sábado, outubro 31, 2009

Confissão de um leitor de Stephen King

«Um Bruto muito Feio», assim se chama a novela de Stephen King, que comecei agora a ler.
Sim, eu sei, que se trata de literatura light, daquela que nunca ganhará prémios literários e muito menos será sequer equacionada pelo júri do Nobel. Mas confesso a minha fraqueza: gosto mesmo muito de ler este autor de histórias sobrenaturais, eu que como ateu racionalista ponho tais manifestações no campo da mera inverosimilhança.
Mas o que mais me atrai no universo de King não é a fundamentação realista das suas histórias, mas sim a forma como ele as torna extremamente atractivas para o leitor.
Partindo de uma tese de partida  - neste caso um miúdo de dez anos tira polaróides aonde se vêem imagens de outro lugar e/ou de outro tempo - que não se enquadra num código credível de referências, ele irá envolver-nos numa sucessão de cenas competentemente orientadas para um clímax aonde a própria sobrevivência fica em causa. E é nessas páginas, que os olhos saltam linhas e buscam resposta para um desiderato que - justiça seja feita ao autor - quase nunca corresponde a um apaziguador happy end.
Mas, no caso desta novela, ainda estou no seu arranque...

domingo, outubro 25, 2009

A literatura como sonhar pela mão dos outros

Se, conforme diz Fernando Pessoa, ler também é sonhar pela mão dos outros, o livro de Rui Cardoso Martins satisfaz perfeitamente esse pressuposto.
O que fazemos, quando sonhamos?
Se aceitarmos a lógica freudiana, exacerbamos os nosso receios e inquietações, procurando para eles a adequada catarse. Ora «Deixem Passar o Homem Invisível» encontra clara correspondência num dos mais estereotipados pesadelos infantis: aqueles em que nos víamos cingidos num espaço para onde nos pretendíamos ir esconder e de onde já não conseguimos sair.
Um pesadelo, que encontra paralelo em adultos, quando vemos por exemplo as imagens televisivas de gente soterrada sob efeito de terramotos ou de deslizamentos de terras. Nessas alturas soa em nós a campainha de alarme do mais claustrofóbico dos terrores íntimos.
A leitura satisfaz, pois, a necessidade catártica de vermos realizados os sonhos mais inacessíveis ou de nos livrarmos dos terrores por que nunca quereremos passar.
Num sentido ou no outro, a literatura de viagens ou os romances de Stephen King são exemplos lapidares de uma escrita orientada, não só para o entretenimento de quem a lê, mas sobretudo para dar asas às ambições e aos medos colectivos, mesmo que vividos individualmente.
E a literatura também é isso!

Deixem Passar o Homem Invisível

Quando duas personagens convergem para um mesmo espaço e se tornam cúmplices nas mesmas vivências a partir de um ponto inicial, que era o de nem sequer se conhecerem até aí, o natural será surgirem muitas histórias passadas, seja com eles mesmos, seja do espaço aonde estão cingidos.
É essa a lógica de «Deixem Passar o Homem Invisível», romance de Rui Cardoso Martins em que temos um advogado cego e um escuteiro de oito anos a atravessarem meia Lisboa debaixo do chão depois de serem arrastados por uma enxurrada para um dos caneiros da cidade.
Cá em cima afadigam-se outros personagens, uns por ofício (os bombeiros, uma arqueóloga), outros por conhecerem os desaparecidos (a mulher do cego, a mãe do miúdo e um mágico chamado Serip) e o que vai sobressaindo é uma análise bastante crítica a uma sociedade aonde as obras de manutenção dos espaços públicos não se fazem a tempo e os desastres, quando sucedem, nunca são devidamente ressarcidos nos respectivos prejuízos porque o conceito de justiça passa sempre por minimizar os custos do Estado.
Sem constituir prosa memorável, o romance do jornalista das Produções Fictícias, está muito bem escrito, revela uma apreciável erudição quanto à história da cidade e a viagem de António e de João desde S. Sebastião da Pedreira até ao rio lê-se com agrado e expectativa.
Literatura também é esta arte de contar boas histórias

