terça-feira, setembro 29, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Feitio de poeta

Ruy Belo foi um dos grandes poetas da segunda metade do século XX português., razão mais do que bastante para alguns militantes esforçados da sua escrita organizarem eventos destinados a não deixá-lo cair no esquecimento. Como o que ontem decorreu no cinema Medeia Monumental e onde foi lido, entre outros, o poema por ele dedicado à impressiva protagonista de «Esplendor na Relva»:

“Eu sei que deanie loomis não existe/
mas entre as mais essa mulher caminha/
e a sua evolução segue uma linha/
que à imaginação pura resiste”.
E houve também lugar a recordações sobre o seu feitio muito singular. Como a situação testemunhada por Luís Miguel Cintra em 1966, quando tinha 17 anos: no dia do casamento com Teresa, em Vila do Conde “faltou à hora do casamento e alguém disse que se calhar se tinha distraído e ainda estava na pensão. O meu pai foi procurá-lo e lá estava ele: era fim de tarde e distraiu-se a ver o pôr do sol”.
Mas “o mais engraçado”, acrescenta o ator, é que “eram tão ingénuos, tão puros, que não tinham combinado onde iam passar a lua-de-mel, não sabiam o que iam fazer a seguir, e foi o meu pai que os meteu no carro, depois do copo-d’água, à procura de um sítio simpático onde os deixar”. Que foi em Espinho...

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Francamente não há paciência!

Se há coisas, que me tiram do sério e alimentam a  capacidade em me indignar é a tendência da maioria da população para, nos seus gostos culturais, preferir os produtos indigentes às criações sérias e inteligentes.
Execro tudo o que é pimba, desde a música dos tonis aos filmes dos leonéis, sem esquecer a boçalidade das produções televisivas destinadas ao “entretenimento” das massas.
O estado a que chegámos, com a quantidade de pessoas a proferirem alarvidades sobre os «políticos», sem sequer entenderem o seu papel na preservação dos que só lá estão para os  tramar, tem muito a ver com as canções românticas destinadas aos corações piegas ou as recriações das comédias cinematográficas do Estado Novo, fabricadas sob a supervisão de António Ferro e António Lopes Ribeiro para manterem firme a cadeira do botas de Santa Comba Dão.
É infame que essa coisa indigesta chamada «Pátio das Cantigas» tenha centenas de milhares de espectadores e «As Mil e uma Noites» de Miguel Gomes pene para conseguir umas dezenas.
Provavelmente será preciso que aconteça algo de semelhante a Saramago - um estrondoso reconhecimento internacional - para que mais uns quanto se arrisquem a pôr as meninges a trabalhar perante filmes demasiado desafiantes para a preguiça neles alimentada pelas imagens quotidianas impingidas pelas televisões.
E que Vhils tenha conseguido criar a primeira instalação espacial para o novo filme de Miguel Gonçalves Mendes, acentuando o prestigio crescente de ambos na cena internacional, pouca atenção merecerá, quando a tudo se sobrepõem os inquéritos e subsequentes discussões que um qualquer rui santos vai apresentando a respeito de uns fulanos ocupados aos fins-e-de-semana em andarem atrás de uma bola de um lado par ao outro durante hora e meia. Francamente não há paciência... 

segunda-feira, setembro 28, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: A nostalgia da família perdida

Na Revista do «Público» deste domingo a jornalista Anabela Mota Ribeiro entrevista uma senhora de 78 anos, que acaba de publicar o seu livro de memórias: «Árvore com Asas, Passarinho com Raízes».
Quando lemos testemunhos de pessoas, que sentiram na pele a ameaça nazi, preparamo-nos para o pior. Felizmente Eva Raimann Cabral - é assim que ela se chama - não conheceu uma tragédia pessoal muito dolorosa, mesmo perdendo trinta e três familiares do ramo paterno nos campos de concentração.
O momento decisivo foi quando, na sequência do Anschluss, o pai foi despedido da empresa farmacêutica onde tinha uma vida profissional estabilizada, devido às origens judaicas, cujos ritos religiosos nem sequer cumpria.
Através da Holanda, a família embarcou para a América do Sul, radicando-se em La Paz durante uns anos, até a violência política os pressionar a mudarem-se para Fortaleza, no Brasil.
Por essa altura já a família Raimann se tinha disseminado por mais de doze países, sem pensar em regressar a Viena, que em nada correspondia à vibrante cidade anterior a 1938.
Casando-se com um português, que lhe deu o apelido Cabral, Eva tem sentido a vontade de restabelecer as memórias familiares como forma de as transmitir aos netos em quem sente a curiosidade pelos que os antecederam na árvore genealógica.
O livro não espelhará, pois, grandes emoções por muito que as dificuldades de adaptação tenham sido significativas, sobretudo na chegada à capital andina, onde desconheciam inteiramente a língua, a cultura e o clima. Mas constitui um verdadeiro manifesto de amor de Eva pelos antepassados e por aqueles que virão!

