sábado, abril 12, 2008

«BUG», UM FILME DE WILLIAM FRIEDKIN

O cinema norte-americano anda a espelhar de maneira mais ou menos óbvia os problemas de uma sociedade à qual os traumas do 11 de Setembro e do insucesso bélico no Iraque anda a lesar na sua arrogante auto-estima, tanto mais que as notícias da sua saúde financeira só perspectivam uma decadência para a qual nunca se preparara.
Se os filmes dos irmãos Coen ou de Paul Thomas Anderson este ano consagrados nos Óscares, são ilustres representantes desta tendência, outros menos mediáticos não deixam de a reiterar.
«Bug», o filme de William Friedkin, rodado em 2006, não vale apenas pela notabilíssima interpretação dessa superlativa actriz, que é Ashley Judd, bem acolitada ademais pelo desempenho de Michael Shannon, mas também pelos eixos temáticos nele entrecruzados.
Numa descrição sumaríssima podemos resumir o filme ao encontro entre dois solitários num quarto de hotel, aonde se passa quase toda a trama.
Agnes vive o pesadelo de ter perdido o seu filho de seis anos, quando com ele fugia de um marido particularmente violento. Quanto a Peter cola-se-lhe à pele um síndroma de paranóia e esquizofrenia colhido nas suas comissões de serviço no Iraque, e que ele julga proveniente de experiências científicas com fins militares e aplicadas em cobaias humanas.
E é em torno dos desvarios destes personagens, que outras questões pertinentes se colocam: o que é a verdade e o que é a mentira? Até que ponto estamos dispostos a enganar-nos a nós próprios ao tornarmo-nos permeáveis a manipulações emotivas?
A incineração final corresponde a uma espécie de ritual de purificação. Mas para construir o quê sobre um cenário de terra queimada?
É uma resposta, que Friedkin não arrisca. E, por isso mesmo, o filme não abandona uma certa forma de ambiguidade, que quase se tornou na imagem de marca do realizador ao longo de toda a sua carreira.

O EGOÍSMO DOS HOMENS E AS IDEOLOGIAS

De vez em quando surgem notícias decepcionantes para quem faz da assumpção dos ideais de esquerda uma teimosia identitária, ainda que alicerçada em fundamentos racionais: a passagem de outros supostos cúmplices das mesmas ideias para o lado oposto.
Embora a notícia surja em segunda mão terá acontecido agora com o dramaturgo David Mamet.
Durante anos ele tem sido um dos nomes mais sonantes da esquerda norte-americana, concebendo filmes e peças de teatro, aonde se denunciam os aspectos mais sórdidos do capitalismo selvagem aí predominante.
Ora ele terá feito profissão de fé nesse mesmo capitalismo selvagem ao considerá-lo o sistema mais de acordo com o egoísmo indissociável de cada ser humano. E já que não se pode combatê-lo, há que render-se a ele. Terá sido isso o que David Mamet terá concluído, arranjando como álibi o facto de o capitalismo produzir mais riqueza por se basear na avidez de lucro de gente empreendedora, obrigada para tal a criar empregos e a gerar negócios a montante e a jusante do que faz.
A actual crise financeira deveria levar Mamet a rever a bondade do seu erróneo diagnóstico!

quarta-feira, abril 02, 2008

UMA PROMESSA POR REVELAR

Há dezasseis anos, ainda os escombros do Muro de Berlim estavam frescos na memória, o filósofo George Steiner dizia ao «Le Monde»:
«Não estamos senão no início do pós-marxismo. O desabar dessa esperança, que se transformou em horror deixa resíduos que ainda vão arder durante muito tempo. Também o cristianismo morre lentamente difundindo todas as espécies de venenos em decomposição. O cristianismo e o marxismo são as duas grandes heresias messiânicas do judaísmo. Este sobreviverá. Mas não penso que nasça, enquanto eu for vivo, um novo sonho colectivo coerente.»
O filósofo, embora de provecta idade, ainda está vivo e o seu juízo cumpriu-se: o sonho colectivo mais coerente dos dias de hoje parece ser o do islamismo radical, que mobiliza milhões de crentes, mas assusta os que se identificam com os valores ocidentais.
Há, ainda assim, a ponderar o que será das nossas democracias burguesas, quando o petróleo se tornar cada vez mais caro em consequência do seu progressivo esgotamento e com as respostas cada vez menos satisfatórias do capitalismo selvagem para garantir alguma equidade na distribuição da riqueza.
Tendo em conta que o projecto marxista nunca se cumpriu, constituindo as experiências do século XX sucedâneos não muito felizes da tentativa de passar da sua teoria à prática, o desafio continua a ser o de encontrar uma via mais eficaz de o concretizar.
Enquanto socialista nunca poderei dizer que marxismo nunca mais. Porque, em boa verdade, ele ainda está por se revelar em todo o seu esperançoso potencial…

