quarta-feira, maio 31, 2017

(DIM) Esta noite na Costa da Caparica, a oportunidade de conversar com Cristina de Carvalho

Todos os meses a Associação Gandaia da Costa da Caparica tem uma sessão com um escritor a quem é solicitada a possibilidade de se desvendar aos leitores, apresentando-lhes os seus livros.
Nesta noite de quinta-feira a autora convidada pelo António Fonseca, o responsável por esta iniciativa, é Cristina de Carvalho, cuja obra vasta, vida bem preenchida e feitio generoso promete garantir um par e horas bem passadas. Como dizia o João Brites, encenador do Bando, a propósito da peça, que tem agora em cena no Teatro D.Maria II, existem experiências únicas logo inseríveis no nosso património vivencial. A minha expetativa é que a desta noite constitua uma dessas oportunidades.
Não dou particular importância ao facto de Cristina de Carvalho ser filha de relevantes escritores. A experiência ensina-nos, que o talento literário não se herda, cultiva-se. E ela assim o fez desde muito cedo, porque foi muito protegida na infância, só aos oito anos tendo convívio com outras crianças como ela. Até lá fez da solidão uma oportunidade para exercitar a imaginação, sobretudo no jardim em que se identificava com o lado mais encantatório da Natureza.
Em adulta o apaixonar-se enriqueceu-lhe o conhecimento depois espelhado na tradução das emoções em palavras. Numa entrevista ela confessava ter sido esse o melhor sentimento, que alguma vez experimentou: “Vertiginoso. A pessoa faz tudo. É uma coisa…! É pena ser tão rápido. Desfaz-se. A paixão está para o Homem como outros fenómenos intensos e breves estão para a natureza. É como a aurora boreal ou o trovão ou o relâmpago. Assim é a paixão. Intensa e ocasional.
A vida profissional possibilitou-lhe as viagens, a descoberta de outros espaços e de como neles ia encontrando as suas próprias singularidades.
A primeira vez que a li foi quando me chegou às mãos a estória de Elvis e de Agnetta, que iam de Kiruna a Estocolmo à procura dos mistérios do mar e maravilhar-se com o navio imponente, mandado construir pelo rei: esse «Vasa» que, na sua viagem inaugural, em 1628, afundou-se à vista de quantos o estavam a festejar em terra.
Depois desse «O Gato de Uppsala», li-lhe «Ana de Londres» e encontrei na protagonista uma gémea de uma colega de liceu, também ela levada a emigrar por razões políticas e amorosas, e vítima do egoísmo e irresponsabilidade de quem julgara ser o grande amor da sua vida.
Algo que me identifica com a escritora é a sedução por essa hora, que os francesas dizem ser entre cão e lobo e para a qual a língua portuguesa tem uma expressão lindíssima: o lusco fusco. Que também serviu de título a um dos seus livros. Aquele em que considera ser essa a altura para melhor vislumbrar o que nos rodeia: “Os contornos em que essa meia luz revela subtilezas. Algo que não se vê nem de dia nem de noite. Ou então, a aurora. Nada se vê bem nos extremos. A noite encobre e a luz cega. Essas transições são o melhor momento para vermos realmente. Daí ter dito isso. É uma convicção.”
Agora que a idade vai avançando é curiosa a sua maneira desprendida de se julgar menos sábia do que os mais jovens:  “No dia-a-dia um jovem se for interessado e atento, sabe mais do que uma pessoa de idade. Os mais velhos têm outro tipo de conhecimentos. Cautelas, avisos, perceções, intuições. Sabedoria de vida. Eu chamo-lhe cautelas.
Conhecimento é algo que aplicamos no quotidiano, o que conhecemos, o que aprendemos todos os dias e o que todos os dias vamos aclarando. A forma de o usar e de aplicar esse conhecimento é uma coisa diferente. São as tortuosidades que se aprendem com o envelhecimento.
A velhice é um truque. Aprendemos os truques da vida. E não seguimos por aqui ou por ali, porque já sabemos como é.”
Eu, igualmente sessentão, não sei se me atrevo a concordar com ela. Mantenho a esperança de ter no tal património vivencial, a que no início aludia, uma cultura que compense o quanto me sinto às vezes ultrapassado pelo acelerado desfile dos acontecimentos. Mas esse é um bom tema para logo colocar à discussão com quem compareça no Auditório do C. C. Pescador.
Decerto que essa é outras questões propiciarão um debate estimulante...