domingo, setembro 27, 2015

SONORIDADES: «A Criação» de Haydn numa versão dirigida por Marc Minkowski

Em 19 de março de 1799 estreou-se em Viena a oratória «A Criação», que Haydn já apresentara para convidados do seu mecenas no ano anterior.
Na época, o compositor já contava 67 anos e era reconhecido por toda a Europa como o mais talentoso do seu tempo, graças às suas sinfonias, quartetos para cordas e sonatas. Singularmente, ele que era um fervoroso católico nunca dedicara prioritariamente a atenção às obras sacras. Criara algumas missas e umas peças menores, mas só esporadicamente, e por encomenda, acedera a compor as «Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz», em 1785.
No entanto a experiência de assistir ao «Messias» de Haendel na Abadia de Westminster em 1791, estimulara-lhe a vontade em arriscar uma oratória de fôlego, mais ambiciosa do que «Il Ritorno di Tobia», que compusera em 1775.
Recorreu para tal a um libreto em inglês, que fora escrito para Haendel sem ter sido utilizado. Esse texto sofreria grandes alterações pelo seu colaborador Gottfried van Swieten ao vertê-lo para alemão, que passou a ser a versão mais canónica da peça.
É que a retradução para inglês não teve a qualidade da original e é normalmente preterida, quando se trata de a interpretar nas grandes salas de concerto... 

sábado, setembro 26, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Compreender o que põe em causa o futuro da classe média

Em «Le monde est clos et le désir infini» o economista francês Daniel Cohen demonstra que a evolução dos anos mais recentes tem ameaçado o futuro da classe média. Ela que tinha emergido da sociedade industrial para se afirmar nos empregos do setor terciário, viu estes postos em causa pela revolução digital. E, no setor público, ela havia sido o pilar do Estado-Providência até ser submetida aos requisitos da redução de custos associáveis ao que alguns designaram como «gorduras».
Hoje esse esmagamento da classe média ameaça os fundamentos da sociedade democrática. Porque cava-se o fosso entre os que as tecnologias condenaram ao desemprego e os que delas tiraram proveito.
É por isso que, hoje em dia, ser de Esquerda significa apostar na construção de um novo Estado-Providência capaz de devolver aos cidadãos a anterior sensação de segurança face ao futuro.
O antigo Estado-Providência herdado da Revolução Industrial já não se adequa aos nossos dias.
A nossa contemporaneidade passou por três momentos-chave, que importa compreender: o primeiro foi a da transformação financeira dos inícios dos anos 80, quando se desmantelaram as empresas industriais, assentes nos modelos taylorianos, em nome de critérios de rentabilização dos investimentos.
Foi a  época em que grandes grupos económicos se desmembraram para só restarem as empresas neles passíveis de garantir dividendos substanciais aos acionistas.
Depois, no início dos anos 90, surgiu a revolução digital, que veio transformar a forma de encarar a organização do trabalho no setor terciário. A consequente redução de postos de trabalho conduziu a um desemprego estrutural, que continua a ser o principal problema dos nossos dias.
A globalização, que surge a partir da segunda metade dos anos 90 e com maior impacto já neste século, é um fenómeno mais tardio. O papel preponderante assumido pela China nas trocas mercantis internacionais é tão espetacular quanto recente.
Pensar que a globalização é a origem de todos os nossos problemas é um erro: a destruição de empregos na indústria é em 2/3 dos casos devida à evolução tecnológica e só 1/3 é explicada pelas importações. Para o conjunto da economia essa proporção ainda se revela bem menor.
Daniel Cohen é taxativo: a China pouca importância tem na ameaça ao futuro da classe média. É por isso que a sua proposta assenta em transitar do primado da quantidade industrial para o da qualidade pós-industrial à luz dos ideais iluministas, que têm sido consecutivamente postos de lado.
No fundo há teorias, que atualizadas à luz da evolução dos novos meios de produção, voltam a ganhar pertinência. E o marxismo é decerto uma das mais prometedoras de entre elas...

