quinta-feira, junho 26, 2014

FILME: «Longa Jornada para a Noite» de David Wellington (1996)

Um ambiente de desconfiança permanente entre um número reduzido de personagens enclausurados numa casa asfixiante. Numa frase poderíamos definir a famosa peça de Eugene O’Neill, que constitui um bom exemplo de como levar o espectador por sucessivos, e cada vez mais tensos, ciclos entre a aparente harmonia e o confronto dessas personagens, identificando-se com os dramas da família Tyrone, que todos os verões vai passar uma temporada à casa de férias situada junto ao mar.
Em noites de nevoeiro as sirenes mal deixam dormir quem já anda intimamente alvoraçado, mas o velho patriarca ressona como se o castelo de cartas em que assenta a vida da mulher e dos filhos não estivesse a um passo de se desmoronar.
Mary acabou de regressar de um longo internamento após mais uma das suas “crises nervosas” e Edmund, o filho mais novo, tem uma daquelas «constipações de verão», que mais não é do que o eufemismo para a tuberculose que todos fazem para não querer abordar. Porque quando, numa das primeiras cenas tensas da peça,  Jamie, o primogénito, o faz logo aproveita para acusar o pai da doentia avareza, que o fez recorrer ao incompetente dr. Hardy para lhe salvar a vida do filho, agora à beira do fim.
Dessa discussão entende-se melhor a realidade dessas personagens: Tyrone é um déspota, que anseia por comprar sempre mais terras, apesar de já ser o maior proprietário da região. Ator consagrado, costuma passa o resto do ano em digressões, que o levam a partilhar com Mary, quartos de hotéis baratos, e é à sua pala que Jamie também singra nos palcos mas com muito menos sucesso, ou que Edmund começara a escrever no jornal local depois de percorrer o mundo como tripulante em navios mercantes.
Embora vão fazendo os possíveis por não estimularem os focos de dissensão, é inevitável ver  mãe e os filhos a darem conta da frustração, que tomou as suas vidas. Mary, por exemplo, confessa num dos seus diálogos com Edmund: Nenhum de nós pode nada contra o que a vida nos faz. Depois das coisas feitas, fazemos outras até que nos afastamos do que gostaríamos de ser e perdemos a nossa verdadeira identidade para sempre. E, no terceiro ato, recorda como era bastante prendada antes de namorar Tyrone e logo se desiludira na lua-de-mel quando ele lhe aparecera completamente embriagado numa noite de récita.
No fim do almoço Tyrone recebe o telefonema do dr. Hardy a convocar Jamie para uma consulta às quatro da tarde. Sucessivos diálogos a dois ou a três dão para concluir que Mary toma “medicamentos” às escondidas, e culpa-se pela morte de outro filho, Eugene, que deixara aos cuidados da mãe, quando o marido a chamara para junto de si por sentir saudades. Ninguém a conseguirá demover que Jamie terá provocado intencionalmente a morte desse irmão mais novo, desrespeitando a ordem de dele não se aproximar enquanto tivesse sarampo.
Confirma-se, igualmente, a tuberculose de Edmund, com Jamie a prevenir o pai para o quanto dele desconfia quanto ao tipo de sanatório para onde o irá enviar. Dada a sua avareza será crível que opte por uma espelunca em vez de um hospital em condições.