(DIM) «Scarface» a abrir um ciclo dedicado a Al Pacino

Na próxima quinta-feira, dia 1, inicia-se o ciclo dedicado a Al Pacino no Cineclube Gandaia. Muito polémico na época - a comunidade cubana de Miami protestou por causa da má imagem dela apresentada e houve quem muito criticasse a excessiva violência e linguagem -, é um filme  que vale a pena reavaliar.

Se há um episódio histórico que «Scarface» nos permite recordar foi o grande êxodo cubano para os EUA, quando a Administração de Jimmy Carter abriu as portas a todos quantos, em barcos e jangadas toscas, saíssem da praia de Mariel e atravessassem o braço de mar entre a ilha de Fidel e a Florida. Esperto, o líder de Havana decidiu abrir as portas das prisões onde estavam encarcerados os prisioneiros de delito comum e incentivou-os a juntarem-se à emigração. No total terão sido 25 mil os ladrões e traficantes a integrarem essa mole humana, que totalizou 125 mil pessoas.
O enquadramento político, e o quanto ele era fruto do ilusório sonho americano, começou a ser trabalhado pelo realizador Sidney Lumet, contratado pelo produtor Martin Bregman para a remake do filme homónimo de 1932, que se tornara numa das obras mais memoráveis de Howard Hawks.
Por essa altura Al Pacino apenas estava ligado à produção enquanto proponente da ideia, surgida quando vira o filme original num cinema de Los Angeles. Quem estaria pensado para o papel de mafioso seria Robert de Niro, que afinal se viu substituído antes de sequer ter oportunidade de o aceitar ou recusar.
Depressa compreendendo que a sua proposta mais politizada não era a que o produtor tinha em mente, Lumet afastou-se e foi substituído por Brian de Palma  e pelo argumentista Oliver Stone, então a contas com uma aguda toxicodependência em cocaína. Convenhamos que chegava-lhe às mãos uma encomenda sobre assunto do seu pleno conhecimento.
A estória foi, então desenvolvida em torno de um sem ninguém, Tony Montana, que chega a Miami sem um cêntimo e que, graças à falta de escrúpulos para matar quem quer que seja, conquanto lhe paguem o serviço, depressa conhece ascensão fulgurante. Tornar-se num dos homens de confiança do líder da máfia local é apenas mais um passo para o verdadeiro objetivo: chegar ao topo eliminando o momentâneo chefe. Tanto mais que ele é casado com a bela Elvira, que Tony exige venha a ser exclusivamente sua.
Num filme de excessos  - a começar pela própria interpretação de Al Pacino, toda ela num registo de overacting, que chega a ser risível! - a violência cedo atinge climaxes quase insuportáveis, nomeadamente na cena com a motosserra, que levou os escritores John Irving e Kurt Vonnegut a saírem da sala, escandalizados com a crueldade tão explicitamente mostrada. Mas não foram os únicos: a velha atriz Lucille Ball, que se fizera acompanhar da família, escandalizou-se com o vernáculo constante (são 226 as vezes que se ouve no filme a palavra começada por éfe!). O mais calmo dos espectadores nessa memorável sessão terá sido Dustin Hoffman, que confessou ter adormecido durante as quase três horas de duração do filme.
Tão-só chega ao topo, Tony inicia a rápida e abrupta queda: viciado no pó branco - que a câmara se deleita a mostrar! - torna-se paranoico, não confiando em ninguém. A relação com Elvira deteriora-se ao compreender que ela nunca lhe dará o desejado herdeiro, e a própria irmã - por quem nutre incestuosa atração! - exaspera-o levando-o a assassinar o seu próprio braço direito, que com ele viera de Cuba, por o ter encontrado na cama dela.  Só depois de descarregar-lhe as balas no corpo, fica a saber que Gina e Manny se haviam casado em segredo na véspera.
O final é o esperado, mas constitui porventura a sequência mais notável do filme, sabendo-se que Spielberg comparecera no local da rodagem para dar uma mão a DePalma nessa parte. E a cena do corpo a boiar na piscina fica por certo na nossa memória.
Amado por uns, odiado por outros, «Scarface» tem sido reavaliado mais positivamente à medida que os anos vão passando. Mas, Al Pacino, objeto do ciclo deste mês no Cineclube Gandaia, esteve longe de aqui mostrar o melhor do seu talento.

