quarta-feira, novembro 14, 2007

Voltaire: «A História de um Bom Brâmane»

Escrita em 1761, esta pequena «bagatela» de Voltaire põe uma questão pertinente: se o conhecimento gera a infelicidade de se conseguir compreender o quão pouco se sabe, não valerá mais a ignorância, que facilita a ingénua felicidade de quem não tem de se preocupar com os grandes temas da Humanidade?
A parábola de Voltaire tem um brâmane como protagonista, um homem sábio mas desgostado por, ao fim de quarenta anos de estudo, saber que tudo ignora: «Não só o principio do meu pensamento me é desconhecido, como o princípio dos meus movimentos me é também oculto; não sei porque existo».
Que sentido faz então o enciclopedismo, essa ânsia de tudo saber e tudo compreender? Os imbecis, mesmo inconscientes de quanto o são, mostram-se bem mais serenos do que os homens cultos, que acumulam saberes, mas nunca conseguem encontrar razões, nem explicações para as grandes questões colocadas pelo mero facto de existir.
O problema está em se abrir a porta do conhecimento. Ao saber-se quanto está do outro lado dela, a curiosidade nunca se mostrará satisfeita: cada resposta engendra milhentas perguntas não respondidas, que justificam a avidez em passar da soleira e penetrar o mais possível
Há quem diga que é um esforço inglório: ganha expressão uma corrente filosófica, que considera improvável conseguir-se ir mais longe no conhecimento do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, pelo que não se deverão aguardar grandes transformações sociais e tecnológicas num futuro próximo.
Arriscaria a classificação de imbecis ignorantes a quem tal defende: se olharmos para a evolução ocorrida entre a época de Voltaire e a nossa, ela é tão imensa, que s ideia de se conhecer uma inflexão na aceleração do conhecimento humano me parece muito improvável…
Até porque muito do que se sabe ainda se situa ao nível das hipóteses teóricas, que se espera ver concretizado em demonstrações práticas, que as confirmem ou abram campo para outras alternativas. E, tendo em conta, que muito do conhecimento, que temos actualmente de tudo quanto nos rodeia ainda passa pelos filtros dos preconceitos, das rotinas, mormente os alimentados por absurdas crenças religiosas, conclui-se a verosimilhança de quem prevê sempre novas e revolucionárias descobertas.
A infelicidade está prometida aos ignorantes, cujo cabimento nesta sociedade do conhecimento se torna cada vez mais complicado...

Dois Escritores em Lados Opostos da História


Em 1960, quando os mais complacentes estavam dispostos a jurar pela sua genialidade, apesar das infâmias, que havia escrito sobre os judeus na época do seu inequívoco alinhamento com o nazismo, Céline publicou «Norte».
Não é livro, em que alguma vez arrisque a leitura - há coisas, que me dão vómitos e ler um nazi, mesmo que elogiado por um Baptista Bastos, não é petisco convidativo - mas não vem mal ao mundo por saber o que nele se versa.
Um articulista do «Nouvel Observateur» conta que se trata de um romance alucinado e autobiográfico sobre a queda do III Reich no Verão de 1944.
O Norte do título é a da direcção da fuga para escapar à morte certa, que já está a ser preparada para outros notórios nazis (Brasillach, por exemplo). No caso de Céline é a Dinamarca para onde pretende ir viver com a esposa, Lili, e com o gato Bébert, levando ainda como pendura um actor (Le Vigan).
É uma viagem em três etapas desde Baden Baden até ao decadente Brenner’s Park Hotel, aonde se bebe champanhe e come caviar no meio dos bombardeamentos aliados, passando pela esventrada Berlim, antes da chegada à fronteira prometida com a sensação de se enfrentar uma espécie de apocalipse para o qual só se pode assumir o medo, quando não mesmo a loucura.
Pode-se imaginar no texto o que os assassinos e os seus cúmplices terão sentido, quando o Exército Vermelho de um lado e os contingentes britânicos e norte-americanos do outro apertavam o efémero Império dos Mil Anos por todos os lados. E de como os poderosos de ontem se tornam medrosos trânsfugas.
Outro escritor, Patrick Cauvin, publicou há alguns meses o seu romance «Venge-moi!» passado na mesma época, mas na trincheira contrária: um miúdo fica sozinho na grande cidade, porque os pais foram deportados para um campo de concentração. Se o progenitor já nunca mais aparecerá, a mãe ainda regressa para lhe manifestar as suas suspeitas quanto à identidade de quem os terá denunciado. É a pedir-lhe vingança, que ela se despede ao deixá-lo órfão…
O que Cauvin conta é o trauma, a obsessão da ausência paterna, o medo da delação dos vizinhos e dos parentes. E os oprimidos, mesmo na vitória, nunca chegarão a gozar o prazer de se sentirem vencedores, já que sobram feridas impossíveis de cicatrizar...

