domingo, novembro 29, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: As prequelas de Wallander

A escolha de leitura para uma viagem obedece sempre ao respeito pela noção dos constrangimentos a ela associada: mesmo dirigindo-nos para lugares já bem conhecidos, o facto de não integrarem a rotina de todos os dias já justifica uma outra atenção a quem nos for rodeando. Ademais, os recentes atentados em Paris terão incrementado medidas de segurança para as quais a nossa curiosidade tenderá a focalizar-nos.
É por isso que escolhi «La Faille Souterraine», a versão francesa de «Pyramiden», o livro com que Henning Menkell procurou corresponder, em 1999, a uma das perguntas mais frequentes dos seus leitores: já que no primeiro título da série, iniciada com «Assassino sem Rosto» (1991), conhecemos Kurt Wallander quando ele tinha 42 anos e já estava divorciado de Mona, como teriam sido os anos anteriores a esse?
O projeto de Mankell era o de, através das possibilidades conferidas pelo género policial, estabelecer um retrato inquiridor sobre a Suécia após a perda da sua inocência motivada pelo assassinato de Olaf Palme. Durante oito anos ele publicara outros tantos romances, que ofereciam do país nórdico uma caracterização muito diferente daquela a que nos habituáramos, quando o víramos como o exemplo mais idílico da social-democracia.
Em «A Muralha Invisível», de 1998, Wallander já estava tão cansado, que antevia com ansiedade a necessidade de se reformar.
Muito embora viesse mais tarde a retomar a personagem noutro romance - «Um Homem Inquieto», em que o encontramos já dissociado das funções de polícia -,  Mankell julgara esgotado o seu projeto, quando reuniu cinco novelas destinadas a dar-nos a conhecer Wallander antes dessa intriga inicial. Em «Punhalada», o primeiro dos textos desta antologia, temos Kurt com apenas 22 anos e recém-chegado às fileiras policiais.
A função que lhe foi atribuída nas forças especiais mobilizáveis para contrariar as então turbulentas manifestações contra a guerra do Vietname, não é a que ele deseja. Por isso mesmo, na tarde ensolarada em que está de folga à espera da namorada de quem se despedira de manhã no cais dos ferries para Copenhaga, a sua maior preocupação é acelerar a transferência para os departamentos encarregados de esclarecerem homicídios.
Essa namorada é Mona com quem, em 1990, já se casara e descasara, e lhe dera a filha Linda, que lhe sucederia na esquadra de Ystad. Mas esta novela dá-nos conta de uma antecessora, Helena, que lhe partira o coração ao trocá-lo por outro e lhe dera o ensejo de iniciar a futura propensão alcoólica.
Nesta novela também surge o pai de Wallander, esse pintor que reproduz sempre o mesmo tema nos quadros e irá morrer muitos anos mais tarde, vitimado pela doença de Alzheimer, algo de que o próprio filho já  começa a padecer no último romance da série.
Pelo que aqui deixo testemunhado, deleito-me a ler os romances deste genro de Ingmar Bergman, que faleceu em 5 de outubro passado. E tenho a garantia de gratificante leitura nos próximos dias. Mesmo em plena viagem...

sexta-feira, novembro 27, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: O heroísmo e a solidão como exemplos absurdos

