a esquerda no seu pleno quase absoluto defende a revisão da retrógrada legislação ainda existente nessa matéria e a poderia - com toda a legitimidade - revogá-la na Assembleia com o voto conjugado da maioria dos seus deputados, a direita quer atrasar esse momento de aproximação civilizacional da legislação portuguesa com a que, há muito, se implementou nos países mais desenvolvidos.
Para tal quer impedir o referendo, que levará o povo a expressar-se, ditando a sua vontade aos legisladores. Invocando argumentos formais, que não conseguem omitir o essencial: a direita tem medo de ir a votos. Porque sabe que ainda está presa aos mais vetustos preconceitos, aqueles que a maioria dos portugueses quer ver erradicados dos seus quotidianos por constituírem a expressão de um atraso cultural e social totalmente desfasado da sociedade avançada para que tendemos.
Em prol das mulheres, que arriscam a vida em abortos clandestinos, é urgente acabar com o escândalo dessa legislação caduca. Mesmo contra a vontade de quem privilegia eventuais sensações de amálgamas de células ao sofrimento de quem se vê ameaçado de prisão e julgamento pelo exercício elementar do direito a uma paternidade responsável, porque desejada…

quarta-feira, setembro 14, 2005

ADÍLIA LOPES: O MERGULHO NUMA ÉPOCA DE DÚVIDAS.

Aos 44 anos, esta poetisa considera que os poemas constituem um escudo invisível contra o exterior. Dizendo: «aquilo que os outros troçam em nós, é o que mais temos de preservar!»
Há quem a designe «Luís Pacheco de saias», o que é por ela considerado um verdadeiro piropo… Embora exclua intuitos provocatórios na sua poesia.
«Caras Baratas» é o título da sua antologia, que reflecte uma metáfora sobre este tempo de consumismo acelerado, de rostos a metamorfosearem-se em sucessivas operações plásticas. O que é natural em quem gosta de mostrar um certo sentido de humor…
Eduardo Prado Coelho classificara de ostensivamente não literário este pseudónimo, que Maria José escolheria, em 1983, para identificar a autoria do seu livro. Numa altura em que ela se esforçara por controlar todos os aspectos desse título. Acabando por se colar mais
facilmente ao seu pseudónimo, do que ao seu nome de bilhete de identidade.
A escolha dessa identidade alternativa foi subjacente a uma terrível depressão - em 1981 - quando vivia numa casa familiar pejada de pessoas velhas, que lhe impediam qualquer oportunidade de concentração, e sem quaisquer amigos…
O primeiro livro chamava-se «Um Jogo muito perigoso», que explicitava a correlação da vida com os seus riscos consequentes… E com a linguagem a traduzir parte da sua biografia, mas com algum distanciamento…
Passados vinte anos, sente-se à vontade na sua exposição pública através da televisão, apesar de não considerar que estar frequentemente a aparecer nesse meio de comunicação não é vida para si. Razão de ter colocado um travão nessa fugaz sujeição aos media.
Mas, nesta época de impasse, a sua própria escrita conhece uma paragem para reflectir. E decidir os rumos, que se seguirão...

terça-feira, setembro 13, 2005

JOANA VASCONCELOS: UMA ESCULTURA DE SUPERMERCADO

É uma escultora, que utiliza materiais menos habituais nesse tipo de arte. Já não a pedra, nem o metal, mas os tampões vaginais por exemplo. Para fazer um candelabro, que já esteve na discoteca «Lux», em Paris e em muitos outros sítios até desembocar em Veneza. Gerando múltiplas interpretações, completamente díspares umas das outras.
Quis ser arquitecta, mas acabou por avançar para as artes, estudando na António Arroio e na Arco, fazendo design, joalharia, desenho, história da arte… Convivendo com a criação artística, sem outra preocupação, que não fosse dar asas à imaginação.
Da joalharia cresceu-lhe a preocupação com o perfeccionismo. Assumindo um bom acabamento da peça, a capacidade de a tornar atraente logo ao primeiro olhar.
«As Flores do Meu Desejo» é a sua primeira obra, em que utiliza cerca de duzentos espanadores e o título de um filme de Pedro Almodôvar. Recorrendo a uma drogaria (do sr. Nelson) aonde encomenda essa quantidade de espanadores todos iguais… Uma peça que seria adquirida por Pedro Cabrita Reis, que confessou um dia, ora adorar, ora detestar os trabalhos desta artista...
A obra tem crescido, com obras cada vez mais numerosas e volumosas. Envolvendo os seus espectadores, cada vez mais rendidos às suas ideias…
A realização das peças é o que lhe dá mais prazer. Começando no desenho da peça, seguindo-se a encomenda de algumas das suas componentes à Metalúrgica de Algés. Comprometendo nesse esforço uma equipa de pessoas, que monta os vários elementos no atelier da artista…