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: os labirintos do Amor

Gaspar Noé costuma assinar filmes provocadores e com atmosferas glaucas. O seu novo título, «Love», segue a regra, que também contempla a da inocuidade dos seus temas.
Murphy é o protagonista do filme. No primeiro dia do ano acordara na companhia da vizinha e do respetivo filho, enquanto lhe chegava a mensagem da mãe da antiga companheira, Electra, a comunicar-lhe o seu desaparecimento.
Tomando o ópio deixado pela antiga amante mergulha, então, nas recordações do tumultuoso passado: o dia em que Omi lhe afiançara a gravidez causada pelo preservativo danificado com que a possuíra. Ou o ménage  a três, que vivera com as duas mulheres. Ou as esperanças em vir a expor as suas obras na galeria de um antigo amante de Electra.
Vivera, pois, um passado marcado pelo adultério permanente e mutuamente consentido entre si e Electra. Nada de estranho na geração a que pertence e em que o objetivo sempre foi o de fazer da vida uma festa permanente. Mesmo que, mais tarde ou mais cedo, acabe por desembocar em labirintos sem saída... 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Magia ao Luar

Os críticos costumam minimizar os filmes mais recentes de Woody Allen considerando-os preguiçosos e motivados pelas necessidades egocêntricas do realizador.
Ao ver «Magia ao Luar» só tenho de discordar de um crescente preconceito, que se vai manifestando a seu respeito, se bem que, eu próprio, prefira a fase criativa em que assinava títulos como «Manhattan», «Radio Days» ou «Zelig».
Se me pusessem na contingência entre ver um filme qualquer, que a crítica classifique de cinco estrelas, e um dos mais recentes de Woody Allen, quase por certo a opção seria a última. Porque, mesmo esquecendo-os rapidamente, os últimos títulos do realizador continuam a ser inteligentes, divertidos e com uns diálogos admiráveis.
No caso deste filme temos um ilusionista talentoso, que olha à sua volta e vê confirmados os mais cínicos ensinamentos colhidos em Nietzsche. No entanto, logo se vê enredado numa engenhosa armadilha em que o feitiço se volta contra o feiticeiro, fazendo-o cair nas mais emotivas pulsões românticas. Até retomar o anterior equilíbrio, porque descobre ter-se limitado a cair num logro.
Mas quem prova as delícias do enamoramento é bem capaz de não conseguir retomar a antiga misantropia. E ei-lo, afinal, a sair transformado de uma experiência capaz de o virar do avesso quanto aos seus cristalizados preconceitos.
Quantos filmes atuais são capazes de nos desafiarem para uma tão estimulante dualidade entre a fria racionalidade e as destemperadas emoções amorosas? 

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: Gertrude Caton-Thompson e o Grande Zimbabwe (3)

