quinta-feira, dezembro 28, 2006

A MORTE NA ESCRITA

Em «O Ano do Pensamento Mágico», Joan Didion exorciza a sua dor depois de ter perdido o companheiro de quarenta anos de vida, John Gregory Dunne. Tudo se passou há três anos, no dia 30 de Dezembro, quando ambos tinham acabado de chegar a casa, vindos do hospital aonde a filha adoptiva, Quintana estava em coma na sequência de um choque séptico relacionado com uma pneumonia.
O que sucedeu leva Joan a escrever: «A vida muda num instante. O banal instante»
Ela fez uma salada, acendeu a lareira e preparou um uísque para John. Que logo cai, fulminado por um AVC.
O pensamento mágico de que fala o título do livro é um termo psiquiátrico para designar a atitude mental de negação de um acontecimento, muito frequente em crianças atingidas por um trauma profundo. Um trauma como o que leva Joan a não arrumar os sapatos de John durante meses na expectativa de que ele regresse.
O vazio de que padece é compreensível: depois de se terem conhecido nos inícios dos anos 60, Joan e John constituíam um casal quase mítico da intelectualidade norte-americana fazendo tudo em conjunto: trabalhando em casa, viajando, completando as frases um do outro no convívio social.
A editora do «Público» diz que é uma obra de uma lucidez implacável, brilhante de sensibilidade e de inteligência.
Mas é também um livro, que se enquadra no espírito de um tempo em que a América está condenada a pensar na morte como uma inevitabilidade: porque houve o 11 de Setembro, o Katrina e os muitos soldados vindos encaixotados do Iraque, este é um tempo de luto e de procura de uma explicação para o vazio da ausência.
Já Yann Quéffelec escreve sobre a morte da mãe, trinta e muitos anos depois de a ter vivido. Em «Ma Première Femme», o irmão da pianista que vimos anos a fio na «Festa da Música» recorda esse momento único em que atendeu o telefone e o responsável da clínica aonde a progenitora estava internada o confunde com o pai dizendo-lhe: «A sua mulher não passou a noite».
Ora o rapaz de dezassete anos, que jamais tivera a percepção da gravidade dessa doença, fica aturdido nunca mais conseguindo ser o mesmo.
O livro recentemente publicado é uma homenagem, uma forma de redenção perante o remorso de nem sequer ter conseguido despedir-se dessa mulher corajosa, que sofrera em silenciosa agonia a evolução imparável da sua doença...

domingo, dezembro 24, 2006

SEXO E FILOSOFIA

O realizador é iraniano, Mohsen Makhmalbaf, mas o filme foi rodado no Tadjiquistão em 2005: «Sexo e Filosofia» leva um homem, Jan, a reunir as suas quatro amantes na sua escola de dança no dia em que faz quarenta anos. E num estilo narrativo muito lento, com grande apoio da música e, sobretudo, da dança, ele evoca as circunstâncias em que a todas terá conhecido. Concluindo pela relativização dos sentimentos em favor do acaso ligado a cada um desses encontros.
A Mariam conhecera quando fora o único passageiro num voo em que ela era a hospedeira. Fora um amor celestial, que lhe merecera a oportunidade para esculpir uma árvore em frente à sua escola.
Farzona impressionara-o pela forma de andar, pela cor dos seus sapatos. Embora ela lhe confessasse a sua capacidade de amar os homens, que já lhe eram passado em vez de presente.
A Tamineh conhecera-a no hospital, quando uma incómoda diarreia ali o levara em grande sofrimento. Sendo ela a enfermeira, que lhe serviria de anjo da guarda nessa ocasião.
Enfim Malohat, a última dessas amantes, experimenta algo semelhante ao intento dele: junta os seus quatro amantes na mesma mesa para lhes confessar essa diversificação dos seus afectos. O que não é propriamente bem aceite por alguns deles.
Neste filme pejado de símbolos a questão essencial é descobrir o que alimenta o amor, o que conduz à sua negação.
O Amor acaba por se revelar como o milagre de um momento, quando a solidão se define como incontornável destino...