segunda-feira, setembro 12, 2005

QUMRAN: SEGREDOS ESCONDIDOS NO DESERTO

Qumran nas margens do Mar Morto em 1947: encerrados em jarros, escondidos há dois milénios numa gruta, foram encontrados os célebres Manuscritos bíblicos e os rolos de cobre com a lista dos míticos tesouros algures ali enterrados.
O interesse dos arqueólogos por esse local não conheceria doravante qualquer quebra, já que são muitos os mistérios a ele associados. A começar pela existência ou não de Jesus Cristo!
Na origem deste interesse há a lenda: os jarros tinham sido descobertos por pastores beduínos, que encaminhavam os seus animais para um oásis ali próximo e haviam atirado pedras para dentro de uma gruta. Ao som dos potes a partirem-se, tinham-lhes crescido esperanças de haver por ali ouro ou prata.
Para seu desconsolo só existiam esses rolos de tecidos cobertos por caracteres e esses rolos de cobre, que se apressaram a vender a um cristão sírio por cerca de 5 dólares.
Até chegarem a arqueólogos dotados de conhecimentos adequados para analisarem esses achados, os manuscritos e os rolos ainda andariam por muitas mãos, incluindo as do metropolita de Jerusalém, Samuel, também ele desiludido com os resultados do negócio por ele previsto para tais antiguidades.
Uma das primeiras hipóteses formuladas pelos estudiosos foi a de se tratarem do labor de uma seita, a dos Essénios, que entre 150 a.C. e 68 d.C. tinham seguido o antigo sacerdote do Templo para o deserto e aí haviam fundado um mosteiro inteiramente vocacionado para o registo dos livros sagrados. Na previsão de um iminente Apocalipse, eles tinham mostrado uma incrível tenacidade nesse propósito, vivendo numa comunidade exclusivamente masculina, praticante de uma certa forma de comunismo primitivo ao eliminar o conceito da propriedade privada em favor de uma distribuição equitativa dos parcos recursos garantidos por uma incipiente actividade agrícola e de pastoreio…
Deles fala Flávio José, um dos mais importantes historiadores da época, que descreve a sua obsessão pela Justiça e pelo temor a Javé.
Mas os mais recentes estudos sobre Qumran põem em causa essa teoria: em vez de um deserto inóspito, aquela região era verdejante e muito activa nas trocas comerciais. Por outro lado, o cemitério aí descoberto revela a existência de esqueletos femininos, o que contraria a tese de serem exclusivamente Essénios os seus habitantes.
O estado da investigação sobre Qumran tende, pois, a formular mais perguntas do que respostas: esse local prestar-se-á a contínuas especulações, até esotéricas, sobre quem ali viveu há dois mil anos...

domingo, setembro 11, 2005

PAUL HAGGIS: «COLISÃO»