“O verdadeiro heroísmo forçosamente emerge no intervalo imenso que medeia entre a coragem e o absurdo” (pág. 66). Essa é a conclusão do narrador do conto «Darjeeling», um dos que Ignacio Padilla integrou no seu livro «Os Antípodas e o Século.
Tudo se passa quando o subcontinente indiano constituía a «Jóia da Coroa» do Império Britânico, que rivalizava com os russos quanto à clarificação da cartografia na região dos Himalaias. E com o obstáculo de ser vedada aos ocidentais a entrada no Tibete sob pena de ali serem sumariamente executados pelos carrascos a mando dos lamas.
Esse narrador fora o braço direito do heroico coronel Bailey, cuja morte seria motivo de faustosas exéquias a mando da Real Sociedade de Geografia. E que, um dia o incumbira de procurar um valoroso cartógrafo, entretanto envelhecido e a exercer o mester de alfaiate numa loja de Darjeeling, para lhe oferecer recompensa ridícula pelos seus feitos em prol da comprovação de uma suspeita estrategicamente relevante: que o rio Tsangpo era um afluente do Bramaputra.
Apesar de enormes dificuldades, que incluíra a escravatura nos altos picos do Nepal, esse Kintup porfiara em realizar a missão, que Bailey lhe dera.
Mas apesar de se ter tratado de um esforço fútil, até porque outra missão científica comprovara entretanto aquela suspeita, Kintup ficara para o narrador como o exemplo de quem preferiria quebrar a torcer.
Algo, porém, acaba por se revelar bem mais surpreendente: Bailey seria afinal um espião ao serviço dos russos, apesar de celebrado como herói pelos seus concidadãos.
Outro conto do livro - «Hagiografia do Apóstata» - é mais curto, mas não menos engenhoso na exploração da surpresa entre o que se julga ir encontrar à medida que a leitura prossegue e o que, de facto, se conclui.
O protagonista é um monge Jean Degard  que, assaltado pelas culpas de ter morto um homem, decide internar-se no deserto e encontrar expiação como eremita acoitado numa gruta.
O consolo não chega e, mentalmente, ele começa a convocar o diabo e o seu contrário, alimentando grandes debates dialéticos em torno da existência ou não dos seus fundamentos religiosos.
“O irmão Dégard nunca chegou a conhecer as consequências do combate, uma vez que as duas vias de demonstração o levaram a concluir sem remédio que nem o diabo nem o santo podiam existir ou tinham alguma vez existido. Daí, entre outras coisas, que com frequência o abade Gauthier insista em afirmar que janais alguém viu o demónio naquele ermo onde um eremita mais não alcançaria do que compartilhar a sua solidão com gralhas e grilos.” (pág. 75)

quarta-feira, novembro 25, 2015

PALCOS: Um pouco de otimismo far-nos-ia imensamente bem

Muito embora as melhores experiências teatrais vividas tenha-as conhecido muito depois, graças ao Bando - refiro-me a «Ensaio sobre a Cegueira» em 2004 e «Quarentena» em 2014 -, nunca terei vivido época tão exaltante como a dos anos logo após o 25 de abril de 1974.
Os trabalhos então apresentados pela Comuna, pela Barraca, pelo Teatro do Mundo e por outras companhias independentes apostadas em fazer do palco uma festa e da Revolução um tema quase permanente, fica-me como uma enorme saudade.
As décadas foram passando, da festa ficou a memória de uma utopia adiada e passámos a encontrar propostas viradas para a vocação individualista dos seres, que julgáramos incontornavelmente gregários.
Peças houve em que o pessimismo atingia tal dimensão, que o incómodo gerado nada teve de produtivo, porque nem sequer capaz se mostrava de gerar uma qualquer vontade de reação a algo aparentemente indestrutível.
Aqui e além foram surgindo alguns vislumbres de uma outra alternativa de vida: por isso mesmo «Quarentena» figura como a peça que escolheria como a melhor de quantas vi.
No caso de «O Tempo», que está a ser apresentada pelos Artistas Unidos, mantem-se a sina de se tratar de proposta deprimente. Não é que anseie pela falsa alegria encenada à moda do La Féria, mas já faz falta ver os palcos em sintonia com uma sociedade onde se começam a ver sinais de uma esperançosa mudança. Já andamos tão tristes, que nos faria bem algo capaz de atiçar a nossa vontade de reencontro com a esperança...

terça-feira, novembro 24, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: A outra versão sobre a história colonial em Moçambique