Sozinha em casa, enquanto os homens vão à vila, Mary chama a criada Cathleen para lhe fazer companhia, contando-lhe mistificações (como conhecera James Tyrone e dele se enamorara imediatamente, quando o vira atuar pela primeira vez em palco), que reconhece depois serem absolutamente falsas. Porque, agora, mais de trinta e seis anos depois, tem de reconhecer que fora feliz nesse tempo anterior em que estava a estudar num colégio de freiras.
Hoje gostaria de recuperar a fé perdida, mas como consegui-lo se nunca poderia esconder a sua natureza de toxicómana?
A tarde vai avançando para a noite e o nevoeiro tende a instalar-se, quando Tyrone e Edmund regressam!
As agressões verbais não cessam e, quer Mary, quer Edmund, deixam o chefe da família a jantar sozinho, Ela está em estado de carência e tem de se refugiar no quarto para tomar às escondidas o “medicamento para o reumático nas mãos”, embora o marido não se deixe iludir quanto a uma agudização do seu estado de toxicodependência. Quanto ao filho doente, a falta de apetite tanto resulta dos efeitos da doença, como da insuportabilidade que o convívio com os pais lhe suscita.
No início do quarto ato a casa está imersa no nevoeiro: no piso superior ouvem-se os passos de Mary e Jamie está nalgum bordel das redondezas. Por isso no salão só restam o velho Tyrone e Edmund com este a declamar Baudelaire para descontentamento do progenitor, que lhe retorque com as vantagens do que poderia colher do seu idolatrado Shakespeare.  Mas tratam-se de conversas defensivas para ambos evitarem aquelas a que, inevitavelmente, irão desembocar. E, de facto, não tardará que Edmund acuse o pai de, com a sua avareza, nunca ter promovido uma verdadeira desintoxicação da mãe, nem de lhe facultar cura num sanatório adequado.  Ou de tê-la deixado tantas noites sozinha durante as suas digressões só regressando bêbedo aos miseráveis quartos de hotel onde ela o esperava.
Mas Eugene O’Neill foge habilmente ao maniqueísmo, quando temos de respeitar a longa confissão que o velho Tyrone faz ao filho e explica essa avareza: a miséria extrema conhecida na infância, com a fome e os tugúrios a mal o protegerem do frio ou o fracasso da sua carreira de ator, que ele quisera potenciar com o papel de Monte Cristo e que fizera com que mais ninguém o contratasse para outro papel que não esse. «Esta noite estou tão deprimido, que sinto que é o fim de tudo!», acaba por confessar.
Uma cumplicidade profunda estabelece-se entre ambos como se, nas respetivas fraquezas aceitassem as do outro.
Quando o pai se retira, Jamie chega embriagado e pronto para contar a sua experiência sexual com a mais gorda das meretrizes do bordel. Mas, numa noite de confissões, ele confessa o desespero de ter acreditado na possibilidade de se regenerar se a mãe viesse curada da última desintoxicação. A evidência do fracasso também o leva a considerar o fim das suas réstias de esperanças. E confessa a Edmund ter exercido voluntariamente sobre ele a sua má influência porque, ciumento das atenções da mãe, o pretendia ver destruído.
E, no entanto, reconhece nele o único dos seus amigos!
Não tarda que os quatro protagonistas se voltem a encontrar em cena: Mary veio do primeiro andar envergando o seu vestido de noiva, mas é de um fantasma que parece tratar-se. Quando começa a falar, já sem o véu, compreendemos que a sua loucura a devolveu ao passado em que andava no colégio de freiras. É sobre o que ali se terá passado que se fixa: os tempos felizes em que se enamorara de James Tyrone.



