quarta-feira, julho 31, 2019

(S) Martha Argerich a interpretar a Polonaise de Chopin

(DL) Variações sobre uma Revolução, que nos foi sonegada


A expressão italiana se non è vero, è ben trovato ajusta-se que nem uma luva a «Que fazer contigo, pá?», romance publicado por Carlos Vale Ferraz em abril transato. Se Lídia Jorge já ficcionara o pós-Revolução de Abril em «Os Memoráveis», eis uma nova e estimulante abordagem do mesmo tema com uma história bem estruturada e com algo de romance policial. Porque se, à exceção de um deles. não são os capitães de abril os personagens deste romance focalizado em que se tornaram depois de saírem de cena dos acontecimentos de então, dá-se aqui  expressão ao porvir dos que quiseram alcançar a Utopia e se desencantaram com a repressão «democrática» a que foram sujeitos.
À partida temos Ruben, ex-militar envolvido na mudança de regime em 1974 e a liderar posteriormente um movimento revolucionário disposto a levar a transformação social a patamar mais ambicioso. Não é preciso especularmos muito quem possa identificar-se com tal personagem. Com uma diferença de tomo: em vez de acompanhar os amigos no cárcere logo após os eventos de 25 de novembro de 1975 ou nos anos seguintes, quando intentaram alguns atos tidos como «terroristas» pelo poder burguês re-normalizado, Ruben exila-se em França valendo-se do inesperado apoio de uma rede clandestina de extrema-direita.
Nessa altura já estamos cientes da hipótese levantada pelo autor e que tem toda a pertinência: até que ponto, mesmo involuntariamente, os esquerdistas não fizeram o jogo político dos que consideravam inimigos, sendo por eles manipulados nas estratégias a que se propunham.
Porque o interesse da leitura do livro está nas surpresas, que nos vai prodigalizando sucessivamente, resta dizer que há um cadáver mumificado encontrado em Chelas, uma mitologia em torno do Prior do Crato, um psicopata conhecido em Paris com quem se tece uma troca de identidades, uma vingança perpetrada num casamento definitivamente comprometido com a morte do noivo e de alguns dos seus convidados e a possibilidade de, na sombra, continuarem a agir forças conspirativas difíceis de evitar.
A política portuguesa dos últimos quarenta e cinco anos volta a ser reequacionada  sugerindo-se-lhe pistas, que a História, tal qual nos costuma ser contada, não valida, mas pode ser perfeitamente fazer todo o sentido. É que podemos conjeturar até que ponto fomos afastados do desempenho de protagonistas de uma evolução para que nos cingimos ao papel de figurantes ou, até mesmo, de distraídos espectadores.