terça-feira, maio 30, 2017

(DL) A violência de que a Igreja Católica é capaz quando se julga com força para a disseminar

A simpatia por este Papa, que tem dado mostras de querer mudar alguma coisa na Igreja Católica para que tudo fique na mesma - e mesmo essas mudanças de pormenor são objeto de tanta contestação interna, nomeadamente do seu, em princípio, retirado antecessor! -, não nos podem distrair do essencial: sinta-se com força bastante para contrariar o que mais lhe desagrada na sociedade e é vê-la em intensa atividade política e social para impor os seus preconceitos e mundivisões, por muito anacrónicas que possam parecer.
Sabendo-se recatar, quando as circunstâncias lhe são adversas, e afiando as garras quando elas lhe correm a favor (vide o comportamento da Igreja polaca desde a queda do Muro de Berlim!), as instituições religiosas em geral - sobretudo dos credos monoteístas, mas não podemos igualmente esquecer os budistas do Myanmar nem os hindus do Sri Lanka - constituem um dos principais fatores de infelicidade dos povos e incendiários de múltiplas barbaridades.
Em 8 de janeiro de 1949, quando, no âmbito da pré-campanha presidencial de Norton de Matos, Tomás da Fonseca teceu fundamentadas reticências sobre a consistência do mito das aparições em Fátima, não imaginava o quão violentamente seria destratado.
A primeira carta publicada no jornal «República» intitulava-se «Palavras Calmas», que julgava benignas para os dois setores em breve divididos pela pugna eleitoral: “uns para manter o statu quo, outros, constituindo a grande maioria da Nação, no intuito de reconquistar direitos e regalias sociais, há tanto arrebatados por um regime despótico em que a Santa Sé ocupa o lugar de honra.”
Dois dias depois uma segunda carta deveria ter a mesma vida efémera conferida a meros artigos de jornais, mas logo se abririam as hostilidades no dia 11, iniciadas pelo órgão oficial do Patriarcado. Eis como Tomás da Fonseca relata o caso nas páginas de «Na Cova dos Leões» aonde juntaria as sucessivas cartas enviadas ao Cardeal Cerejeira a contestar essa súbita guerra religiosa:
“(…) V. Eminência, melhor do que eu, sabe que não é por actos de violência que se decidem lutas de pensamento. Se invoquei factos e razões, factos e razões deveriam ser alegados contra mim. Não quiseram, visto mandarem à frente 0 tal brigão, com a incumbência de abrir hostilidades com a elegância e nobreza testemunhadas nessas páginas, a que, ja agora, temos de o amarrar. Escreveu aquele, entre outras coisas:
«T. da F... Tem-se a impressão de que costuma disfarçar-se em peanha de S. Miguel... Mesmo já perto da cova, não se perdoa o não ter aprendido nada, nem sequer a mentir com certo decoro... Quem o havia de supor tão actualizado, por detrás daquelas venerandas barbas em que os rouxinóis fazem ninho?»
Referindo-se à segunda carta, que classifica de «insulto ignóbil à consciência católica de Portugal e aos padres que são padres», encontra nela coisas piores ainda, «por ser - diz ele - o ataque mais vil que eu vi, em minha vida, às coisas santas». E prossegue: «Quisera que todos os rapazes cristãos ou simplesmente portugueses lessem até ao fim o artigo... para verem até que ponto foi possível diminuir-se e enlamear-se uma inteligência cega pelo mais torvo dos ódios. Não quero transcrever o chorrilho de blasfémias com que o desgraçado plumitivo se refere à Mãe de Deus. Há baixezas em que uma pena digna não deve tocar. Passando além dos judeus, que crucificando o mestre, não atacaram directamente sua Santa Mãe, este escrito inconcebível é feito contra a própria Virgem Nossa Senhora. Atingem-se no insulto os milhões de portugueses que têm a mensagem de Fátima por alto milagre de Deus. Perante a triste realidade, é preciso que por esse Portugal fora, onde houver um português que traga no peito presente e vivo o Cristo Senhor, se levante de novo, bem alto, um brado de presença. De joelhos em terra, na atitude viril de quem só sabe dobrá-los diante de Deus, atiremos ao Céu nosso clamor vivo de desagravo e amor a Maria - Nossa Mãe. Gritemo-lo bem alto, a preço de tudo, do nosso trabalho e do nosso sangue, da nossa vida e da nossa morte.»
As palavras pouco cristãs do «Novidades», que incitavam a atuar com violência contra o herege, foram depois secundadas por padres de norte a sul do país, com todos os jornais regionais à mistura.
Para a Igreja Católica de então o horror seria o regresso a uma realidade marcada pelos valores republicanos que, durante a I República, a tinham acossado quanto à sua ação viperina. Valendo-se, pois, do respaldo da ditadura fascista, Cerejeira cuidava de eliminar tão lestamente quanto possível uma tradição com raízes no iluminismo pombalino e no laicismo do próprio regime liberal do século anterior, que cuidara de extinguir as ordens religiosas.
Tomás da Fonseca mais não fazia do que dar voz a todos quantos nunca tinham acreditado nos milagres de Fátima e os sabiam mera estratégia para arregimentar em torno do regime fascista os setores mais incultos da sociedade portuguesa. Daí que o seu livro de denúncia das patranhas em que assenta a narrativa cristã seja de enorme atualidade. É que, tal qual diz o povo, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e dois milénios sucessivos a alindá-la faz da teologia católica um corpo teórico sem qualquer sustentação científica.
As religiões justificaram-se enquanto a Ciência não explicava ou dava expetativas de responder às inquietações humanas dos milénios precedentes. Hoje elas são mero repositório de superstições, que só travam o rumo humano na direção do Conhecimento.