Comecei a leitura do mais recente romance de Mia Couto - «Mulheres de Cinza» - com uma grande disponibilidade para me sentir seduzido desde a primeira página e assim está a suceder. A exemplo de outros autores a quem desejei previamente o reconhecimento do Nobel - e assim viria a suceder! -, tenho esperança de ver o escritor moçambicano a receber o prémio muito proximamente. Não só pela qualidade literária de todos os livros, que dele li, mas também pela fértil imaginação de que dá mostras e leva alguns a conotarem-no com algumas das principais características do “realismo mágico” latino-americano.
Neste primeiro livro de uma nova trilogia intitulada «As Areias do Imperador» Mia Couto traz algo de novo à sua obra: a criação de um novo enredo ficcional num passado mais afastado no tempo e sobre o qual teve de proceder a aturada recolha documental.
Logo de início percebemos que encetámos uma viagem até finais do século XIX, quando a Coroa portuguesa deparava com as limitações de uma ocupação colonial incapaz de resistir às investidas do império dos Ngonis, liderado por Ngungunyane. E sabemo-lo, sobretudo, pelos relatórios de um sargento a quem a participação numa insurreição republicana valera a deportação para o território moçambicano.
Recebendo a missão de garantir a ocupação militar onde o Estado de Gaza se tenta implantar, Germano de Melo estreia-se em Moçambique com um ataque dos “cafres” a Lourenço Marques, que depressa o levam a acreditar no que lhe diz uma estalajadeira: “os nossos domínios, que tão pomposamente chamamos de «Terras da Coroa», encontram-se votados ao desgoverno e à imoralidade. Na maior parte desses territórios nunca nos fizemos realmente presentes durante estes séculos. E nas terras onde marcámos presença foi ainda mais grave, pois quase sempre nos fizemos representar por degredados e criminosos. Não existe, entre os nossos oficiais, nenhuma crença de que sejamos capazes de derrotar Gungunhane e o seu Estado de Gaza.” (pág. 41)
Esse sargento é um dos protagonistas na história, que terá igualmente como parceira privilegiada a jovem Imani, cuja fluência no português a tornam especialmente indicada para servir de criada ao militar recém-chegado. Menina quase mulher ela irá por certo ganhar uma progressiva relevância, adivinhando-se-lhe a influência no que vier a suceder com Germano.
Quem ainda não assume o papel principal é esse Ngungunyane, que o fascismo começou por apresentar como um bruto sem valores cristãos num filme destinado a glorificar os “feitos do Império”.
«Chaimite», assim se chamava esse filme de Jorge Brum do Canto, estreou-se em 1953, quando as independências africanas começavam a ganhar forma e o regime preocupava-se em propagandear a legitimidade do seu “Império” contra aqueles que não tardaria a designar como “terroristas”.
Mia Couto promete dar outra versão da mesma História nos romances desta trilogia.

sábado, novembro 21, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: as aventuras do mundo real

Nos últimos tempos o cinema de ficção científica tem-nos entretido com algumas aventuras espaciais onde os protagonistas são sujeitos s desafios quase inverosímeis, mas conseguem salvar a pele.
Sandra Bullock em «Gravidade», Matthew McConaughey em «Interstellar» ou, mais recentemente, Matt Damon em «Perdido em Marte» conseguiram-nos entreter em filmes irrepreensíveis na qualidade dos seus efeitos especiais, mas facilmente olvidáveis por não pretenderem mais do que garantir umas horas de evasão a quem os apreciou. No caso deste último já vão longe os melhores filmes do octogenário Ridley Scott - «Alien, o Oitavo Passageiro» ou «Blade Runner» - e cada título só serve para acentuar a irrelevância da quase generalidade da sua filmografia.
Acontece que, recentemente, também vi alguns documentários sobre a vida tormentosa dos camionistas bolivianos ou mongóis, a contas com estradas lamacentas ou lagos (pouco) gelados. Quando os dei por vistos, foi fácil concluir que Hollywood anda a incumbir os seus argumentistas de criar histórias de sobrevivência no espaço, quando as tem perfeitamente disponíveis em várias regiões da Terra.
Imaginem-se dois camiões a cruzarem-se na impressionante «carretera de la muerte» ou a avançar numa brancura inquietante e debaixo dos pneus começa a sentir-se o gelo a quebrar.
É verdade que os camionistas da Bolívia ou da Mongólia não possuem o aspeto glamouroso das estrelas de Hollywood. Mas vivem de nó na garganta em certos momentos dos seus dias em que não basta a vontade em evitar os erros para que o desastre ocorra. Por isso, ao contrário das histórias dos filmes que quase sempre concluem-se com finais felizes, há muitas carcaças de camiões no fundo de precipícios, todas elas a lembrarem a tragédia abatida sobre famílias dependentes de quem ali terá tido o seu último trajeto...
A realidade tende a superar em muito as conjeturas da ficção... 