(S) "Habanera" d'Emmanuel Chabrier

(DIM) A Casablanca de Michael Curtiz


Parafraseando livremente o escritor japonês Yukio Mishima, houve um tempo em que fui marinheiro nas graças do mar. Nesse distante passado eram frequentes as estadias em Casablanca nas viagens entre os portos do norte da Europa e a costa ocidental de África. Umas vezes só à ida, outras só à vinda, frequentemente nos dois sentidos. Tanto bastou para acompanhar a expansão da cidade nas últimas décadas do século passado.
Sobretudo nas primeiras abordagens - quando tudo era novo para os meus olhos de turista acidental! - não era difícil encontrar quem afiançasse ter sido ali rodado o famoso filme de Michael Curtiz, teimando que numa ou noutra esquina teria dado de caras com Humphrey Bogart ou Ingrid Bergman.
Sabe-se bem quanto gosta de acrescentar um ponto a quem um conto se dispõe a contar de modo que, às tantas, quase apostaríamos em como haviam passado a acreditar piamente no que começara por ser uma mera invenção. 
Obviamente que «Casablanca» foi rodado nos estúdios de Hollywood, porque seria inviável pensá-lo fazer numa geografia onde a guerra ainda tardava em definir-se no seu curso. Tratando-se de filme de propaganda o argumento até foi sendo criado à medida, que iam chegando notícias da evolução dos acontecimentos na Europa e no Norte de África. E, porque os produtores exigiam credibilidade ao que presumiam vir a constituir-se como uma excelente ferramenta de motivação dos norte-americanos para a guerra - Roosevelt só conseguira convencê-los a participar depois do ataque a Pearl Harbour -, os aderecistas cuidaram de conceber cenários muito parecidos com os reais.
Uma das leituras raramente formuladas a respeito do filme é a da consonância do personagem Rick com o dos norte-americanos: ambos manifestam-se determinados a manter a neutralidade entre os dois lados do conflito, mas acedem à causa aliada à medida que as emoções os empurram para o lado certo.
Se adotarmos essa grelha interpretativa o capitão Renault repete tal correspondência entre o individuo e o coletivo com que se identifica, mostrando-se suficientemente maleável para se dar bem com Deus e o Diabo à medida que a relação de forças se vai alterando. A História ensina-nos que, pese embora o heroísmo da sua Resistência, a maioria da população francesa pactuou, sem grandes estados de alma, com os ocupantes nazis.
Resta Ilse e Victor Laszlo? A mantermos a mesma lógica, podemos reconhecer nela um continente dividido entre difíceis contradições e nele um  quadro de valores éticos, que as circunstâncias demonstraram ser demasiado frágeis para sobreviverem no pós-guerra. A exemplo do que ocorrera no final da Primeira Guerra, quando quatro impérios receberam a certidão de óbito, a paz conseguida após a queda de Berlim transfiguraria a Europa de tal forma que, quase em nada, se assemelharia à que se iludira com os ritmos trepidantes da Belle Époque e se angustiara com os dramáticos efeitos da Grande Depressão deste lado do Atlântico.
Nunca saberemos se o húngaro Michael Curtiz pressentiu tal transformação, quando a representou no filme que Mário Soares considerava como o da sua vida.

terça-feira, julho 30, 2019

(DL) A falta que faz Camilleri a uma Itália salvineada


A morte de Andrea Camilleri, ocorrida no passado do 17, pouca referência mereceu na imprensa apesar de, recentemente, a RTP ter andado a emitir os diversos episódios da série dedicada ao seu mais conhecido personagem, o comissário Montalbano.
A exemplo de Georges Simenon, em cuja tradição se filia, Camilleri não pode ser restringido à exclusiva inserção no género policial, porque os seus romances apenas se serviam dos códigos desse tipo de literatura para se focalizarem no essencial: existe uma população quase sempre ignorada pelas artes e cujos valores e preocupações merecem ser abordados. Por isso não surpreende que, nalguns dos casos investigados por Montalbano os criminosos não sejam penalizados, porque revelam-se compreensíveis os motivos por que chegaram ao extremo de matarem ou prejudicarem seriamente a reputação de um biltre. A luta de classes, com as suas desigualdades, estão implicitamente abordadas em quase toda a sua obra.
Em Camilleri a realidade siciliana distancia-se bastante - pelo menos no essencial! - com as máfias, por muito que Montalbano não enjeite, aqui e acolá, informar-se junto dos padrinhos locais por quem não sente a mínima simpatia. Pior é a mesquinhez dos políticos democrata cristãos, entre os quais se incluem os chefes a quem o comissário tem de reportar, sempre preocupados com as pressões recebidas dos seus próprios superiores hierárquicos sedeados em Roma.
Na salvineada Itália as denúncias de Camilleri fazem falta, porque só podemos imaginar o que ele denunciaria a respeita desta deriva fascizante a que o seu país está a ser sujeito.

(EdH) Uma cidade no cruzamento das rotas comerciais do séc. I a.C.