LUANDINO VIEIRA: O REGRESSO AOS LIVROS

Acabei de ler uma interessante entrevista com o escritor angolano Luandino Vieira no suplemento «Mil Folhas» do «Público», a pretexto do lançamento do seu mais recente título: «O Livro dos Rios». Que é o primeiro de uma trilogia intitulada «De Rios Velhos e Guerrilheiros».
O tema é, segundo o autor, o da «relação entre o homem angolano com a natureza angolana, no contexto da luta de libertação nacional». Para tal recorre a um grupo de guerrilheiros, que se deslocam em direcção a alguém da frente interna, que lhes traz medicamentos.
Voltando ao autor: «Estava com a ideia de escrever sobre árvores, peixes, pássaros, céu, água, rio, e não percebia bem como é que o homem havia de estar no meio disso.» A solução passa por, dentro desse grupo de guerrilheiros, inserir um sonhador atento à novidade da paisagem, já que viera da costa aonde só conhecia as areias da praia.
O livro vem confirmar quão exageradas tinham sido as notícias sobre a «morte criativa» de um escritor celebrado pelo seu «Luuanda» - que, em 1965, suscitou a acção terrorista da PIDE à sede da Sociedade Portuguesa de Autores - mas perdido durante anos nas tarefas políticas a ele confiadas após a independência, e depois, no seu voluntário exílio de treze anos nas terras minhotas.
Ainda assim ele diz que nunca parou de escrever apesar de não publicar nenhum livro novo desde 1972.
Agora, aos 71 anos, vive austeramente na casa do porteiro do Convento de Sampaio, em Vila Nova de Cerveira, tendo por anfitrião o escultor José Rodrigues.
Na sapiência conferida pela idade, ele diz: «Eu gosto muito de viver. Se estiver sol já não escrevo, saio para a rua. Se está a chover também visto o impermeável e vou andando. Só em último caso, quando já não posso fazer mais nada» é que escreve.
Bens tem muito poucos. Cabem todos numa mochila. «Se compro uma camisa, tenho de deitar outra fora».
Mas a solidão não é propriamente um estado natural em si: «Sempre tive que me virar sozinho. Acabei por ficar mais solitário do que gosto de ser… Não percebe pela conversa que não gosto de ser solitário? Acabo por conversar muito, mas depois retraio-me, meto-me na minha concha».
Ao contrário do que quem o entrevista pretende, Luandino Vieira não está desiludido com o rumo dos acontecimentos no seu país: «Se tivéssemos a capacidade de só nos construirmos, mas, eu, pelo menos, não tinha percebido que isso só se faz com os outros todos, e os outros todos não eram só os meus colegas… Eram os americanos, eram os russos, eram os sul-africanos». Acaba, assim, por reconhecer a evidência de não se sentir desiludido, porque nunca alimentara ilusões.
«Um regime é uma coisa perfeitamente transitória. Os homens desenvolvem formas de se auto-governarem conforme as necessidades. São sempre circunstancialismos que determinam isso. Hoje o mundo tem esse modelo, a democracia. E viu-se por exemplo o que deu tentarem impor a democracia no Iraque.»

domingo, dezembro 10, 2006

RECORDAR PHILLIPE NOIRET

Na televisão francesa passa um filme quase desconhecido com o actor Philippe Noiret, que acaba de morrer.
Não era daqueles actores, que motivassem a imprescindibilidade da deslocação ao cinema para ver o que interpretava, mas sabia-se de antemão a agradabilidade de tais títulos e a superlatividade da sua interpretação.
Ele começou por nos chamar a atenção n’«A Grande Farra» do Marco Ferreri, que tanto escândalo causou nos meses subsequentes ao 25 de Abril.
Depois era ele um dos divertidíssimos foliões, que iam dar chapadas nos passageiros de comboios distraídos nos seus acenos de despedida em «Meus Caros Amigos». E, já na sua idade mais provecta, seria ele o projeccionista do comovente «Cinema Paraíso» ou o poeta Neruda a quem o carteiro ia levando a sua correspondência.
Poderia aqui evocar outros títulos, mas bastam estes para comprovar a previsão de se tratar de um daqueles nomes da sétima arte, que perdurarão nas nossas memórias por uns bons e largos anos…

segunda-feira, dezembro 04, 2006

CIDADANIA PRECISA-SE (NOS JORNALISTAS)