sexta-feira, novembro 20, 2015

DIÁRIO DE LEITURA: Reflexos Condicionados segundo Pavlov

Nos escaparates ingleses apareceu há poucas semanas uma nova biografia de Pavlov da autoria de Daniel P. Todes: «Ivan Pavlov - A Russian Life in Science»
Segundo o autor, o cientista russo correspondeu à colisão perfeita entre religião e a modernidade secular, já que nascera filho de sacerdote e estudara num seminário antes de se tornar num positivista ferrenho. Mudou-o o contexto industrial do final do século XIX, cujos métodos transferiu para o laboratório. Foi assim que os fenómenos nervosos, e até psíquicos, passaram a ser intensivamente medidos.
A Revolução bolchevique melhorou-lhe as condições de trabalho, já que o regime apostou seriamente no financiamento das suas investigações.  Não admira, pois, que ele tenha sido um dos principais cientistas soviéticos a ver-se objeto de justificada utilização pelo regime. Ainda assim, não eram poucas as contradições de que dava mostras: ateu convicto, casou com uma colega cientista particularmente dedicada à devoção religiosa. E, quando após uma vida patriarcal mais do que estabilizada, adotou como amante uma outra cientista, também ela casada com um sacerdote ortodoxo.
Mas Todes dedica bastantes páginas à forma como Pavlov trabalhava: caberia ao cientista acumular uma grande quantidade de dados a partir dos quais, e mediante experiências rigorosamente controladas e meticulosamente realizadas, se poderia formular uma teoria consistente. Para ele a ciência assentava no primado da precisão e da quantificação. Até que, chegado ao crepúsculo da sua vida, reconheceu que os cães em que estudava os reflexos condicionados, reagiam de forma mais diversificada do que pretenderia comprovar: a individualidade dos seres complexificava a validade da teoria. Por isso nos últimos anos de vida as investigações tenderam para um rumo nitidamente psiquiátrico.  Sem, porém, abdicar da função, que atribuía à Ciência: a de melhorar a sociedade humana.

quarta-feira, novembro 18, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Brincar com o terrorismo