No texto anterior vimos como Gertrude Caton-Thompson estava quase a dar por terminada a sua expedição de 1929 ao Grande Zimbabwe, quando se lembrou de recorrer à perspetiva aérea para encontrar vestígios imersos na vegetação secular e passíveis de lhe garantirem as respostas procuradas.
Quem por ali andara à procura de tesouros não suspeitara do que se escondia nos socalcos adjacentes às muralhas. Logo no dia seguinte transferiu a equipa para esses terrenos onde começaram a aparecer à luz do dia alguns objetos, que tinham passado despercebidos nos séculos mais recentes.
Todos esses vestígios eram inegavelmente africanos. Havia alterações na cerâmica e nos seus desenhos, mas eram antecessores dos que então se produziam. O único material estranho que encontrou foi o das contas de vidro, da cerâmica do Extremo Oriente e do Próximo Oriente, indiciadoras de comércio marítimo com essas civilizações em meados do século XIII.
Gertrude concluiu assim que, ao contrário do pretendido pelas autoridades da colónia, o Grande Zimbabwe tinha sido uma cidade africana negra, que prosperara entre os séculos IX e XIV, no centro de pujantes rotas comerciais. Do interior para a costa transportava-se marfim e ouro para serem vendidos aos comerciantes árabes, que os enviavam para a Índia e para a China.
Para a reunião com os mecenas da British Association, Gertrude preparou-se para a reação hostil, que contava enfrentar. Foi em Joanesburgo que, com a sua lapidar segurança, apresentou as teorias a uma multidão interessada. Estava-se a 2 de agosto de 1929.
A apresentação foi meticulosa e clara demonstrando que, em vez de ser ramificação degenerada de outra civilização, o Grande Zimbabwe era o que restava de uma civilização nativa dotada de um elevado nível de organização. No seu relatório detalhado Gertrude matou o mito de uma civilização branca perdida. Tratava-se afinal de uma movimentada metrópole negra com cerca de 15 mil habitantes e um nível de desenvolvimento equivalente ao de outras europeias desse tempo.
Muitos dos que a ouviram ficaram escandalizados e teimaram em manter a crença nas suas deturpadas ideias. Eram os que descriam da capacidade dos africanos em criarem uma tal civilização e, furiosos, abandonaram a sala. Mas o mundo académico e científico valorizou devidamente o seu trabalho.
No final desse ano Gertrude partiu para Inglaterra, mas a controvérsia sobre o Grande Zimbabwe acompanhou-a. No ano seguinte o Museu Britânico em Londres abriu-lhe as portas para que pudesse explicar as suas descobertas. Que lhe valeram cartas injuriosas e ameaças anónimas, incapazes de a fazerem vacilar, por pouco que fosse, nas suas convicções. Para ela os contestatários não passavam de desprezíveis imbecis…
Embora não tenha conseguido comprovar as ligações entre os comerciantes do sul da Península Arábica com o Grande Zimbabwe - que procurou na sua expedição de 1938 - ela fica conhecida como aquela que demonstrou a origem africana de uma grande civilização desaparecida...

DIÁRIO DE LEITURAS: As falsas promessas da sociedade pós-industrial

Duas semanas atrás já aqui referi o ensaio «Le Monde est clos et le désir infini», que o economista francês Daniel Cohen publicou nas Éditions Albin Michel. Porque se trata de uma visão desassombrada sobre o mundo em que vivemos, vale a pena voltar a abordá-la.
Para o autor a atual revolução digital está a destruir muitos empregos.
Nos séculos XIX ou XX as evoluções tecnológicas na agricultura empurravam as populações rurais para as cidades onde facilmente encontravam emprego na indústria. A produtividade e os salários pareciam crescer imparavelmente.
Verificaram-se nessa altura três revoluções ao mesmo tempo: ao sucedido na agricultura e na industria somaram-se os prodigiosos avanços da medicina.
Hoje, ao contrário, os empregos que sobrevivem são os poupados pelas novas tecnologias, como por exemplo os dos entregadores de pizzas.
O mundo industrial tinha herdado o que de pior havia na sociedade rural: em vez dos nobres princípios formulados pelo Iluminismo do século XVIII, e traduzidos na Declaração dos Direitos do Homem, adotou a autoridade  dos patrões e seus encarregados, aos quais era preciso obedecer. O taylorismo intentou criar um mundo de produção, que reproduzisse as relações de forças da sociedade feudal, com cada um no seu patamar: o operário, o encarregado, o engenheiro e o patrão.
Como o crescimento da produção ia permitindo aumentar o salário de quem vendia a força de trabalho, conseguia-se uma relativa paz social à custa do operário poder comprar também um carro que, se não era igual ao do patrão, lhe garantia, ainda assim, um estatuto de sucesso junto dos seus semelhantes.
O milagre da revolução industrial foi o de criar o motor de um imobilismo social, aqui e além sacudido pelas lutas organizadas por sindicalistas cada vez mais acomodados às mordomias de participantes no embuste da concertação social.
A década de 60 veio anunciar o crepúsculo da sociedade industrial com o fim dos Trinta Gloriosos Anos e o início de uma nova era de aposta na criatividade em substituição da autoridade enquanto valor estruturante. Em vez da verticalidade na definição dos organogramas das empresas, passava-se a tender para a horizontalidade.
A Revolução de Maio de 1968 em França e os seus sucedâneos, um pouco por todo o lado, teve por estímulo a vontade de pôr fim às velhas sociedades fortemente hierarquizadas, que tinham perdurado durante todo o período industrial.
A História mostra-se perversa, quando vê a sociedade pós industrial, a tal que deveria contribuir para a emancipação dos indivíduos, desembocar na atual insegurança, feita de austeridade, de cortes nos custos do trabalho e na procura de tecnologias capazes de propiciar a redução do volume de mão-de-obra…
Em vez da organização hierarquizada viemos dar à gestão através do stress: «mostra-te criativo ou arriscas-te a ser substituído por um programa de computador!» é o tipo de discurso com que se ameaçam os assalariados.  «Inova ou morre!»
Chegámos a um tipo de sociedade que gerou o contrário do que chegara a anunciar. Vive-se na permanente inquietação de uma segurança definitivamente perdida, recordada com nostalgia!
Em texto posterior prosseguiremos com este diagnóstico que Cohen desenvolve sobre o mundo em que tentamos sobreviver...