Los Angeles é uma cidade complicada. Logo de início, diz-se que, aí, as pessoas não se tocam, sempre à defesa por detrás das suas protecções envidraçadas. Porque existe uma tensão racial contínua, que justifica um receio permanente entre as diversas comunidades. Porque aqui existem negros e brancos, mas também iranianos ou chineses. E a diferença intimida, distancia. O preconceito dá azo a equívocos. Que geram gestos precipitados, mas irreversíveis nas suas consequências.
É o que acontece ao polícia Hanson (Ryan Phillippe), que sempre se esforçara por ser correcto e chegara a pedir transferência da sua viatura de serviço devido ao racismo larvar do parceiro Ryan (Matt Dillon), para, depois, ceder à postura estereotipada, matando um negro de cujas intenções desconfiara.
Ora Anthony (Chris Ludacris Bridges) era o irmão do detective Graham (Don Cheadle), destacado para o local do crime juntamente com a sua colega e amante Ria (Jennifer Esposito). E será ela quem comprovará o drama dele, incapaz de se fazer amar por uma mãe, que nunca deixa de o desvalorizar, responsabilizando-o pelo facto de nunca ter chegado a encontrar o irmão e levá-lo para casa. Numa cena eloquente quanto ao que se quer acreditar, apesar da verdade, ela diz a Graham, que Anthony a visitara na véspera da sua morte, enchendo-lhe o frigorífico de alimentos. Quando fora o próprio Graham quem o fizera enquanto a progenitora persistia no seu estado habitual de alcoolismo.
Reconhecimento não é o que faltará a Ryan por parte do pai com quem vive. E o seu racismo, que o leva a humilhar um casal negro apalpando a mulher à frente do marido, tem por causa a revolta por não conseguir um tratamento adequado para o pai roído pela dor. Um pai que tivera um negócio e sempre tratara decentemente os empregados de cor, mas acabara falido por causa das leis da discriminação positiva.
A Hanson ele dirá que a vida de polícia não tardará a endurecê-lo, a suavizar-lhe esse comportamento politicamente correcto. «Julgas que te conheces, mas enganas-te», diz-lhe à despedida.
Mas é ele próprio, quem terá direito a uma lição de vida, quando lhe caberá salvar a vida à mulher (Thandie Newton) que molestara. E cujo acidente de viação muito deve à perturbação nela suscitada pela violação, que sofrera.
E que tanto perturbara igualmente o marido, o realizador de televisão, Cameron (Terrence Howard), subitamente confrontado com novas evidências de uma segregação social subtil, mas incontornável em tudo quanto roda no estúdio.
Mesmo para os negros privilegiados, a cor da pele acaba por ser um estigma.
Mais difícil é obviamente para os dois rapazes, que assaltam brancos nas avenidas mais frequentadas da cidade. Peter (Larenz Tate) e Anthony (Chris Ludacris Bridges) recorrem, como alibi, às desigualdades suscitadas pelo sistema, mas o verdadeiro motivo dos seus ataques é arranjarem carros para negociar com um receptor sem escrúpulos.
Existe, enfim, o casal de brancos, Jean (Sandra Bullock) e Rick (Brendan Fraser), que detém uma invejável qualidade de vida, mas vivem a insegurança de um assalto à mão armada, que os terá deixado mais conscientes das suas fragilidades.
Ele, enquanto político, com apoios imprescindíveis na comunidade negra, não prescinde de distorções à realidade, desde que nada ponha em causa a sua reeleição. Mesmo que, para tal, mascare em crime racista os disparos de um agente da Brigada dos Narcóticos contra um polícia comprovadamente corrupto.
Ao contrário da primeira parte, os personagens começam a tocar-se, estabelecendo elos fundamentais para se sentirem com coragem para os desafios futuros…
É o que sucede com os dois casais - o branco e o de cor -que encontram alguma coragem para voltarem a trilhar dentro e fora de casa o equilíbrio necessário para continuarem a sobreviver naquele ambiente em que se vive continuamente à beira de um ataque de nervos.
Singular é o quase silêncio da crítica a propósito de um filme que, na temática e na estrutura, lembra «Magnólia». Apresentando uma América fragilizada pelo clima de guerra civil em nada consonante com a visão dela colhida por pelo seu lamentável Presidente, demasiado autista para compreender quão fundamental é começar a arrumar a própria casa antes de tentar arrumar a dos outros.