Li «OssO» enquanto as televisões passavam reportagens infindas sobre os atentados terroristas em França. 
Alguns dirão ser politicamente incorreto vir abordar o mais recente romance de Rui Zink, quando ele constitui uma saborosa comédia feita de diálogos entre um terrorista e o seu carcereiro numa altura em que ainda estão presentes as memórias das cento e trinta vítimas mortais de Paris.
Mas se até no gueto de Varsóvia, sujeitos à fome e ao frio, os sitiados conseguiam contar anedotas, é caso para lembrar que, muitas vezes, rir é também um bom remédio quando nos encontramos no meio da tragédia.
A inteligência de Rui Zink leva-o a criar uma cumplicidade crescente entre o terrorista - capturado antes de conseguir fazer explodir a bomba!- e o seu carcereiro e torturador. A empatia cresce de tal forma, que o carcereiro acaba encarcerado, porque mostrava uma ambígua sintonia com as perspetivas do seu prisioneiro.
Juntar forças e escapulirem-se da prisão passa então a ser o principal objetivo do terrorista por muito que o companheiro de cela não acredite na viabilidade dos seus planos. Mas a realidade é que ambos acabam por se livrarem da cela, mesmo não se tratando da forma mais desejada pelo cúmplice involuntário.
No final, Zink conta uma pequena história em jeito de moral, e que me fez rir com gosto: “Um terrorista entra num bar com uma bomba na mão. O dono do bar avisa que tem de deixar a bomba lá fora. O terrorista diz-lhe: estava a brincar, eu não sou um terrorista, olhe só, isto não é uma bomba, é um isqueiro. E, para mostrar que é verdade, acende o isqueiro. O dono do bar replica, com ar triste: eu também estava a brincar, isto não é um bar, é um posto de gasolina. 

terça-feira, novembro 17, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Determinação, dilemas e sentido de honradez

A leitura dos vários contos de «Os Antípodas e o Século» do mexicano Ignacio Padilla está-me a dar um enorme prazer dada a imaginação e a fina ironia de que estão a dar provas.
Aqui fica o registo de mais três desses curtos textos, todos eles constituídos por oito-dez páginas.
Em «Ever Wrest: Bitácula de Viagem» encontramos Maurice Wilson, um indivíduo extremamente determinado tal qual comprovamos a partir do primeiro parágrafo: “O senhor Maurice Wilson concebeu a ideia de conquistar o Everest quando agonizava num hospital para tuberculosos nas imediações de Munique. Sabia que os dotes de alpinista eram na circunstância tão copiosos como podem sê-lo os de um varredor, mas estava certo de que a sua ideia de alcançar o místico cume dele exigiria apenas um pouco de paciência e outro tanto de boa sorte.” (pág. 27)
Estava-se nos loucos anos vinte do século passado, quando George Mallory e Andrew Irvine tinham falhado o objetivo a trezentos metros do cume.
A partir daí não há obstáculos, nem contratempos que desviem Wilson do que entendeu alcançar. Mas Padilla vai, aqui e além, colocando pequenos apartes que vão apimentando a estória. Assim, o antigo militar do Exército Britãnico fora desmobilizado por ter roubado um vestido de mulher numa loja na Nova Zelândia. Depois vai sendo notório o excessivo apego à mãe, que vai confirmando a sua equívoca sexualidade. Mas o seu desaparecimento nas encostas da mais alta montanha, quando estava travestido de mulher confirma a insinuação do autor: “Os chineses nada dizem sobre a roupa que encontraram trajada pelo cadáver de Wilson, mas ainda hoje é possível ver-se no museu alpino do Partido Comunista um sensual sapato de salto que o legendário montanhista Chu Ying-hua garante ter descoberto enterrado na neve apenas a alguns passos da bandeira britânica que Sir Edmund Hillary cravou no cimo do Everest dias antes de a princesa Isabel ter sido coroada nos altares de Westminster”. (pág. 33)
Wilson teria, pois, alcançado o cume antes de desaparecer!
Em «Apontamentos de Balística»  faz-se um exercício académico entre dois soldados inimigos dotados da infalível Hutchinson Van Neuvel, mas ambos desconhecedores se a arma com que apontam é verdadeira ou uma imitação proveniente da Capadócia.  Cria-se, assim, um dilema quanto à possibilidade, ou não, de sucesso se decidirem disparar.
O conto «Rhodesia Express» lembrou-me um episódio de ontem à tarde quando, numa Conferência, uma professora algo mal encarada, dizia que costumava sensibilizar os seus alunos sobre o que se estava a passar com os refugiados, porque dava-lhes aulas precisamente, porque sendo retornada, fora aqui acolhida em 1975. Algo maldosamente confidenciei para quem estava ao lado, prevendo que os alunos bem prefeririam não a ter como professora:
- Lá consegue ela que os alunos sejam contra o apoio aos refugiados!
No caso do texto de Pinilla temos o coronel Richard L. Eyengton, que decide assumir a liderança da Rhodesian Railways como forma de acabar com os atrasos nos horários de chegada dos seus comboios. Prometendo suicidar-se se, num determinado prazo, não o conseguisse. Por isso vai ele próprio para as locomotivas garantir que se alimentam as fornalhas com carvão bastante para a velocidade ser a desejada.
Se, a princípio consegue, logo falha, sem se aperceber que os subordinados, conhecedores da sua aposta, aproveitam o facto dele despir o casaco para melhor ajudar na alimentação da fornalha, e, impercetivelmente, lhe atrasarem o relógio  Mas, como é homem de palavra, ele aceita o sacrifício com uma frase definitiva:
“- O meu amigo já o disse com todas as letras. Há outras faltas pelas quais um cavalheiro não merece o perdão de uma cidade.” (pág. 51)