(S) Uma das mais belas árias da História da Ópera


segunda-feira, maio 29, 2017

(DIM) O Espectador Espantado desafiado por Edgar Pera

Já levo bastante mais de meio século como espectador espantado. A primeira vez terá sido, quando uma vizinha, a Eva, me levou ao cinema do Porto Brandão para ver a «Gata Borralheira». Eu, que me habituara a ver as imagens a preto e branco dos televisores acumulados na sala onde o meu pai as ia reparando, surpreendi-me com o gigantismo do ecrã e as cores exuberantes com que os estúdios da Disney encantavam os miúdos desse mundo do pós guerra.
Outro deslumbramento aconteceu com o Menino Selvagem do Truffaut visto no Estúdio 444 da Avenida Defensores de Chaves. Mais do que a história de Victor e do doutor Itard,  que o tratava de normalizar para os padrões da sociedade do início do século XIX, fiquei rendido à música de Vivaldi. Eu que andava embrenhado nas sonoridades dos Beatles, dos Doors ou dos Crosby, Stills, Nash & Young começava a despertar para a riqueza da música clássica.
Já a fogueira da Revolução de Abril se reduzira a cinzas fumegantes, quando passei por comprometedora vergonha na sala do Nimas. O filme era o «Nevoeiro» do John Carpenter, que julgava ver com o distanciamento próprio de quem sabe tudo tratar-se de uma efabulação para entretenimento de quem o via. E, no entanto, aconteceu a cena em que, do farol, a Adrienne Barbeau vê a própria casa a ficar envolta em nevoeiro e teme pela segurança do filho, que ali deixara entregue à avó. Batem à porta, a velha senhora abre-a, recua porque o neto lhe diz qualquer coisa e nós sabemos que uma das criaturas do Além dali surgirá para a matar. Entusiasmado, terei soltado um grito só contido porque, a minha mulher cuidou de me acotovelar trazendo-me de volta à sala do cinema.
Se tenho por norma ver todos os genéricos até ao fim, dessa vez, e por razão maior, deixei-me ficar na sala escura até ao fim enquanto toda a gente saía. Manifestamente não queria ser apontado a dedo como o tipo que se entusiasmara demasiado com quanto vira no ecrã...
E, no entanto, três anos antes, olhara com complacente superioridade para um fogueiro que comigo trabalhava a bordo do navio »Gerês», quando, uma noite, fomos ao cinema de Matosinhos onde se exibia «A Guerra das Estrelas», então acabado de estrear. Na altura éramos uns quatro ou cinco tripulantes da Casa das Máquinas, que desistimos de tentar refrear o Gaspar (era assim que se chamava) de ir acompanhando o filme com expressões entusiasmadas do género «olha o gajo atrás de ti!», «tem cuidado que eles podem estar atrás da porta!», etc.
Estava aqui demonstrada a diferença entre cinéfilo e fã de cinema, tal qual o Edgar Pêra equaciona num dos seus filmes de 2016: exatamente «O Espectador Espantado». No filme do Carpenter eu fora o fã, que saíra da cadeira e entrara a pés juntos na estória revelada na tela, enquanto no do Lucas posicionara-me como cinéfilo a arrogar-me de atitude majestática para com os tontos, que viviam na trama como se nela participassem.
A proposta cinematográfica de Edgar Pêra é notável como quase sempre: visualmente atrativa com sobreposição de imagens num ritmo acelerado, que não exclui o slow motion e com uma sucessiva formulação de dúvidas e de convicções sobre o ato de ver um filme. Algo que nos inquieta, maravilha, assusta, informa, comove e sei lá que tantas outras emoções nos suscita. Mas também algo - e esse é dos poucos aspetos de que o filme passa ao lado - que nos pode condicionar para sermos diferentes de quem ambicionamos ser, porque dificilmente escapamos às mensagens subliminares e aos valores contrários aos nossos interesses de classe, que os produtores pretendem inculcar.
O que muito me agrada em Edgar Pêra como autor é o tratar-nos como pessoas inteligentes dispostas a sabotar-nos os cânones cristalizados, desafiando-nos para equacionarmos modelos de análise da realidade completamente distintos dos mais vulgarmente utilizados.