TEMPOS INTERESSANTES SEGUNDO HOBSBAWN (1)


É um dos livros mais significativos publicados no ano em curso: o historiador Eric Hobsbawn resolveu escrever sobre o século mais extraordinário da história universal, o XX, descrevendo-o através das suas memórias pessoais e de acordo com a definição emitida por uma amiga sua, a filósofa Agnes Heller: “A história fala daquilo que acontece visto de fora, e as memórias falam daquilo que acontece visto de dentro“.
Ora, a visão de Hobsbwan tem a vantagem de ser filtrada pela matriz marxista de que ele se confessa defensor. Porque, apesar de tudo quanto vira na Áustria da sua infância, na Alemanha em plena ascensão do nazismo ou na Inglaterra durante e após a guerra, nada, a seu ver, contraria ao postulados de uma perspectiva, que assenta na constatação de que “os homens fazem as suas vidas, mas não as fazem como gostariam, não as fazem em circunstâncias por eles escolhidas, mas em circunstâncias decorrentes e transmitidas directamente do passado”.
É claro que Hobsbwan não aceita que o rotundo falhanço da tradução prática desse marxismo, seja na URSS, na China ou em qualquer outro dos regimes por ele supostamente inspirados, ponha em causa a sua validade teórica. Porque novas tentativas para encontrar a via da Utopia voltarão a surgir, utilizando ou não as definições nossas conhecidas (comunismo, socialismo, etc.).
Importa sim reconhecer que, apesar da imensa crueldade revelada ao longo do século XX, o Homem não deixará de contornar esse passado e ensaiar um futuro diverso, mais civilizado...

sexta-feira, setembro 09, 2005

UMA ANÁLISE ESTEREOTIPADA DA PRÁTICA GOVERNATIVA

Lêem-se as análises dos comentadores políticos dos nossos jornais e apetece evocar aquele célebre mestre da propaganda nazi, que constatava a tradução em verdade colectivamente aceite uma mentira mil vezes repetida.
Vem isto a propósito do editorial de José Manuel Fernandes na edição de sábado, dia 10 de Setembro: uma vez mais lá volta a estafada tese da destruição de expectativas positivas alimentadas pelo Governo de José Sócrates neste primeiro semestre de governação.
Como se a contestação das várias corporações atingidas por algumas das corajosas medidas anunciadas e aplicadas, pudesse justificar uma queda em desgraça como muito rapidamente sucedeu com a desastrada governação de Santana Lopes.
Mas se JMF e muitos outros comentadores continuam a ser demasiado subjectivos e parciais em tudo quanto diz respeito ao trabalho governativo deste período, a realidade vai-se encarregando de lhes negar as previsíveis evidências.
O que aconteceu com o crescimento do PIB é só um exemplo: no dia do seu anúncio pelo INE não faltavam analistas a explicarem porque se estava em recessão.
No dia seguinte, despeitados pelo crescimento de 0,5%, vinham refrear o entusiasmo dos que vêem nesse indicador o sinal de uma inversão no pessimismo dos portugueses. Esquecendo-se de como, um ano antes, haviam sido cúmplices do Governo de Durão Barroso, no anúncio de uma retoma, que, aí sim, se fundamentara tão só no efeito atípico do Euro 2004.
Enquanto cidadãos responsáveis, qualquer desses comentadores deveriam ter como prioridade o interesse do país. Que, qualquer que seja a cor do Governo, sejam os seus resultados a definirem a apreciação ou não do seu sucesso.
Ora, numa altura em que o petróleo bate recordes nos mercados internacionais ou em que a República Popular da China aproveita as consequências de uma estratégia furada de Washington para implodir o seu regime, fazendo-a entrar na Organização Mundial do Comércio sem a devida consideração do que estava em causa, o Governo de José Sócrates está a demonstrar uma competência e uma determinação inquestionáveis para superar os pontos fracos da economia portuguesa.
E as medidas corajosas, que vai tomando, dão garantias de corresponderem ao rumo mais acertado para reaproximar Portugal das economias mais dinâmicas do nosso tempo...

quarta-feira, setembro 07, 2005

MARGARIDA GIL: «ADRIANA»