Na área geográfica abarcada pela atual Jordânia, sul da Síria, noroeste da Arábia Saudita, partes de Israel e Egito, floresceu o reino dos Nabateus entre o séc. I a.C. e o séc. I. d.C. Os desertos eram inóspitos, mas Petra, a sua capital, situava-se na encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente e foi um dos principais pontos de paragem das caravanas de mercadores.
O acesso a essa mítica cidade era feito por estreito desfiladeiro, que ia dar a um pequeno vale encaixado entre as montanhas, colinas e montes de arenito, e estava ocultado de possíveis inimigos. Nenhuma cidade do mundo possuiu uma entrada como Petra, dispensando-se de muralhas defensivas, porque bastavam as prodigalizadas pela natureza.
Se a conhecemos por esse nome, os nabateus chamavam Rqm à sua cidade, porque significaria «jogos de cor» e aludiria ao rico cromatismo assumido pelo arenito, trabalhado anos a fio pela erosão das águas e dos ventos. As cores vermelha, rosa e amarela conheceram ali matizes tão variados, que difícil seria imaginar-lhes panóplia mais alargada.
Ao franquearem a entrada da cidade, os visitantes deparavam-se com templos, casas, lojas e mercados, que os sugestionavam com a diversidade dos produtos ali comercializados.
Estrabão, que a conheceu por essa altura, descreveu Petra como cidade cosmopolita, aberta aos estrangeiros, cujos credos e costumes eram respeitados. Admirou os monumentos e a frescura dos jardins bem irrigados, que constituíam verdadeiro oásis perante a aridez da região circundante. O vale comportava um engenhoso sistema de rega, que possibilitava colheitas fartas em cereais, legumes e frutas.
Muito embora esse período de esplendor correspondesse aquele em que a tutela de Roma já se sentia - Trajano acabou-lhe com as veleidades autónomas e decretou a anexação do reino em 106 d.C., integrando-o na província romana da Arábia. Para o reino dos nabateus essa decisão imperial equivaleu ao início de acelerado declínio.
O templo de al-Khazneh, com altura equivalente a um prédio de doze andares, é o mais famoso monumento de quantos ali se conhecem. A tradução do nome - tesouro do faraó - associa-o a uma lenda segundo a qual fora construído por um soberano dotado de poderes mágicos e decidido a ali esconder a sua prodigiosa fortuna. Apreciando-o com atenção, o monumento parece, de facto, ter uma origem encantada, porque, além de esculpido na rocha, os construtores adotaram uma lógica inversa à mais comum, dando-lhe forma de cima para baixo. Apesar do sincretismo da sua cultura, as influências greco-romanas são indisfarçáveis, bem como o objetivo funerário, que estava nas intenções do seu comanditário, cuja identidade se desconhece. E os especialistas no estudo desta civilização ainda se questionam como foi possível suportar o ambiente pesado, escuro, repleto de pó e apenas iluminado pelas lamparinas de azeite de quem edificou o interior do templo. Calcula-se que houve a necessidade de remover 6 mil m3 de pedras e outros materiais e calcular com rigor a dimensão das diversas câmaras para que se evitasse o risco de desmoronamento.
A exemplo de muitos outros edifícios revelados pelas prospeções arqueológicas das últimas décadas, as interrogações sobre quem ali viveu há dois milénios são muito maiores do que as certezas entretanto confirmadas.

segunda-feira, julho 29, 2019

(DIM) «Francofonia» de Alexander Sokurov (2015)