terça-feira, outubro 20, 2009

Defender os animais

Pode parecer que a legislação recentemente publicada no sentido de defender os direitos dos animais em circos ou na posse de privados possa parecer demasiado fundamentalista. Moralista até. Mas que ela vai no sentido de uma tendência histórica da relação do Homem com a Natureza, que o rodeia, não sobram dúvidas.
É à medida que vai sentindo apertar-se a estreita via entre a sua sobrevivência enquanto espécie e a sua definitiva extinção, que esse Homem colectivo vai ganhando consciência da necessidade de se livrar da postura de predador irracional e perspectivar a forma de se entender parte de um mundo aonde a sustentabilidade é requisito de futuro.
A progressiva noção de se defenderem os direitos dos animais decorre dessa evolução conceptual sobre a sua posição no seio do planeta: já não como protagonista, mas como personagem acessório.
Quando surgem as catástrofes sob a forma de terramotos, furacões ou erupções vulcânicas, o Homem tem consciência súbita da sua pequenez perante a vontade indómita dessa Natureza, que costuma menosprezar. Mas é ao sentir-se nessa menoridade, que poderá olhar à volta e respeitar a tal diferença, que tanto execram os tais moralistas. Os tais para quem os sentimentos de um cão ou de um gato não se podem equivaler aos de uma pessoa.  E por isso os abandonam nas auto-estradas, quando partem para férias.
Se a Ocidente já começa a ser consensual a necessidade de se preservarem baleias e golfinhos, de se acabar com o genocídio anual das focas canadianas ou de se proibirem em definitivo as touradas, ainda resta um longo caminho por cumprir até se chegar à última das consequências: a de julgarmos indecoroso o consumo de carnes e peixes de cujo martírio nos alheamos, quando os vemos cozinhados no prato. Mas que a tendência civilizacional aponta para um futuro macrobiótico a nível alimentar não restam grandes dúvidas.
Resta que a Oriente, particularmente na China e no Japão, esse atraso civilizacional é ainda maior. Mas torna-se clara a capacidade de imitação das modas deste Hemisfério, que ali são prontamente replicadas como sendo as adequadas. Por isso se a Europa se tornar paladina desses direitos depressa os verá adoptados noutras latitudes.
Em questões civilizacionais não há que temer a condição de pioneiro!
Como escreve Leonel Moura no «Jornal de Negócios» a questão dos direitos dos animais é matéria de civilização humana. À medida que as sociedades evoluem tende a aumentar a consciência da devastação e sofrimento que a acção do homem provoca nas restantes espécies que connosco partilham o planeta. Essa evolução é lenta, mas inexorável.

domingo, outubro 18, 2009

A TECTÓNICA DOS SENTIMENTOS

Serão as relações humanas equiparáveis aos fenómenos ocorridos nas placas tectónicas?