domingo, novembro 11, 2007

A propósito do clip de Abbado

Teria gostado de inserir aqui o Adagietto desta mesma 5ª Sinfonia, até por ser o mais conhecido desde que Visconti a ele recorreu para dar uma sonoridade sublime ao seu filme «Morte em Veneza». Mas, helas, ainda não encontrei esse trecho no You Tube. Daí que tenha optado pela mesma sinfonia, interpretada no mesmo Festivalde Lucerna de 2004 e com um Claudio Abbado mais ou menos recuperado da sua terrível doença a dirigir a Orquestra com a sua espantosa maestria e impressionando com essas mãos esguias mas tão elegantes ao cirandarem pelo ar...

Mahler - 5th symphony - 2nd movement (Extract)

sábado, novembro 10, 2007

LUC-HENRI FAGE: «A MEMÓRIA DAS GRUTAS DE BORNÉU»

Há já vários anos que o espeleólogo Luc–Henri Fage e o arqueólogo Jean Michel Chazine exploram a ilha de Bornéu para tentarem encontrar as pistas de explicação do povoamento da ilha. A descoberta de grutas ornamentadas de desenhos rupestres os encorajou a prosseguir as inspecções.
Recentemente as autoridades emitiram-lhes uma licença de investigação nos montes Marang. Escoltados por guias dayaks e por cientistas indonésios, a equipa avança selva adentro em busca de novas grutas. As descobertas vão surpreendendo.
«Bornéu, a Memória das Grutas» começa por ser um documentário fabuloso sobre os trabalhos arqueológicos: ao principio um trabalho manual, que implica o recurso a um tremendo arsenal tecnológico. Sucede-se a evolução do trabalho com a recolha de impressões digitais deixadas nas paredes ou a descoberta de cerâmicas até à sua análise laboratorial, que permitirá datá-las.
Luc-Henri Fage e a sua equipa podem assim medir a dimensão da sua descoberta: as grutas de Bornéu contém vestígios com mais de 10 mil anos.
O realizador tenta contagiar o espectador com o seu projecto dando-lhe a ver e a tocar em coisas de que só pressentiria a existência há tempos imemoriais.
Mas as descobertas ultrapassam as melhores esperanças: há pinturas muito elaboradas de animais e de plantas eventualmente manchadas por impressões negativas ( marcas de mãos humanas em fundo ocre) decoradas e ligadas entre si por linhas.
A sua disposição nada aleatória aparece como resultado de uma intenção. Os investigadores hesitam ainda quanto ao seu sentido, provavelmente ligado a ritmos de iniciação de xamânicos…


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Ainda será possível descobrir algo de novo sobre os nossos mais primitivos antepassados? No entendimento de alguns arqueólogos como os deste documentário a resposta é afirmativa, aliando novos conhecimentos adquiridos nas inscrições escondidas em grutas quase inacessíveis com a descoberta de espaços no planeta, de prodigiosa beleza.
Decerto que se fosse algo mais do que um personagem, Indiana Jones gostaria de acompanhar estes cientistas argutos. Porque a arqueologia também pode ganhar laivos de aventura e tornar-se em algo mais interessante do que a mera acumulação de documentos bafientos.
Até para os compreender o arqueólogo tem, então, de se assumir como um detective cioso de dar sentidos às suas provas...