Um crítico, que costumo ler com prazer e quase incondicional concordância - Luís Miguel Oliveira - é parco em elogios a este filme realizado por Alexander Sokurov tendo o Louvre como eixo temático. Embora lhe tenha preferido «A Arca Russa», filmado no Hermitage num único plano-sequência - considero injusta a referida depreciação de «Francofonia» por serem muitas as pontas por onde lhe possamos pegar, todas elas suscitando reflexões e leituras estimulantes. Por exemplo: que pessoas seríamos se não tivéssemos disponíveis os museus para nos estimularem os juízos do Belo ou as relações das obras artísticas com o tempo da sua criação? Como teria evoluído a arte europeia se não houvesse passado pela época em que, primeiro os monarcas e aristocratas se faziam retratar, e depois se lhes seguiriam os burgueses, os camponeses, e até, em fase mais tardia, os proletários? Quem seríamos se não nos cruzássemos, através de centenas de quadros, com o olhar dos que nos antecederam? E, aproveitando as deambulações de Marianne e do fantasma de Napoleão Bonaparte pelo museu, como considerar a dicotomia entre a arte defensora da tríade revolucionária da Fraternidade, Igualdade e Liberdade e a que contribuiu para o culto da imagem dos que se consideravam poderosos?
Uma leitura mais óbvia aborda o período da Ocupação nazi, quando o diretor do museu, Jacques Jaujard tudo fez para pôr as obras no recato de vários esconderijos, contando com a passividade, senão mesmo com a complacência do conde Metternich, que era o seu interlocutor por conta dos invasores nazis.
Mas há, igualmente, o contraponto de um outro personagem, um capitão de navio a contas com violenta tempestade, que pode deitar a perder os contentores onde se armazenam obras de arte e se justifica a pergunta: numa situação limite o que importa preservar, a vida humana ou esse espólio insubstituível?

domingo, julho 28, 2019

(EdH) Um julgamento que, infelizmente, ficou por fazer


Aproveitando a passagem de mais um aniversário sobre a morte do ditador, Carlos Matos Gomes recordou-nos os dez alertas por ele recebidos sobre a iminente ação da UPA no norte de Angola em 1961. Documentos históricos comprovam que Salazar sabia o que estaria à beira de acontecer - a terrível morte de centenas de colonos junto à fronteira com o Congo - não mexendo um dedo para o evitar. Interessava-lhe explorar as imagens cruas da chacina para exigir um apoio que a população crescentemente lhe negava.
A Guerra Colonial foi a oportunidade para prolongar o estertor do regime até aos limites do possível, poupando-o ao merecido julgamento que os seus atos justificavam. Apenas interessado em si  e na sua pervertida leitura da realidade, não enjeitou preservá-la à custa da morte de milhares de portugueses durante os treze anos, que faltariam para que a Revolução de Abril pusesse cobro à criminosa bravata de partir para Angola e em força!
Infelizmente, e tal qual Franco, Salazar escapou do destino dado pelos italianos a Mussolini, quando o julgaram sumariamente por quanto lhes havia feito sofrer.
Que haja quem «comemore» o passamento do biltre com missas e discursos diz tudo sobre a personalidade dos seus promotores...

(EdH) Os exemplos do passado


Pode ser discutível a tese de ter sido na Holanda do final do século XVI, que o capitalismo ganhou alavancagem para vir a constituir-se como o mais eficiente sistema económico de exploração do homem pelo homem. Mas, quando, em 1596, os principais comerciantes de Amesterdão financiaram a expedição comandada por Cornelis Houtman às Índias Orientais tinham por propósito o estabelecimento de um mercado mais concorrencial de distribuição de especiarias, que potenciaria não só uma prodigiosa acumulação de capital - dando força à burguesia enquanto classe capaz de vir a contrariar a primazia aristocrática - mas, sobretudo, facilitando os fluxos monetários, que transformariam os bancos e as seguradoras dos navios nas traves mestras do ascendente sistema económico.
Não deixa de ser curioso que esse intento só foi possível, porque os portugueses haviam-se deixado conduzir para a hecatombe por um estarola armado em comandante das forças cristãs contra os infiéis. Perdida a independência, também fraquejara o quase monopólio da rota marítima para o Oriente. E gabe-se, ao mesmo tempo, a determinação dos holandeses que viram a primeira expedição apresentar pífios resultados, mas logo multiplicaram o investimento cientes do retorno potencial que estava em causa.
A beatice estúpida do seu efémero líder condenou os portugueses à irrelevância nos séculos, que se seguiram, por muito que, num breve período, se tenham iludido com o tráfico negreiro e o ouro do Brasil.  Ao contrário do que pretendem os prosélitos de uma ideia grandiosa da história lusa, ela só é rica em gente medíocre e mesquinha, que atanaza a visão grandiosa dos que, geração após geração, aspiram rumos diferentes. No fundo o presente replica-se nesses exemplos passados: bem tentam as nossas esquerdas criar um porvir admirável, que têm sempre os desprezíveis reacionários a tolher-lhes o caminho!