Eric-Emmanuel Schmitt pensa que sim: a tal ponto que intitulou «A Tectónica dos Sentimentos» à peça que levou à cena no Théatre Marigny em Janeiro de 2007 e publicada em livro no ano seguinte.
O que está em causa é o substrato vulcânico das nossas emoções, quando vivemos o sentimento amoroso. Umas vezes as duas placas justapostas vão coexistindo harmoniosamente, roçando uma na outra, deslocando-se a par sem causar problemas à volta. Mas, quando uma se quer sobrepor à outra, quantos cataclismos podem surgir! Terramotos, tsunamis, erupções de magma e outras consequências dramáticas, que tudo põe em causa.
O orgulho dos dois amantes é fundamento relevante para tais perturbações. Assim o demonstram Diane e Richard, os protagonistas da peça. Ela é deputada com reconhecido trabalho na tentativa de resgatar prostitutas da espiral de violência em que se deixaram enredar. Ele um milionário com tempo excessivo para se dedicar aos afectos que, aparentemente, o acabam por enfadar.
Durante uns anos ele assediara-a com propostas de casamento, que ela sempre rejeitara. É agora, quando está disposta a aceitá-lo, que Diane dá um passo em falso: testa-o na convicção dos seus afectos, dizendo-se cada vez mais esfriada a seu respeito e questionando-o se não sente o mesmo.
Em vez de o ver negar essa possibilidade, Diane tem a desagradável surpresa de o ver corroborar esse esfriamento da relação e a propor-lhe a ruptura imediata.
O despeito de uma mulher traída nas suas expectativas tem nela um exemplo lapidar de como só na vingança se poderá compensar. E vemo-la, então, convidar duas prostitutas romenas, Rodica e Elina a prestarem-se a uma missão humanitária: Richard estaria com um cancro em fase terminal e seria desejável proporcionar-lhe uma despedida em grande. Para isso Rodica faria de mãe da bela Elina e esta passaria por uma jovem estudante chegada a Paris para frequentar a Faculdade e ainda completamente desconhecedora dos meandros do amor.
Começa então um jogo do gato e do rato, com Diane a manipular as duas mulheres como se fossem marionetas e Richard a desesperar de nunca chegar a vias de facto com a desejada, mas inacessível Elina. Até que, como única alternativa, Richard decide desposar a rapariga.
É o tão esperado momento da vingança: Diane divulga o passado de Elina, expondo o ex-amante ao ridículo na influente sociedade parisiense.
O feitiço voltará, porém, a virar-se contra o feiticeiro: ao saber de todas as maquinações de Diane, Richard perdoa a Elina a quem aprendera a amar profundamente e acaba por revelar à ex-amante como ele próprio sofrera ao prestar-se ao papel de desinteressado no dia em que ela o testara e assumira um papel então impensável: é que, na época, ele amava-a mais intensamente do que ela julgara.
A peça acaba por ser ligeira, com laivos de comédia à Feydeau, particularmente no recurso aos equívocos de julgamento, mas não deixa de ser muito séria quando demonstra o perigo da desconfiança, quando o Amor deverá significar precisamente uma enorme aposta no seu lado exclusivamente positivo.

sábado, outubro 03, 2009

Ontem na Gulbenkian: Anne Sophie von Otter e as canções de Terezin

Começando na sobriedade da sua postura e prosseguindo no fio condutor do alinhamento do que ali vimos, o que estava em causa era a homenagem às vítimas do campo de concentração de Terezin, recordado como a montra organizada pelos nazis para iludir alguns incautos sobre a dimensão do seu crime fazendo crer que as pessoas a quem se tinham retirado todos os direitos ainda podiam aí praticar diversas expressões da sua criatividade artística.

Em trânsito entre as suas casas e o definitivo local de martírio, uns quantos artistas apeavam-se em Terezin, traduziam em poesia ou música o seu profundo terror e seguiam caminho em direcção às câmaras de gás.
Filha de um diplomata, que não conseguiu divulgar as suas suspeitas nessa altura, Anne Sophie homenageia todas essas vítimas com sonoridades ora soturnas, ora cândidas, que expressam a memória de um tempo, que nunca deveria ter assistido a tais horrores, mas de que nunca se retiveram as devidas lições. Como o demonstram os massacres, que se vão sucedendo um pouco por todo o mundo. Como sucedeu esta semana na Guiné-Conacri...

O FINALE DA SINFONIA «LONDRES» DE HAYDN

Em 1795 Joseph Haydn está em vias de deixar Londres, pondo termo àquele que viria a considerar o período mais feliz da sua vida. As doze sinfonias aí compostas serão determinantes para lhe associar o prestígio, que a sua posterior transição para a Alemanha se limitará a confirmar.
É nesse mesmo ano, que compõe a Sinfonia nº 104, também conhecido pela «Sinfonia Londres».
Perpassam por ela os ecos do intenso vendaval, que percorria a Europa de então, com a Revolução Francesa a pôr em causa toda a estrutura política e social do continente.
Ao ouvi-la nos seus diversos andamentos vale a pena ter em conta tal contexto para melhor compreendermos melhor o que subjaz a tais sonoridades.
Mas o que dela melhor se recorda é o seu último andamento, que parte de um pregão muito conhecido na época nas margens do Tamisa e é desenvolvido de uma forma facilmente dada à cantarolice.
Esse andamento é o melhor exemplo de uma conotação muito inteligente dos métodos de composição de Haydn com o ambiente popular em que se pretendia inserir. É essa associação, que facilitará o sucesso das suas obras, porquanto estabelecedoras de pontes comunicativas muito eficazes com o seu público de então.