Há uma ilha lindíssima, marcada pelas suas origens vulcânicas. Escura nas suas pedras e verde, intensamente verde, nos seus campos aonde se pastoreiam vacas. Um Paraíso primitivo, pois. Mas onde um acontecimento trágico - a morte da esposa de D. Edmundo Bettencourt no parto da sua filha Adriana (Ana Moreira) - vai justificar uma ordem irrevogável: a proibição de qualquer fornicação entre os seus habitantes.
Para garantir o cumprimento dessa ordem existe um miúdo, Odorico, em perpétuo movimento, atirando pedras às janelas e às portas dos prevaricadores.
A ilha torna-se o espaço concentracionário de gente triste, ora resignada à sua servidão, ora tentada pela fuga para o outro lado do Atlântico. Sobretudo, quando se trata de rapazes na força da idade…
As consequências sentem-se, quando Adriana chega à idade casadoira: a população reduzira-se de forma tão drástica, que a única possibilidade de sobrevivência daquela cultura, será enviá-la para o continente, de forma a, aí, conceber um filho por métodos naturais e voltando à ilha com o esposo entretanto conquistado.
Mas a tarefa de Adriana revela-se impossível: logo à chegada a Lisboa, vê-se despojada de todos os haveres, incluindo o do nome, porquanto uma usurpadora far-se-á passar por ela na casa aristocrática para onde se deveria dirigir, acabando por casar com o respectivo herdeiro antecipando-se às expectativas do velho D. Edmundo.
Pelo contrário, os ambientes por onde, nas semanas seguintes, cirandará Adriana nada terão de aristocráticos.
Começa por lhe valer a velha Estela (Isabel Ruth), que a leva para sua casa, quando a encontra exausta ao fim de um dia de desesperada caminhada pelas ruas da capital. E, depois, Saturnino, o filho de Estela, que ganha a vida como travesti numa casa nocturna e alimenta uma admiração superlativa por Amália Rodrigues.
Através de Saturnino, Adriana irá conhecer David, um especialista em sexo tântrico, que nunca o demonstrará na sua hóspede, já que esta continua a aguardar pelos tais métodos naturais.
Quando, enfim, está convicta do fracasso da sua missão, resta a Adriana o regresso à sua ilha. Mas, aí, acontecera o inconcebível: uma mulher engravidara, pondo fim a uma maldição, que pareceria condenar toda a sua população.
Apesar da beleza da sua fotografia, há muitas incongruências no argumento em que a escritora Maria Velho da Costa participa.
Não viria daí mal ao mundo se a própria realização não parecesse errática, incapaz de assegurar um fluxo narrativo consistente.
Fica, então, a ideia de um projecto falhado pela distância a que o espectador logo se coloca pela dificuldade em compreender o sotaque açoriano e pela impossibilidade de garantir uma magia para a qual as paisagens e a própria história tenderiam a suscitar…