(DL) Os inquisidores e os seus embustes

Quem primeiro me falou de «Na Cova dos Leões» foi Reinaldo Ribeiro, amigo com quem partilho os mesmos valores de esquerda e idêntico distanciamento em relação ao fenómeno religioso.
Depois compareci a uma apresentação de «O Sol Bailou ao Meio-Dia», imprescindível ensaio do Prof. Luís Filipe Torgal sobre as «aparições» de Fátima e a obra do escritor Tomás da Fonseca voltou a vir a lume por quem se revelou seu atento estudioso.
Não precisava de mais estímulos para meter pés a caminho e ir à procura do livro de um autor, que até então só conhecia de nome como prestigiado republicano em duradouro conflito com o regime salazarista.
Era ele já um septuagenário de emblemáticas barbas brancas, quando lhe calhou a tarefa de publicar alguns artigos no jornal «República» no âmbito da pré-campanha do general Norton de Matos. Recordemos que, nesse ano de 1949, a memória coletiva ainda conservava a celebração entusiástica dos portugueses pela vitória aliada na Segunda Guerra Mundial para desgosto de Salazar, que até impusera luto de três dias pela morte de Hitler.
A Oposição não teria grandes ilusões quanto à equidade do pleito eleitoral, tanto  mais que, depois de tremer com essa derrota dos principais regimes fascistas europeus, logo Salazar se vira confortado pelo regime de Truman já empenhado em assanhada campanha anticomunista. Ainda assim Tomás da Fonseca não imaginaria a reação ao seu artigo em que punha em causa a veracidade do que se passara três décadas antes com os três pastorinhos da Cova da Iria.
À distância de quase sete décadas não nos é fácil conjeturar o quão imenso voltara a ser o poder da Igreja Católica nessa época, apesar dos esforços da I República para lhe conter as potencialidades tóxicas. O próprio Tomás da Fonseca esforçara-se por cercear a peçonha católica, quer enquanto chefe de gabinete de Teófilo Braga no governo provisório nomeado logo a 5 de outubro e, depois, como deputado e senador do Partido Democrático liderado por Afonso Costa.
Perante o texto de Tomás da Fonseca o cardeal Cerejeira lança o ataque a partir do seu jornal oficial ««Novidades«, que logo é secundado por quase toda a imprensa regional.  Em várias cidades organizam-se manifestações de desagravo da reputação da Virgem Maria, supostamente ultrajada pelo antigo caça-frades.
Do recato da sua quinta o escritor decide confrontar Cerejeira com a sua campanha, confrontando-o com os valores cristãos, de súbito distorcidos na sua campanha inquisitorial, aproveitando para, em sucessivas cartas, demonstrar como toda a religião católica, incluindo o seu culto mariano, assenta em fundamentos falsos, desmentidos por documentos históricos, que conseguiram escapar aos sucessivos autos-de-fé lançados pelo clero ao longo dos séculos para eliminar todas as provas  que desmascarassem o acervo de mentiras em que baseavam a sua fé.
Foram essas cartas, que Tomás da Fonseca viria a organizar e a publicar em 1958 na forma deste livro dedicado a Artur Oliveira Santos, administrador do Concelho de Vila Nova de Ourém à época dos acontecimentos de 1917 e que “muito se esforçou para evitar o embuste de Fátima, que a Igreja continua perfilhando e explorando com a repulsa dos cristãos verdadeiros.”
Será preciso dar mais explicações quanto ao agrado que a leitura deste livro me está a facultar?