quarta-feira, junho 25, 2014

LEITURA: «O Animal Moribundo» de Philip Roth

Há escritores a quem a Academia Sueca jamais atribuiu o Nobel e nada se terá perdido significativamente com isso: um Graham Greene, um Jorge Luís Borges ou até um Jorge Amado.
Mas, apesar de a ter visto atribuir a distinção a escritores que muito aprecio - Saramago, Garcia Marquez, Le Clézio - bem teria preferido que alguns dos galardoados recentes (por exemplo Herta Muller) tivessem perdido para outro dos recorrentes ódios de estimação dos académicos em causa: Philip Roth.
Agora, já dobrado o cabo dos oitenta anos, o escritor norte-americano dificilmente verá premiada a sua obra vasta e de fácil leitura, onde se foi ao mesmo tempo analisando e à realidade que o rodeava.
Publicado em 2001, «O Animal Assombrado» aborda o conflito entre gerações, com as respetivas idiossincrasias a funcionarem numa lógica de regressão: David Kepesh, o narrador, é um velho libertino para quem a Revolução Sexual dos anos sessenta foi uma benesse, enquanto o filho vive um processo de culpabilização por um adultério patético, já que reproduz os mesmos esquemas mentais, que conduziram ao fracasso do seu casamento.
Mas, como de costume em Roth, está presente a sexualidade pura e dura, capaz de exasperar muitas feministas. Porque Kepesh não se prende em romantismos estéreis: para ele a atração entre dois seres tem uma conotação quase exclusivamente sexual:
“A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos antes de sabermos alguma coisa acerca de outra pessoa. No momento inicial compreendemos tudo. Inicialmente, somos atraídos para a superfície um do outro, mas também intuímos a dimensão mais plena. E a atração não tem de ser equivalente: ela é atraída por uma coisa, nós pela outra. É a superfície, é a curiosidade, mas depois, zás!, pela dimensão. (…) O sexo é todo o encantamento necessário. Os homens acham as mulheres assim tão encantadoras uma vez excluído o sexo? Alguém acha alguém de qualquer sexo assim tão encantador, a não ser que tenha comércio sexual com essa pessoa? Por quem mais nos sentimos assim encantados? Por ninguém.” (pág. 23 na edição portuguesa da D. Quixote)
O facto do próprio Roth também ser sexagenário quando escreveu o romance torna óbvio o seu lado autobiográfico. O professor, que se enamora pelas suas alunas e só arrisca seduzi-las após concluído o ano escolar, é mais um dos alter egos do autor. Que por isso mesmo opera aqui a catarse sobre o seu próprio receio da velhice. E o quanto ela o leva a mostrar um ciúme quase doentio pela amante ao ponto de quase a tornar cúmplice de fantasmas masoquistas.
“Conseguem imaginar a velhice? É claro que não. Eu não conseguia. Não era capaz. Não fazia a mínima ideia de como era. Não tinha sequer uma falsa ideia - não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa qualquer. Ninguém quer enfrentar nada disto antes de não ter outro remédio. Como vai ser?” (pág. 37)
Um dia, tendo a noção de viver uma relação cada vez mais obsessiva e descontrolada com uma jovem de origem cubana com menos de metade da sua idade, Kepesh força a rutura, escusando-se a comparecer na festa com que Consuela celebra o seu diploma universitário.
“Ela tinha ido até onde queria. A única coisa que eu podia ter feito, continuando, era torturar-me ainda mais. A atitude mais inteligente que tomei foi a de não aparecer lá. Porque tinha andado a ceder, a submeter-me de maneiras que não compreendia. O desejo nunca desaparecia, nem mesmo enquanto a tinha. A emoção principal, como já disse, era o desejo ardente. E ainda é. Não há alívio para esse desejo nem para a minha noção de mim mesmo como suplicante. (pág. 83)
Mas, como de costume em Roth, ainda estamos longe de ver esgotadas as nossas surpresas: quando Consuela o volta a contactar é para lhe dar conta do seu terrível cancro, que lhe poderá ceifar a vida ou, no mínimo, amputá-la da parte do seu corpo com que o amante de outrora tanto fantasiara: os seios.
Temos, pois, a presença da velha interligação entre Eros e Thanatos, mas de forma particularmente dramática, porquanto um exclui necessariamente o outro. De facto, a expectativa de a saber ameaçada tolda-lhe qualquer veleidade de desejo sexual:
“ Eu não poderia ter dormido com ela, nem mesmo eu que lhe lambera o sangue. Depois de anos a remoer sobre ela, só vê-la teria sido muito difícil se ela aparecesse em circunstâncias normais e não deste modo estranhamente desditoso. Por isso, não, não teria sido capaz de dormir com ela, apesar de continuar a pensar nisso. Porque eles, os seios, são tão belos. Nunca me canso de o dizer. Era tão cruel, tão degradante, aqueles seios, os seios dela. Pensei apenas: não podem ser destruídos!” (pág. 114)
No final ficamos sem saber se Consuela resistirá ou não à sua operação. Mas isso de pouco importa: o fascínio já se foi e deixou apenas uma amarga recordação.