Num dos telejornais de ontem eram entrevistadas pessoas, que rejeitavam a possibilidade de «salas de chuto» serem instaladas na vizinhança das suas casas.
Como de costume - e aliás na linha do que esta nova geração de «jornalistas» vem difundindo nos nossos media - dava-se só voz a um dos lados da questão sem a oportunidade cívica de fazer prevalecer os argumentos pertinentes de quem defende nessa medida uma forma racional de ajudar a resolver um grave problema social.
Demonstrava essa reportagem que o populismo não é exclusivo do discurso político. Este crescerá sim a partir da divulgação acrítica deste tipo de mensagens, que só contribuem para a prevalência do que de pior existe no comportamento colectivo. Neste caso em concreto a segregação de um número significativo de nossos concidadãos a quem as circunstâncias infelizes da vida empurraram para a via da toxicodependência.
E, no entanto, nos bairros em causa - e em qualquer um deste país - quantos casos de toxicodependência se albergam por detrás das insuspeitas fachadas dos seus prédios?
O discurso desses entrevistados lembra os que empurram a sujidade para debaixo dos tapetes ou quem prefere esconder a cabeça na areia.
Porque é um assunto de tal gravidade, que exige ser tratado com frontalidade, todos deveriam ser comprometidos na sua resolução. Colaborando nas soluções em vez de lhes atravessarem obstáculos. Ou porque são de esquerda e se confrontam com uma iníqua situação de injustiça social, que urge resolver. Ou porque são cristãos e devem por natureza revelar a sua quotidiana generosidade. Ou porque são de direita e devem ter a consciência dos danos à sua sagrada propriedade privada, que o problema colateralmente cria.
Mas os primeiros responsáveis pela criação de uma tal postura devem ser os editores de notícias dos jornais, das rádios e das televisões, ao contribuírem para um discurso de cidadania em tudo quanto é publicado sobre assuntos desta relevância…

sábado, dezembro 02, 2006

THE OTHER FINAL

Johan Kramer realizou «The Other Final», mas o projecto era do seu amigo Matthijs que, em 2002, ficou extremamente triste pelo facto de não ver a sua Holanda natal apurada para a fase final do Mundial de futebol no Japão. Resultou daí um projecto assaz curioso por permitir a exploração da ideia de exorcizar a derrota a partir da vivência dos mais habituados a com ela lidar. Ou seja, o confronto entre as duas selecções de futebol relegadas nos dois últimos lugares da Classificação oficial da FIFA: as pertencentes ao asiático Butão e à caribenha Montserrat.
O documentário apresenta ambos os países. Montserrat ainda tem bem presente uma irrupção vulcânica, que cobriu de cinzas o antigo estádio e parte significativa dos seus terrenos de cultivo. De entre os seus 150 praticantes de futebol amador o seu treinador deverá escolher os que se deslocarão a Tinfu. Por seu lado o pequeno país dos Himalaias só muito recentemente se abriu ao exterior, mas a sua monarquia continua a explicitar um discurso político algo singular ao preocupar-se com o PIB de felicidade do seu povo. Por agora tem 900 praticantes da modalidade, que estão longe de ombrear com as preferências dos compatriotas pelo críquete.
Embora se tente promover o desporto como a oportunidade de encontro de culturas, vêm ao de cima os piores indícios de quão assim não acontecerá: o treinador de Monserrat acaba por se demitir ao negar ao poder político a decisão de escolher os titulares da selecção, enquanto do outro lado existe a rápida contratação de um treinador profissional holandês tão só morre o antecessor no cargo.
As cautelas dos asiáticos têm alguma razão de ser: em anterior confronto internacional a sua selecção fora cilindrada pela do Koweit por 20-0.
Chega a semana do jogo, quando o campeonato do Japão já vai bastante avançado. As equipas treinam, embora os visitantes padeçam de uma intoxicação alimentar, que lhes prejudica a preparação.
Quem não falta à preparação são os apoiantes das duas equipas, todos butaneses, mas unidos no entusiasmo em gritarem por quem estão incumbidos de suportar.
No dia do jogo a notícia daquele encontro singular já apareceu nos jornais de todo o mundo, que não são muito simpáticos para qualificar as duas equipas. Mas o jogo tem em entusiasmo - às vezes demasiado exagerado - o que lhe falta em técnica futebolística. E o Butão ganha o seu primeiro encontro internacional por 4-0.
No rescaldo recupera-se algo do clima pretendido com a taça em disputa a ser partilhada e com a consagração de todos quantos tinham participado no jogo.
É altura de concluir o filme com as pessoas mais díspares a darem uns toques na bola, um singelo objecto de diversão que, provou-se, é capaz de criar cumplicidades além fronteiras...