sábado, julho 27, 2019

(DIM) A geopolítica do ovo


Um documentário deste ano, assinado por Jens Niehuss e Simone Bogner e intitulado «Pobres frangos»,  é particularmente elucidativo para clarificar as (péssimas) condições em que vivem as galinhas poedeiras, que nos fornecem aqueles ovos publicitados pelos hipermercados como provenientes de animais criados no solo.  Inocente na matéria julgaria, que tais ovos seriam produzidos em aviários ao ar livre, onde os galináceos pudessem usufruir de condições minimamente aproximadas com as conhecidas na infância, quando acompanhava a minha avó materna a cuidar da sua criação. Afinal o documentário informa-nos que esses «ovos de aves criadas no solo» vêm de enormes hangares, onde elas vivem noventa semanas sem conhecerem o exterior e vegetam entre o solo, sujo com os seus próprios excrementos, e os patamares superiores onde se alimentam e poem os ovos. O odor a amoníaco é insuportável, as doenças mais que muitas, que levam os empresários a enchê-las de antibióticos.
Não bastaria a crueldade inerente a essa exploração agroalimentar, que trata os animais como meros instrumentos de produção, para se exigirem mudanças muito para além das disposições europeias, que impõem para a próxima década o fim das explorações aviárias em gaiolas, ainda mais execráveis quanto à crueldade padecida pelos galináceos. Mas os poderosos lobbies sedeados em Bruxelas tudo fazem para que o respeito pelos direitos mínimos dos animais que nos alimentam seja secundarizado em relação aos critérios da redução otimizada de custos de produção e à potenciação dos lucros pela via das economias de escala.
Os problemas com a industrialização da fileira aviária não se fica apenas por aí, porque comporta outros dois efeitos não menos relevantes. Um deles tem a ver com o afluxo de milhares de africanos subsarianos, que buscam a Europa como alternativa para o desemprego e faltas de expetativas de futuro nos respetivos países. O documentário mostra como, até 1990, o Gana empregava centenas de milhares de pessoas nos seus aviários, suficientes para suprirem as necessidades internas e possibilitarem as exportações para os países vizinhos. Por essa altura ocorreu uma mudança trágica, que provocou a falência das empresas do setor: a doença das vacas loucas exigiu a imposição de uma regulamentação europeia pela qual se proibiam as farinhas de origem animal na alimentação das criações de gado europeu. Resultado: os milhares de galinhas poedeiras que, ao fim das noventa semanas de exploração tornavam-se menos produtivas, deixaram de ser utilizadas na produção dessas farinhas e passaram a ser exportadas para os países subsarianos a um preço impossível de ser conseguido pelos produtores locais. A globalização encarregou-se de destruir milhões de empregos por todo o continente africano justificando a subsequente migração de desesperados. É por isso que repugnam-me os defensores da criação de muros europeus, que impeçam a vinda desses povos empobrecidos pela ganância do capitalismo ocidental. Melhor seria, que se informassem sobre as razões porque o embaratecimento da alimentação dos europeus implicou miséria ainda maior para os infelizes nascidos a sul do seu continente.
Não é, porém, e apenas nessa vertente, que os desequilíbrios geopolíticos se acentuam e suscitam efeitos em cadeia. Na vertente ambiental acrescente-se a procura crescente, e quase exponencial, de soja para integrar os alimentos ricos em proteínas suscetíveis de acelerarem o crescimento dos animais, que comemos, e fazendo com que grandes extensões de florestas da América do Sul, nomeadamente na Amazónia brasileira e na Argentina, sejam derrubadas para estabelecerem-se imensos latifúndios a ela dedicados.
O documentário de origem alemã mostra como a indústria agroalimentar europeia anda a alavancar graves problemas, que poderemos pagar cada vez mais caro. Para além do bem estar animal ou da qualidade e sabor equívocos dos produtos expostos nos nossos hipermercados, criam-se as condições para inesgotáveis migrações humanas - e as perversas consequências de darem rastilho à explosão das extremas-direitas xenófobas! - e para crimes ambientais.
Poderíamos pensar que a solução alternativa passaria pelo consumo crescente dos produtos bio, mas não é certo que eles correspondam ao quanto anunciam nas  etiquetas. Não é por acaso, que um dos esforços mais tenazes dos lobbies da indústria agroalimentar junto da Comissão Europeia é o de impedirem a aprovação de um novo regulamento sobre a etiquetagem dos produtos comercializados, que possibilite uma informação mais sucinta, mas também incomparavelmente esclarecedora sobre o que os consumidores andam, efetivamente, a comprar quando enchem o carrinho de compras nos hipermercados.