BANDA SONORA: Pete Seeger - God's Counting On Me, God's Counting On You

A eterna evocação de um artista, que sempre foi coerente na sua longa vida!

sábado, junho 21, 2014

LIVRO: «Mundo Ardente» de Siri Hustvedt

Ao sexto romance a escritora norte-americana Siri Hustvedt imita Orson Welles que, em «O Mundo a Seus Pés», investigara quem fora o já falecido Charles Foster Kane. Neste romance procuram-se os sinais da existência de Harriet Burden, uma artista plástica dos anos 20 que, farta de ser desvalorizada por causa da sua condição de mulher, decide vingar-se do preconceituoso meio cultural nova iorquino e programa três exposições distintas das suas obras, mas apresentando-as como da autoria de três homens o mais dissemelhantes possível entre si: o jovem prodígio Anton Tish, o “míope, mulato e estranho” Phineas Eldridge e o narcisista Rune.
A exemplo do célebre filme de Welles temos um investigador - neste caso um professor universitário - que vai à procura de Harriet recorrendo a  uma vasta coleção de entrevistas, ensaios, artigos e cartas. E o resultado é mais um libelo da autora contra a discriminação suscitada por razões de género. Por isso mesmo o primeiro parágrafo do livro é elucidativo quanto às suas intenções: “Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates”.
E, de facto, olhando para a História da Arte Ocidental quantas pintoras conhecemos comparativamente com os seus confrades masculinos? Sobretudo se nos cingirmos aos que criaram as suas obras antes do início do século XX?


sexta-feira, junho 20, 2014

FILME: «A Mãe e o Mar» de Gonçalo Tocha

Num país onde o governo de passos coelho reduziu a zero os apoios à produção cinematográfica - naquela que é uma das mais esclarecedoras demonstrações da forma como a Direita olha para a cultura! - tem sido admirável o esforço da organização do Festival de Vila do Conde em financiar anualmente um projeto relacionado com a sua região.
Há dois anos fora contemplado João Canijo que, com «É o Amor», mostrou o quotidiano das mulheres dos pescadores de Caxinas pelo olhar cúmplice da atriz Anabela Moreira. No ano transato foi a comunidade de pescadores de Vila Chã aonde Glória é a última representante de sucessivas gerações de mulheres que ganharam o sustento no mar. Eram as “pescadeiras”, que não se sabe bem como surgiram, mas que foram muitas dezenas quando, em vez dos atuais nove barcos dedicados à faina, saíam desse porto natural mais de cem.
Gonçalo Tocha, que já nos dera a conhecer o quotidiano dos habitantes da ilha do Corvo («É na Terra, não é na Lua»), repetiu o seu modo de traduzir em filme uma realidade relacionada com o mar, captando muitos testemunhos depois estruturados em laboriosa montagem.
Fica assim um documento cinematográfico de inestimável valor sobre uma atividade, que os governos de cavaco silva trataram de acelerar na sua irreversível decadência. 

FOTOGRAFIA: John G. Morris, veterano e jornalista

Recentemente, por ocasião do Dia D, pudemos conhecer a personalidade de John G. Morris, um veterano e jornalista que viveu esse acontecimento através dos olhos e das fotografias do seu amigo Robert Capa de quem era o editor. Foi ele quem salvou as poucas fotografias que o conhecido fotógrafo enviou para a sua revista e que quase foram inteiramente destruídas por má manipulação no laboratório.
Mas John Morris não se limitava a ser o responsável pelos fotógrafos que, por conta da revista Life, mandava para os locais donde seria relevante colherem-se testemunhos em forma de imagens.
Por isso mesmo quando está colocado em Londres em 1944, ele decide atravessar a Mancha e passar quatro semanas na França libertada para dela construir uma crónica pessoal, apesar de ainda prosseguirem combates na Normandia.
Dessa viagem ele traz uma dúzia de películas com fotografias, que ficarão guardadas durante setenta anos.
Agora, aos 97 anos, ele evoca com malícia e desenvoltura a sua geração de homens, que participaram na guerra e se dedicaram ao fotojornalismo.