terça-feira, setembro 06, 2005

FRANÇOIS CHENG: A CHINA E NÓS

O «Nouvel Observateur» anda a entrevistar alguns mestres pensadores de algumas das principais culturas mundiais. Um deles foi o francês de origem chinesa François Cheng, que ocupa uma das cadeiras da célebre Academia.
A sua provecta idade faculta-lhe uma lucidez, uma capacidade de distanciamento, que se conota com a sabedoria mais profunda. Eivada dos fundamentos de um budismo, que se entrelaçou com a herança cartesiana ocidental. O resultado é o que fica aqui subjacente a partir de alguns dos principais extractos dessa entrevista:
Para um chinês, a paisagem não é apenas uma paisagem. É o sítio onde ocorre a vida verdadeira, onde o espírito do universo e o espírito do homem entram em simbiose.
Na pintura chinesa há, quase sempre, menos preto, que cinzento ou branco. Em compensação, os artistas europeus, desde a Renascença, parecem muitas vezes impacientes por ocuparem todo o espaço da tela. Para a filosofia chinesa o Vazio é o Sopro vital, que conduz todos os seres para a dança do Yin e do Yang, desde as Origens. O Vazio, ao simbolizar tudo o que se passa entre as entidades vivas, é tão real como essas entidades. (…)
Para os mestres como Chu Ta ou Shitao não se trata de representar ou imitar a natureza, mas de participar no grande movimento da criação. A partir da ideia do Sopro, o pensamento chinês avançou uma concepção unitária e orgânica do universo onde tudo se liga e apoia. Sendo o homem animado pelo mesmo Sopro, que move tudo o resto, os seus actos criativos estão necessariamente relacionados com os de todo o universo vivo. «Antes de pintar um bambu, deixa-o começar por crescer em ti!», aconselha Su Tung-po no século XI.
Alguns pintores ocidentais podem representar uma árvore começando pela sua folhagem; para eles a árvore começa por ser uma massa, fascinando a sua atenção pela sua plasticidade escultural. Para um chinês, é impensável: é-lhe natural começar pela base do tronco e pintar no sentido ascendente. O seu pincel liga o movimento de crescimento da árvore através do traço. (…) Matisse inspirou-se nessa forma de ver: «Como dizem os Chineses, quem quiser desenhar uma árvore deve saber crescer com ela. (…)
Todos os elementos da natureza podem aplicar-se à mulher. Assim como as metáforas utilizadas pela poesia chinesa, as colinas, os vales, as nuvens, as brumas, os rios, as pérolas e, sobretudo, os jades, todos os reinos da Natureza evocam-nos o feminino. A consciência da beleza é uma conquista do espírito, porque a verdadeira beleza não provém da aparência, mas do próprio ser em si. Do Ser, nunca do Ter. (…)
Num mundo dominado por convulsões e violências cegas, temos de comprovar a persistência da beleza. Apesar de tudo! É or ela que adquirimos o sentido do divino, do sagrado, ou seja o sentido de tudo! Olhem para a beleza da mulher: estão a ver a beleza da natureza... Ou o rosto humano, essa obra-prima. E todas as belezas provenientes da alma.
O universo não é obrigado a ser belo, e, no entanto, é-o...

sexta-feira, setembro 02, 2005

ERA UMA VEZ A GÁULIA

Para o historiador Christian Goudineau a Gáulia nunca existiu. Para ele este território nunca tinha conhecido a menor unidade política ou estatal. Era habitado por uma enorme diversidade de povos, 100 ou 150, que só tinham em comum uma origem distante e, decerto, um certo número de valores e crenças. Júlio César conquista uma vasta parcela deste território e, como o fazem amiúde os vencedores, decreta: eis a Gáulia, entre os Pirinéus e o Reno. Essa visão vai chegar até nós…
Portanto, Júlio César não só inventou a Gáulia como, de certa maneira, inventou a França.
A tese é credível e de uma pertinência, que não deixa margens para dúvidas. Tanto pior para a forma estereotipada como víamos a luta entre Asterix e Obelix contra os Romanos. Afinal, em vez de Gauleses, os heróis de Goscinny poderiam ser arvérnios, volcos, auscos, saluvianos, ambarros, leucos, carnutos, cenomanos, pictões, venetos, cubis, eduanos, etc, etc, etc

ROBERT GUÉDIGUIAN: «MON PÈRE EST INGÉNIEUR»