quinta-feira, setembro 24, 2015

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA: Gertrude Caton-Thompson e o Grande Zimbabwe (2)

Em 1929, quando todo o Ocidente estava a viver os apertos da Grande Depressão, a arqueóloga inglesa Gertrude Caton-Thompson chegou a Salisbúria para tirar a limpo qual seria a origem das ruínas conhecidas por Grande Zimbabwe já descobertas pelo alemão Karl Mauch em 1867.
Em apenas quarenta anos de ocupação os colonos rodesianos tinham criado uma comunidade muito dinâmica em que os brancos dirigiam as fazendas e as minas e os negros estavam remetidos para trabalhos serviçais, vivendo em alojamentos insalubres sem qualquer acesso à educação.
O preconceito de superioridade branca já estava tão enraizado que era evidente em todas as vertentes da vida social.
Quando uma mulher branca pediu a Gertrude que integrasse um filho na sua equipa arqueológica, ela acedeu conquanto acedesse a participar nas escavações ao lado dos trabalhadores de cor. Como esperava, Gertrude logo viu retirado o pedido.
Um dia, durante um jantar, o governador defendeu a ideia de as ruínas do Grande Zimbabwe possuírem uma origem antiga, e portanto branca. Mas Gertrude retorquiu-lhe que o seu trabalho seria ditado pela objetividade.
A equipa de que ela se fez acompanhar era reveladora da determinação em romper com as convenções, porque constituída em grande parte por mulheres. Daí que Gertrude seja vista como uma das primeiras arqueólogas abertamente feministas.
Nos primeiros dias a equipa inspecionou quilómetros de ruínas deixando Gertrude perplexa com o que anteriores visitantes tinham feito: gerações de caçadores de tesouros tinham praticamente exposto tudo o que restara, tornando duvidosa o sucesso da expedição.
O Grande Zimbabwe tinha-se transfigurado nos sessenta anos anteriores. Muita gente imaginara ali encontrar ouro, pelo que pilhara, saqueara e deitara paredes abaixo para abrir túneis debaixo das muralhas.
Os muitos artefactos arqueológicos assim destruídos tinham um valor incalculável. O próprio Cecil Rhodes cuidara de levar dois pássaros em pedra para marcar a entrada da sua propriedade e contratara gente sem competências para encontrar provas de ali ter existido uma civilização branca. É claro que movimentaram toneladas da camada superficial do solo sem nada encontrarem nesse sentido.
A devastação das ruínas deixou Gertrude num aparente beco sem saída, apesar de diversas escavações em zonas diferentes das ruínas e dos bónus pagos aos trabalhadores para os compensar das horas extraordinárias.
O tempo estava a chegar ao fim e aproximava-se a data da reunião com quem a contratara - a British Association. Razão para, em  desespero de causa, recorrer a um avião para observar toda a região a partir de uma perspetiva até então desconhecida.
Conseguiu, assim, localizar um caminho invisível a partir do solo, porque estava imerso na vegetação. E que não era utilizado há séculos... 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Quando a partir de um herói se acaba enfiado numa tragédia