quinta-feira, junho 19, 2014

LEITURAS: «Mazagran» de José Rentes de Carvalho (2)

O livro de recordações e de outras fantasias, a que José Rentes de Carvalho deu o nome de «Mazagran», orienta-se por dois eixos temáticos principais: num deles o autor mostra como os holandeses têm evoluído nos seus comportamentos - a forma como cumprimentam, como atendem o telefone, como tratam dos seus animais domésticos - perdendo, pouco a pouco, as características inerentes à idiossincrasia luterana, que os tenderia a cristalizar na soturnidade austera dos gestos e das emoções.
Porque não é só o carinho, o conforto, o bom trato, mas toda a rede de previdências que, com as suas lojas especiais para o comer e o vestir, o seguro, os cuidados veterinários, próteses, cemitérios, serviço de ambulâncias, hotéis e asilos, distrações, e  até eutanásia, torna a sociedade dos animais quase uma réplica da nossa. Falassem eles entre si uma língua inteligível e não duvido que sem tardar disporiam de telemóvel. (pág. 62)
Noutro eixo temático, Rentes de Carvalho dá-nos o ensejo de ir conhecendo melhor a sua autobiografia feita de muitas evocações de infância - por exemplo a existência do «abafador», que cuidava de apressar o sofrimento aos judaizados temerosos de se verem a revelar o verdadeiro credo perante o padre católico chamado para a extrema-unção - e da forma quase casual como ele foi parar a Amesterdão e ali se radicou.
De nascença, pois, e fazendo parte do mais íntimo, possuo uma aversão poderosa contra o uniforme. Militar ou não. Porque com os seus galões e distintivos ele reforça o espírito de casta, é sinal de preferências, dá a ilusão  de autoridade, exige respeito, submissão, disciplina, impõe o que não deveria ser imposto: a ordem, mete medo e, talvez tão mau como tudo isso junto, incita ao espírito de rebanho. (pág. 55)
Não se tratando de grande Literatura, a prosa de Rentes de Carvalho lê-se com muito agrado porque escorreita e bem carpinteirada e, sobretudo, por trazer elementos interessantes de como era a vida quotidiana no Portugal dos anos 30 ou na Holanda do final do milénio.


quarta-feira, junho 18, 2014

TEATRO: «Longa Jornada para a Noite» de Eugene O'Neill (1987)