segunda-feira, novembro 16, 2015

COSMOS: Serão quânticos os nossos processos cognitivos?

Poderá haver alguma relação entre os mecanismos que regem o pensamento  humano e a física quântica?
Em princípio seríamos levados a crer que não, mas não é essa a opinião de alguns cientistas dispostos a defenderem a similitude das mesmas leis utilizadas pelo discurso interior da alma humana e pelo comportamento da matéria no universo do infinitamente pequeno. Segundo eles, no menor dos nossos pensamentos, no encaminhamento interior que nos leva a tomar uma decisão, nas reflexões e associações de ideias, tudo segue uma lógica quântica.
Trata-se de uma tese, que põe em causa a nossa suposta aceitação das regras da lógica clássica e do pensamento cartesiano, atirando-nos para uma interpretação tão vertiginosa, quanto inédita, do que se passa no cérebro.
Recordemos que a mecânica quântica permite descrever o comportamento da matéria microscópica com uma precisão tão certeira, quanto bizarra, porque afasta-nos das leis constatáveis no mundo visível.
Nesse universo quântico, uma partícula pode também ser uma onda, que passa simultaneamente por sítios diversos, ou  influencia ou é influenciada por outra dela distante no espaço e no tempo.
Mas haveria alguma razão para que tal propensão para escapar à lógica clássica estivesse reservada às partículas? Poderiam ser quânticos os nossos neurónios?
Jerome Busemeyer, um dos cientistas da Universidade de Indiana (EUA) envolvidos na investigação conducente a estas teorias, alerta para o facto de não estar a defender que o nosso cérebro seja uma espécie de computador quântico. As bases neuronais serão investigadas a posteriori, limitando-se a investigação atual aos fenómenos cognitivos. Quer isto dizer que não é o funcionamento biológico dos neurónios a estar em causa no curto prazo, mas tão-só a forma como tratam a informação para chegarem a conclusões.
Vejamos um exemplo, que poderá explicitar mais eficientemente esta questão: estamos num restaurante e o criado insta-nos a escolher entre o queijo e a sobremesa.
Se nos mantivermos no enquadramento da psicologia clássica a decisão pretendida depende de um número significativo de variáveis e cálculos alteráveis a cada momento. Por isso, qualquer das três possibilidades em causa - o queijo, a fruta ou nenhum dos dois - dependerá da correlação de todas essas variáveis no instante da decisão.
Numa abordagem quântica  poderemos não ter nenhuma opinião sobre o dilema em causa, ou poderemos ter todas em simultâneo. Será aquilo que se designa como «sobreposição de estados», em que sentimos vontade de comer queijo e sobremesa. É o que sucede na Física com uma partícula a encontrar-se em estados diferentes ao mesmo tempo. Só quando a medimos é que ela é reconhecível num dos seus estados.
Os Físicos olham para os psicólogos e veem-nos a contas com os mesmo dilemas em que eles próprios se viam no primeiro quartel do século XX, com resultados experimentais capazes de desafiarem todo o entendimento.