sexta-feira, julho 26, 2019

(DIM) Eu godardiano me confesso


Sou um convicto apreciador da obra de Jean Luc Godard, que me proporcionou jubilatórias fruições cinéfilas com quase todos os seus filmes, mormente «O Desprezo» e «Alphaville» sempre reencontrados com deleite tão-só se me deparem à frente dos olhos.
Confesso que não alimentava grandes expetativas relativamente ao filme realizado por Michel Hazanavicius ao adaptar o livro autobiográfico de Anne Wiazemsky sobre o par de anos de casamento com o principal vulto da Nouvelle Vague.
Hazanavicius fora hábil no Oscarizado «O Artista», mas produz um cinema nos antípodas das preocupações ideológicas e estéticas do seu protagonista. E Wiazemsky, depois do intervalo Godard, voltou a ser a burguesa orgulhosa da condição de neta do gaulista Mauriac, nunca mais se lhe conhecendo tomadas de posição quanto aos grandes debates políticos e sociais dos anos subsequentes. «Un An Après», quando lançado, foi apresentado como uma espécie de ajuste de contas com o ex-marido de quem depressa se enfadara.
Restava Louis Garrel no papel de Godard e convenhamos que ele confirmou o quanto dele vamos conhecendo, há uns anos a esta parte, competente nos desempenhos e criterioso no que escolhe representar. Quase irreconhecível enquanto Godard, não se imagina quem melhor poderia substitui-lo no desafio.
Visto o filme, ele está longe de merecer a tareia, que mereceu de Luís Miguel Oliveira no «Ipsilon»: “Godard? É apenas a caução de Michel Hazanavicius para filmar rabos de raparigas com caução.”
Pode-se reconhecer que Hazanavicius deu importância exagerada ao carácter alienígena de Godard, inseguro quanto à sua pessoa e invariavelmente desagradável com quem o interpelasse para lhe manifestar apreço pela sua obra. A empatia com Anne é inevitável, levando-nos a ter pena dos tratos de polé a que se sujeita no quotidiano conjugal. Mas não era esse o leitmotiv  do livro por mais que os argumentistas procurassem desviar-se dos seus propósitos?
«Godard, o Temível» ilustra bem o ambiente do Maio de 1968 e as contradições de toda uma geração desejosa de mudar o mundo, transformando-o numa aprazível praia depois de retiradas as pedras das calçadas e ferozmente confrontada com a violência do aparelho policial gaulista.
Havia muita ingenuidade e muita confusão ideológica, mas quem foi militante nesses tempos nunca mais os esqueceu por terem sido os mais exaltantes de quantos experienciou. E Godard continuaria a tudo questionar, desde a forma de fazer cinema, quer como ele traduz a sociedade em que nos vamos entediando.