«Longa Jornada para a Noite» é uma peça em quatro atos do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, que viveu entre 1888 e 1953.
Embora a tenha escrito em 1941 a obra só viria a ser conhecida postumamente em 1956, altura em que ocorreram as primeiras representações autorizadas pela sua viúva em Estocolmo, Milão, Berlim, Nova Iorque e Paris.
Dedicada precisamente a Carlotta, o autor penalizara-se por lhe legar uma obra escrita “com lágrimas e sangue”.
A história passa-se num só dia de agosto de 1912 no lúgubre salão da casa de férias dos Tyrone e constitui uma longa confissão dos seus quatro personagens principais ao longo de quatro horas de representação.
O’Neill fez desta obra a catarse das suas próprias memórias desse mesmo ano de 1912, quando passou férias com a família numa vivenda do Connecticut. Terá sido aí que, a exemplo do personagem Edmund Tyrone (o seu alter ego na peça), se soube tuberculoso e obrigado a internar-se num sanatório onde iria escrever a sua primeira peça.
O pai de Eugene O’Neill também fora um ator em tempos popular com as suas digressões a protagonizar «O Conde de Monte Cristo».
A mãe, completamente agarrada à morfina, vagueava pelas divisões da casa a chorar a sua perdida juventude. E, quanto ao irmão mais velho, que dele procurava iludir os ciúmes, tentava-o arrastar para as suas tristes noitadas de copos e prostitutas.
O futuro dramaturgo vivera aterrorizado pelo clima insano, que predominava em certas noites passadas nessa vasta casa. Foram essas cenas de angústia, que reproduziu para a peça transformando este dia da família Tyrone num verdadeiro pesadelo.
No primeiro ato as personagens parecem acomodadas à desordem e à pobreza em que vivem. Mas, logo desde o início do segundo ato, a tensão sobe e as discussões criam uma tensão quase insuportável. Na sequência de uma cena de bebedeira o filho mais velho confessa a inveja por Edmund e como o quisera matar.
«Longa Jornada para a Noite» é uma peça amarga, extremamente incómoda e atravessada por gritos angustiados, que expiam as angústias do autor pela sua juventude atormentada.
Nota - o link abaixo refere-se à versão de 1987 da peça de Eugene O’Neill com as interpretações superlativas de Jack Lemmon, Kevin Spacey, Bethel Leslie e Peter Gallagher, com realização de Jonathan Miller.

terça-feira, junho 17, 2014

ARTE: a exposição de Daniel Buren em Estrasburgo

Daniel Buren é um dos artistas mais célebres dos nossos dias, já que não são difíceis de encontrar as suas obras com faixas regulares e de grandes dimensões. Mas ele é igualmente tido como alguém que gosta de guardar para si os segredos da sua criatividade: as obras devem causar um certo efeito, quer sejam desenvolvidas numa tela, numa fachada, num cenário ou num circo.
Buren não possui atelier, trabalhando onde lhe vai agradando. E essa é uma das principais características da sua obra. Ele pratica o que designa a arte “in situ”.
Nascido em 1938 esteve matriculado por pouco tempo na École des Métiers d’Art, já que, desde muito cedo - estávamos então no início dos anos 60 - começou a questionar os limites da pintura.
Recorrendo a uma gramática visual cingida ao essencial, ele começa, a partir de 1967, a utilizar bandas invariavelmente espaçadas de 8,7  centímetros que define como a sua ferramenta visual. Desde então desenvolve uma obra rigorosa e coerente, que pode  ser entendida como uma abordagem plural do contexto na criação artística.
O Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Estrasburgo está a expor as suas obras mais recentes até ao final do ano.
Intitulada «Como uma brincadeira infantil, trabalhos in situ», a exposição integra duas obras novas de grandes dimensões, que surgem nos 1500 m2 da fachada envidraçada do museu e nos 600 m2 da sala de exposições temporárias.
O projeto compõe-se de duas partes, complementares uma da outra., dando ao visitante a possibilidade de redescobrir a arquitetura e os espaços de exposição sob uma nova perspetiva.
Com esta dupla exposição, Daniel Buren executa um trabalho, que alia a compreensão do que existe com a afirmação de uma proposta escultórica, no que é uma das suas obras mais lúdicas no conjunto de todos os seus trabalhos.

segunda-feira, junho 16, 2014

FILME: «Quanto Mais Quente Melhor» de Billy Wilder (1959)