(S) Ney Matogrosso - Demarcação Já!

(DIM) Cinema militante ou de denúncia

1. «A Fábrica do Nada», filme de Pedro Pinho, foi recompensado com um dos prémios de prestígio do Festival de Cannes dando notoriedade a uma proposta ficcional alicerçada no real. Uma vez mais fica comprovada a eficácia dos filmes, que inserem uma vertente documental na sua ficção, ou enriquecem os documentários com estórias de permeio.
Na origem do projeto estava uma peça de Judith Herzberg em que os operários de uma fábrica abandonada pelos patrões criavam uma nova mercadoria de sucesso, o Nada.
Pedro Pinho instalou a sua equipa numa fábrica de elevadores à beira da falência e aliciou para o seu projeto alguns operários bastante identificados com a realidade a explorar: a necessidade de impedirem as máquinas de desaparecerem a meio da noite e a ponderação quanto à possibilidade de prosseguirem a atividade produtiva numa lógica de autogestão.
Numa recente entrevista ao «Expresso», o realizador considerou falidos ou desacreditados todos os discursos militantes. Mas “ao mesmo tempo damo-nos conta de que a realidade não mudou assim tanto, até pelo contrário: tornou-se mais agressiva”.
O sucesso previsível deste «A Fábrica do Nada», apesar das três horas de duração, e o de «Eu, Daniel Blake», alguns meses atrás, tornam questionável esse suposto esgotamento dos filmes com características ideológicas mais evidentes.
Talvez não seja fácil alcançar financiamentos para que eles se produzam, mas muitos potenciais espectadores aguardam por imagens sintonizadas com as suas inquietações e com as possíveis respostas para as verem aquietadas.
Quem declarou morto e enterrado o cinema militante, estava a pecar por claro exagero.
2. Em 2011 a cidade de Jacksonville, na Flórida, despertou para uma história horrenda: Cristian, um miúdo de 12 anos, aproveitara a ausência da mãe, para agredir violentamente o irmão de dois anos, causando-lhe múltiplas fraturas cranianas, que se viriam a revelar fatais após algumas horas em estado crítico no hospital.
As primeiras imagens do documentário «Juvenile Lifers» mostram uma detetive a forçar uma rápida confissão de culpa do miúdo, que seria aproveitada pela procuradora-geral Angela Corey para garantir a pronta condenação a prisão perpétua. E, nas suas palavras, fica implícita a pena por não levar a punição até à execução, porque disso foi impedida pela jurisprudência do Supremo Tribunal, que impede tal exagero nos casos com menores.
O escândalo foi tal, que uma conceituada firma de advogados tomou em mãos a defesa pro bono do réu, pondo em causa as circunstâncias em que o crime ocorrera. Ficamos, assim a saber que a mãe engravidara dele aos doze anos como resultado de uma violação. Que o padrasto costumava agredi-lo frequentemente como constatavam os colegas da escola onde aparecia com as marcas dessa violência. Mas o aspeto mais perturbante do documentário aparece quase no final, quando o sabemos condenado a sete anos de prisão depois de um acordo entre a defesa e a acusação para alterar a acusação para homicídio involuntário: na realidade ele teria encoberto a verdadeira autora do homicídio, a mãe, que num ataque de fúria, agredira a vítima e depois se declarara ausente do local onde tudo ocorrera.
Para além de pôr em causa a investigação, que pode condenar crianças inocentes a penas abjetas, fica em causa a «Justiça» de um Estado onde todos os programas de reeducação e reabilitação de delinquentes foram extintos e passou a vigorar um sistema apostado na punição. Independentemente de se ter ou não a certeza de a ver incidir sobre os verdadeiros culpados.
Cristian Fernandez só para o ano será liberto, mas não se pode adivinhar o que este longo encarceramento terá causado na sua personalidade.