sábado, novembro 14, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A Montanha de Dmytryk

Tenho idade suficiente para recordar o ritual de ir ao cinema, quando existiam as grandes salas de Lisboa: o Monumental, o São Jorge, o Tivoli, o Conde ou o Éden.
As pipocas ainda não incomodavam a fruição do que se ia ver e toda a experiência de espectador implicava uma certa predisposição, que se coadunava com o bem mais lento ritmo de vida em que nos situávamos.
«A Maldição da Montanha» («The Mountain»), que Edward Dmytryk assinou em 1956, e novamente distribuído nos ecrãs europeus em versão restaurada, é um bom exemplo do que significava ir ao cinema nesse ano em que nasci: um entretenimento bem feito, com atores muito conhecidos - Spencer Tracy, Robert Wagner e Claire Trevor - e uma fotografia em technicolor de tirar o fôlego de tão bela.
Os mais avisados lembrariam que Dmytryk estava a ser reintegrado nos grandes círculos de Hollywood depois de anos a fio sob a mira do tenebroso senador McCarthy, por suspeitas de simpatias comunistas. Ao contrário de outros realizadores, que nunca mais recuperaram o estatuto anterior, ou só o conseguiram por causa do comportamento indigno - nunca é demais lembrar que Elia Kazan, apesar de incensado por uma certa intelectualidade por causa do seu «Esplendor na Relva», foi um crápula delator, responsável pela destruição de tantas vidas entre os seus antigos amigos! - Dmytryk conseguiu voltar a filmar graças aos bons ofícios de amigos como Bogart ou Tracy, a quem os responsáveis pela «caça às bruxas» não se atreveram a incomodar!
Na origem da história deste filme está o caso concreto de um acidente aéreo  ocorrido em 1950 no Monte Branco, que inspirou o escritor francês Henri Troyat a escrever um romance. Existe então um antigo guia de montanha a quem uma má experiência anterior, vocacionara para uma atividade de pastor. É o papel que cabe a Spencer Tracy, que está decidido a não regressar às grandes alturas.
E há o seu jovem irmão, a quem a notícia de um avião despenhado na alta montanha com uma fortuna a bordo incita a tentar a aventura.
A intriga é maniqueísta com Tracy a concitar todas as virtudes e Wagner a personificar a cupidez e a falta de escrúpulos. O crescimento da tensão dramática resultará dos problemas de consciência de um e da ganância do outro. Com o desenlace expetável.
Mas que interessa essa previsibilidade do que se vai ver, ou até a verosimilhança discutível de ver Tracy e Wagner como irmãos, quando mais de trinta anos os separava na realidade, quando as belíssimas imagens do Monte Branco continuam a impressionar?

PALCOS: Renee Fleming canta "Porgi amor" (início do 2º ato de «As Bodas de Fígaro»)