«Quanto mais quente melhor» está nos píncaros da comédia norte-americana, que tem o travestismo como tema. Foi a segunda colaboração entre Billy Wilder e Marilyn Monroe, que já se convertera no símbolo sexual dos anos 50, quando ainda imperava o código moral de autocensura gizado por William Hays. Mas, já antes, a associação entre Wilder e Marilyn pusera seriamente à prova a instituição conjugal do americano médio com «O Pecado Mora ao Lado» em 1955, quando a mostrava a arrefecer a roupa interior no frigorífico como resposta a um verão nova-iorquino particularmente quente.
«Quanto Mais Quente Melhor» também constitui o encontro de Wilder com Tony Curtis e, sobretudo, com Jack Lemmon com quem contará em seis outros filmes posteriores, incluindo o último que assinou antes de morrer - «Buddy Buddy».
A história começa em Chicago em 1929, quando está em curso uma guerra de extermínio entre diversos bandos de mafiosos.
Joe é saxofonista e Jerry contrabaixista  numa modesta orquestra quando testemunham involuntariamente o célebre massacre de São Valentim. Descobertos e ameaçados de morte pelo terrível Spats Colombo, fogem e, para não serem reconhecidos, disfarçam-se de mulheres fazendo-se contratar por uma orquestra feminina em vias de partir em digressão para a Flórida.
Não tardam a travar amizade com a palpitante cantora da orquestra, Sugar, que lhes confidencia os sarilhos passados quando trabalhava com instrumentistas masculinos, pois tinha uma inexplicável predisposição para se apaixonar por saxofonistas.
É claro que Joe, mesmo a coberto do disfarce de Josephine, não quer perder tão prometedora oportunidade e, tão só chegados ao destino, assume outra personalidade complementar: a do milionário Shell Junior, que faz ajustar em gostos e comportamentos a tudo quanto Sugar confessara ver como irresistível.
Por seu lado Jerry, que veste a pele de Daphne, também suscita a paixão assolapada de um verdadeiro milionário, Osgood Fielding que possui um iate, razão para as pressões de Joe junto do amigo para que aceite o namoro do respetivo dono como forma de marcar encontro com Sugar para a embarcação e tornar credível o novo disfarce.
Mas os percalços sentimentais veem-se perturbados pela chegada de dezenas de mafiosos ao hotel para assistirem a um falso festival de ópera, que serve de cobertura ao congresso dos chefes dos bandos de todo o país. Reconhecidos pelos sicários de Spats Colombo, os dois músicos voltam a andar numa roda viva para deles conseguirem escapar.
O iate de Osgood volta a mostrar a sua utilidade para se esconderem e para ocorrer a célebre réplica final, quando pede casamento a Daphne e a vê confessar que é um homem:
- “Não faz mal!” - responde o apaixonado. - “Ninguém é perfeito!”
«Quanto Mais Quente Melhor» não é a primeira comédia sobre a usurpação de identidade e a mudança de sexo. Wilder reconheceria a influência de um filme de Richard Pottier e de um outro alemão ainda da época do cinema mudo. Mas, juntamente com o seu habitual argumentista, I.A.L. Diamond, quis criar uma ideia original sobre dois homens heterossexuais, habituados a flirtar com quantas mulheres os sugestionassem e, por uma questão de vida ou de morte, a terem de se disfarçar sob vestes femininas e a passarem grande parte do filme com elas envergadas.
O sucesso da obra decorre do cruzamento de dois géneros muito populares: a comédia e o filme de gangsters, misturando-se assim a imbricação temática entre a ameaça de morte violenta e o desejo sexual.
George Raft, que protagoniza Spats Colombo, invoca o seu papel em «Scarface» de Howard Hawks, dirige o seu bando constituído por gangsters, que não o são propriamente de opereta.
Por seu lado, Joe e Jerry, interpretados respetivamente por Tony Curtis e Jack Lemmon, quase parecem miúdos em loja de guloseimas, quando se veem a meio da noite numa carruagem de comboio pejada de colegas da orquestra, todas elas em roupa interior. Entre elas a cândida, e romântica Sugar, que se torna desde logo uma vítima potencial dos cínicos colegas travestidos.
Mas Joe e Jerry acabam por, muito habilmente, deslocarem as fronteiras entre o masculino e o feminino para uma tal ambivalência, que a réplica final pretende concluir que, ninguém sendo perfeito, nunca se é totalmente de um género ou do outro.
Como cerejas em cima do bolo ainda há, enfim, a recordar as canções antológicas interpretadas por Marilyn: “I'm Through with Love”, “I Wanna Be Loved by You” e, obviamente, “Some Like it Hot”.