AS REALIDADES DO MARKETING POLÍTICO

Num jornal económico leio um comentário do Ricardo Costa, que merece ser ponderado: »No virar do ano a oposição começou a comportar-se em alegre clima de pré-campanha e o Governo respondeu na mesma moeda com uma remodelação e meia dúzia de medidas avulsas. Até aqui tudo bem. O problema é que a festa continuou e não parece que vá parar.»
Trata-se de um tema recorrente: a capacidade demonstrada pelo Governo para fazer passar a sua mensagem junto da opinião pública. Como se fosse um pecado essa preocupação com um marketing político, que é, nesta época, um imperativo de qualquer força política.
Há quem o faça pelo uso e abuso da demagogia e a direita é especialista nessa exploração maniqueísta dos argumentos mais primários como se todos os eleitores fossem atrasados mentais ou crédulos apaniguados. E há a inteligência de um Governo, que dá importância aos seus actos políticos, eventualmente empolando os seus efeitos benéficos para a maioria dos cidadãos.
Em tempos idos, quando não estávamos assim tão assolados de imagens e de sons, poderíamos compreender o comedimento dos actores políticos. Mas, nos dias de hoje, o marketing político é tão essencial como o de qualquer empresa apostada em vingar num mercado cada vez mais competitivo.
Associar isto a propósitos condenáveis só demonstra uma de duas coisas: ou falta de honestidade intelectual ou miopia perante as realidades dos dias de hoje…

terça-feira, abril 01, 2008

GINÁSIO ÓPERA INAUGURA COM «OTHELLO» A NOVA TEMPORADA

No dia 29 de Março inaugurou-se a 5ª temporada de Ópera-Video promovida por uma das mais bem organizadas instituições melómanas do nosso país: o Ginásio-Ópera. De facto, cada vez mais ambiciosos nos seus objectivos, os responsáveis de tal estrutura acabam de assinar um protocolo ppor três anos com a Ordem dos Médicos para se responsabilizarem pela dinamização cultural dos seus espaços. O que garante uma auspiciosa convergência entre a arte do bel canto e a da gastronomia aí assumida pelo Chefe Luís Suspiro.
Para conferir um simbolismo ainda mais consequente a esta inauguração teria valido a pena convocar a obra de Rossini para a abrilhantar, tendo em conta quão inspirado foi esse compositor nas artes culinárias. Mas a opção por «Otelo» na versão composta por Giuseppe Verdi e Arrigo Boito não deixou de sugestionar muito positivamente os espectadores presentes.
Na Conferência de apresentação desta obra, o presidente do Ginásio Ópera, João Maria de Freitas Branco, referiu haver um antes e um depois de William Shakespeare. Porque ele terá concentrado na sua obra uma grande parte dos temas universais e intemporais, que nos continuam a influenciar-nos nos dias de hoje. Em Iago, por exemplo, está bem representada a demagogia tão frequente nos políticos de hoje, quando convencem as pessoas a reagirem contra corrente aos seus interesses próprios. E é isso que sucede com o mouro Otelo, que, apesar de chefe militar carismático, se deixa enlear nas pérfidas insinuações do seu cortesão ao ponto de acreditar no adultério da inocente Desdémona.
Outra das curiosidades da sessão foi o desempenho do papel de chefe militar por outro, Frederico Almendra, que costuma liderar militares portugueses em missões de alto risco na Bósnia, no Iraque e no Afeganistão.
Na sua estreia oficial em público, o tenor terá justificado o assumido arrojo do orador para interpretar as exigentíssimas árias desta ópera, porquanto requerem um tenor com suficiente flexibilidade vocal para corresponder num registo mais baritonal como o almejado pelo compositor.
A outra grande descoberta da sessão foi a soprano brasileira Taiana Froes que, recentemente instalada entre nós, promete vir a enriquecer a diversidade de opções femininas para espectáculos operáticos que, entre nós, se organizem…
Passado o repasto, que teve de positivo a originalidade das propostas do conceituado chefe, mas de ambíguo o seu dilatado ego, seguiu-se a projecção da versão filmada da obra de Verdi, tal qual foi dirigida por Georg Solti no Convent Garden em 1992.
Plácido Domingo e Kiri Te Kanawa estavam nos momentos mais vibrantes das respectivas carreiras e credibilizam o carácter excepcional de um espectáculo, que ainda contava com Serguei Leifenkus para esse Iago, por quem as certezas se perdem e as dúvidas se transformam em intenções assassinas.