domingo, maio 28, 2017

(DIM) Entre Brando e Nuno Lopes

1. 1967 foi o ano do assassinato de Che Guevara. Morria com ele toda uma mística romântica relacionada com as revoluções comunistas, que ora se tornavam mumificadas na URSS, ora ganhavam ímpetos virulentamente homicidas na China, sob a designação da Grande Revolução Cultural.
No Vietname os norte-americanos estavam a atolar-se e o desaire na Apollo 1 tornava quase utópica a intenção de Kennedy em concretizar a supremacia  no espaço, com a alunagem antes da passagem para a década seguinte.
As lutas pelos direitos civis e a implantação da ditadura fascista na Grécia constituíam direções opostas de uma História, que se agudizava sobretudo no Médio Oriente com os israelitas a apossaram-se de um território várias vezes maior do que lhes caberia por direito à luz das disposições das Nações Unidas.
É sobre essa Terra em Transe, que a Cinemateca promove em junho um ciclo sobre o cinema desse ano. Uma forma aliciante de recordarmos ou nos informarmos sobre os valores e as estéticas de há meio século.
Para iniciar a proposta propõem-se esta semana dois filmes, que merecem ser vistos e revistos: «A Condessa de Hong King» de Charles Chaplin e «Reflexos num Olho Dourado» de John Huston.
Marlon Brando, Sophia Loren e Tippi Hedren protagonizam o título com que o criador de Charlot se despediu da sétima arte através de uma sátira à política norte-americana, que o forçara a exilar-se na Europa. Embora um político se enamore de uma condessa russa, que encontra como passageira clandestina no camarote do paquete em que regressa a casa, tudo volta à normalidade conjugal, quando reencontra a legítima esposa a aguardá-lo no cais da chegada.
Brando também entra no filme de Huston e veste a farda de um militar, que descobre tardiamente a homossexualidade, para grande sofrimento da esposa (Elizabeth Taylor), que não consegue compreender como ele a pode preterir de forma tão ostensiva. Porventura nunca o ator representou tão de acordo com as lições aprendidas no Actor’s Studio de Lee Strasberg.
Há quem muito aprecie e também quem deteste. O que afinal é um bom argumento para justificar a chamada de atenção para o que acaba por ser um miniciclo Brando.
2.«São Jorge» está a ter um sucesso estimável nos ecrãs franceses. O que é merecido, porque é inolvidável a interpretação de Nuno Lopes na pele de um cobrador de dívidas, que tem ética a mais para cumprir o que dele se espera.
Numa entrevista a Luís Caetano o ator recorda o quão o impressionara aquele dia em que o habitante do Bairro da Bela Vista com que se inteirava das especificidades do tipo de personagem a interpretar, o despediu, porque já estivera tempo demais com ele e tinha de ir apanhar lixo para conseguir comer alguma coisa (umas sandes de fiambre) nesse dia. Mas também como, entre os mais miseráveis, vigora um racismo latente entre etnias, que podem partilhar o espaço, mas se revelam díspares nos valores e cultura.  Não é, assim de estranhar, que tendo-se perdido a ligação de tais estratos às forças comunistas, tenham passado a aderir às mensagens políticas mais simplistas, por lhes contarem histórias aparentemente justificativas do fosso em que se sentem afogar. As votações no Brexit ou em Trump encontram aqui uma explicação sem grandes fundamentos que a contradigam.
3. Na mesma entrevista, o realizador Marco Martins diz algo bastante curioso: os americanos gostam imenso de mostrar dinheiro nos filmes. Trata-se de momento quase obrigatório num certo tipo de filmes a mala a transbordar de notas ou os cofres, que se abrem para revelar incontáveis riquezas. Mas que esperar de um tipo de cinema que, segundo Godard, só precisa de uma miúda e de uma arma?