Duas ideologias destinadas a salvar os homens: o catolicismo e o comunismo! Ambos em crise perante uma realidade insofismável: os seus crentes têm mais os vícios do que as virtudes da sua condição humana e o resultado pode redundar numa terrível decepção.
Por isso, à frente dos massacres no Ruanda estiveram padres e freiras da Igreja Católica, que se esqueceram de pregar o amor entre os homens, incendiando os espíritos com palavras de ódio.
E os regimes do Leste Europeu acabaram por caricaturar uma ideologia, que deveria significar mais liberdade e justiça para todos.
É este o tema do filme, que Robert Guédiguian estreou em 2004, interpretado por dois dos seus mais constantes cúmplices ao longo da sua já respeitável filmografia: Ariane Ascaride e J.P. Darroussin.
Começa pela chegada de José e de Maria a Belém. Escorraçados da sua própria terra, vão procurar ali o abrigo para o nascimento da criança, que ainda cresce no ventre dela. Será graças à ajuda de outros pobres, tão desvalidos, quanto eles, que eles se prepararão para o momento decisivo das suas vidas…
Essa é a história, que a mãe de Natascha lhe lê, repetindo um ritual de infância. Mas, a pediatra quarentona está totalmente ausente de si mesma. Apática, incapaz de reconhecer os outros, de se alimentar ou de se movimentar.
Um estado de ausência que Jérémie, acabado de chegar, considera radicado numa experiência dolorosa, suficiente para ela ter desejado perder-se de si mesma.
Para ajudar aquela que fora o grande amor da sua adolescência, Jérémie abandona a sua bem sucedida carreira ao serviço do Ministério da Saúde, que lhe granjeava sucesso mediático, para se instalar ali, em Marselha, a dar os passos por ela percorridos em anos mais recentes.
Recordando-se de quando, trinta anos atrás, ambos frequentavam o curso de russo e ele era incapaz de dizer a frase «O meu pai é engenheiro». E quando o ideal comunista os animava…
Instalado no apartamento dela, Jérémie descobre-lhe a disponibilidade para acorrer às solicitações dos seus pacientes imigrados ou para lhes ajudar os filhos nos seus primeiros passos na língua francesa.
Quase por acaso, Jérémie vai-se substituindo à amiga nessa missão. Retomando os ideais de solidariedade com os mais desmunidos.
Pela vizinha de Natascha, que se tornará sua episódica amante, Jérémie identifica-se com os seus esforços em impedir a expulsão dos vizinhos. E compreende quanto ela foi feliz nessa militância assente em acções práticas e de resultados comprovados.
Ele, ao invés, sentira-se sempre infeliz ao comprovar quanto os homens são capazes de fazer muito pior do que seria possível imaginar…
Se a carreira, que o levara para longe, fora de aparente sucesso, Natascha terá parecido mais realizada naquela vivência quotidiana junto de gente pobre, em que tentava aliar a inteligência e o amor, como meio para alcançar um mundo melhor…
Mas irá ser revelador o drama de Rachid e de Mylène. Aos catorze anos amam-se e tudo fazem para se unirem de uma forma indissolúvel. A exemplo dos amantes de Verona, cujo desiderato irão imitar.
Porque, apesar de grávida, Mylène será barbaramente agredida pelo Pai, esse Vadino, que se esquece das ideias de esquerda para assumir um racismo inqualificável.
Porque, apesar das suas origens imigrantes, ele sente-se superior a uma qualquer família árabe…
Por querer ajudar os adolescentes, que lhe evocam a singeleza dos seus próprios amores com Jérémie, Natascha será sordidamente molestada por Vadino. O trauma, que lhe terá causado essa vontade de alheamento, que nem os electro-choques dissipam.
Depois de entregar ao agressor os corpos rendidos e vazios de Rachid e de Mylène, endossando-lhe a total responsabilidade pelos seus actos ignóbeis, Jérémie leva Natascha para casa, disposto a continuar a missão de a devolver à vida.
Pensando neles dois e esquecendo a militância cuja improbabilidade de sucesso, acabou de ser acentuada nesse mergulho no real...

quinta-feira, setembro 01, 2005

SYLVAIN TESSON E O TEMPO REENCONTRADO


Viajante impenitente e autor de livros sobre as correspondentes experiências, Sylvain Tesson descreve o seu maior prazer numa entrevista:
Percorrer as estepes assemelha-se à lenta navegação das horas e dos dias. Gosto de descobrir a desolação e o verde rasteiro das estepes sob um céu de aço, montado num cavalo, rodeado de nómadas. Como os russos, que dizem nunca chegar ao seu destino, porque o ultrapassam. Marchar, cavalgar reduz o curso do tempo.
Como nunca tive experiência semelhante, não posso dizer que seja essa uma das vivências mais estimulantes do meu passado. Mas evoco, com alguma nostalgia esses longos dias no mar alto, quando viajava pelos oceanos e deparava à minha volta com os mais variados matizes de azul. Quer no céu, quer no mar...