Uma das melhores séries, atualmente em exibição num dos canais por cabo - «Show me a Hero» - é não só um retrato elucidativo da América perpassada pelas tensões raciais, mas igualmente associável à nossa presente experiência de europeus a contas com um inédito afluxo de refugiados políticos oriundos de uma cultura diferente da nossa.
Baseado num caso real acontecido em Yonkers, um bairro branco de Nova Iorque, é realizado por Paul Haggis e tem David Simon como um dos principais argumentistas. O título remete para uma expressão de Scott Fitzgerald - «Show me a hero and I’ll write you a tragedy» - e, de facto, o jovem presidente da câmara Nick Wasicsko não imagina o  pesadelo, que o espera, quando consegue desalojar do cargo um cacique aparentemente inexpugnável.
À partida ele estava contra o projeto imposto por um juiz federal de espalhar por todo o bairro duzentas famílias em habitações sociais. É aliás como opositor a tal possibilidade, que consegue vencer a eleição.
O problema é que a cidade em breve se vê em risco de falir por causa das multas progressivas a que vai sendo condenada, concomitantemente com todas as derrotas nos diversos recursos intentados junto do Supremo Tribunal.
Tendo que optar entre a falência dos sucessivos serviços públicos - desde as bibliotecas à segurança policial, passando pelo fornecimento de água aos munícipes -, e  a resistência a que estes o querem obrigar, Wasicsko escolhe a via da racionalidade sujeitando-se ao ruidoso desagrado de quem o elegera.
Haggis, que já em «Crash» nos revelara a estratégia narrativa em mosaico, vai-nos mostrando a realidade complexa de tão explosivo enquadramento social através de um diversificado leque de personagens, que vão do arquiteto que congeminara o programa de integração das famílias pobres no bairro até exemplos distintos que as compõem. Vemos mães solteiras com dificuldades para sobreviverem com as suas crianças, mulheres maduras a contas com doenças incapacitantes, adolescentes cuja irreverência as leva a julgarem possível a felicidade através da exclusiva satisfação dos seus desejos. Mas há sobretudo Mary Dorman, uma mulher branca de meia idade, a quem Catherine Keener dá corpo, que até é uma pessoa estimável, mas não prescinde de ver longe da sua vizinhança esses negros capazes de, com o seu tráfico de droga e toda a delinquência associada, porem em causa o seu sossego. Para além de provocarem a desvalorização da casa onde sempre viveu.
Wasicsko, que se atirara de cabeça para um cargo bastante acima do que recomendaria a sua inexperiência, viverá na permanente angústia de se ver submerso por uma sucessão de acontecimentos sobre os quais é incapaz de conseguir algum controlo.
A metade da série já exibida confirma-a como uma das mais estimulantes do ano dando do exercício do poder político uma outra versão, bastante mais conturbada do que a tão elogiada «Borgen», que ainda anda a poder ser revista na televisão pública. Mas, igualmente, evoca a forte probabilidade de ser quase impossível resistir a uma dinâmica como a que os refugiados da Síria e do Iraque sugere.  Quando a racionalidade dos argumentos se confronta com as paixões xenófobas de quem sente medo perante os que são diferentes no tom da pele ou no credo que professam... 

quarta-feira, setembro 23, 2015

ARTES: Obras de Ai Weiwei expostas em Londres

É o grande acontecimento artístico deste outono na capital britânica: a exposição de Ai Weiwei, o artista chinês particularmente mal visto pelo regime chinês, que o prendeu durante oitenta e um dias em 2011 e lhe destruiu o estúdio de Xangai.
Minimalista e conceptual ele gosta de utilizar materiais que recicla sob a inspiração dos ready mades de Marcel Duchamp, muito embora os transforme de forma radical, atribuindo-lhes um sentido político quase sempre contundente para com a realidade onde se sente submerso. É isso mesmo que ressalta da entrevista aqui linkada com Tim Marlow, o diretor artístico da Royal Academy onde se poderá ver a sua obra até dezembro.