Nos textos anteriores sobre «As Bodas de Fígaro», já vimos que se trata de uma obra de enganos e desenganos, com amores dificultados e outros frustrados: Figaro quer casar-se com Susanna, mas Marcellina, por um lado, e quase todos os demais personagens masculinos por outro, estão apostados em impedi-lo, seja por os quererem para si, quer por verem no sucesso das suas perfídias a forma de se avantajarem na consideração do Conde Almaviva.
Quando o primeiro dos quatro atos se encaminha para o fim, o jovem Cherubino mal tem tempo para se esconder, quando o conde entra no quarto de Susanna para a assediar. Mas logo surge o mestre de música, Don Basilio a pretender da criada os pormenores da intriga, que estava em curso para facilitar a aproximação do candidato a pajem junto da Condessa.
Escandalizado o Conde sai do precário esconderijo onde se acolhera e exige castigo para os intriguistas, que o querem reduzir à condição de esposo traído.
Embora tenha um breve desmaio, devido à emoção, Susanna desperta e logo defende Cherubino, sobre quem diz tratar-se de uma mera criança. Mas o Conde discorda, porque já o apanhara em flagrante no quarto da filha do jardineiro.
É nesse momento que, por azar, Cherubino vê-se desmascarado no sítio onde também permanecia escondido. Vale-lhe que chega nessa altura um grupo de camponeses, conduzidos por Figaro, que vêm tecer loas ao conde.
Em melhor estado de espírito, ele acede a reduzir o castigo a Cherubino, obrigando-o a alistar-se como oficial do seu exército, o que lhe vale um encorajamento de Fígaro a enunciar-lhe as vantagens da vida militar.
Estamos, nessa altura, prontos para o segundo ato, que começa com uma das mais belas árias do reportório das sopranos: «Porgi amor», aqui na versão de Renee Fleming.

DIÁRIO DE LEITURAS: Terroristas, misticismos e milagres

Estava longe de imaginar o que aconteceria em França a noite passada quando, horas antes, iniciei a leitura do mais recente título de Rui Zink: «OssO»: até me ri com gosto do primeiro dos contos do livro, onde damos com um terrorista simpático, a ser interrogado por um dos polícias incumbidos de lhe preparar o processo-crime.
Nesta história, o homem justifica a sua benignidade ao não ter feito deflagrar a bomba, que trazia à cintura, porquanto só utilizara o disfarce de terrorista para entrar no país.
Se fosse um candidato a refugiado não passaria das instalações do aeroporto, sendo repatriado para donde viera. Assim, como suposto terrorista, não só deixara aquele perímetro da chegada, como fora trazido para uma prisão da capital. E ele até dá conselho a quem o interroga: como na sua cultura a mentira é vista como altamente desonrosa, as autoridades só teriam de dar a preencher aos passageiros um formulário onde assinalariam se a sua deslocação era motivada por negócios, turismo … ou terrorismo.
Segundo afiançava não haveria terrorista que não assinalasse o verdadeiro motivo da sua viagem até ali. Era tudo uma questão de “forma”, palavra que dá título ao conto.
Que não é bem assim, assim e comprovou nos terríveis atentados, que mataram tantas pessoas em tão reduzido número de horas.
Mais condizente com os absurdos atentados de Paris, foi o outro livro de contos, que também iniciei: «Os Antípodas e o Século» do mexicano Ignacio Padilla.
Na história que dá título ao livro sabemos de caravanas perdidas no deserto mongol, porque demandavam Edimburgo sem fazer a mínima ideia onde se situaria essa mítica metrópole, para onde se congregavam todos os seus desejos. Mas há também um arquiteto escocês, que vai  ao encontro da Muralha da China, acompanha uma dessas expedições pelas inóspitas paisagens quirguizes e acaba por criar um culto místico à sua volta, capaz de atrair milhares de pessoas.
Quando, moribundo, Campbell pede que o levem até ao alto da colina mais próxima e sua casa: “daí pode o arquiteto chorar a sua felicidade perante as ondas do Mar do Norte enquanto os seus discípulos amados viam formar-se ao longe um raquítico torvelinho de areia, primícia talvez de uma tempestade que em breve arrasaria o século até o sepultar debaixo de uma duna gigantesca e muda.”
Na mesma lógica do absurdo o conto seguinte, «Memorial da Segunda Peste», conta a história de uma missão na Amazónia onde, a uma epidemia de peste, seguiu-se outra não menos devastadora, mas em que as vítimas passavam a ser extremamente saudáveis, sem qualquer sinal de doença.
Apenas conhecida pelo relatório de um médico chamado Richard de Veelt, que descreveu uma “leprosaria cujos pestíferos felizes, sujos e disformes teriam um dia começado a chorar uma dor que os revitalizasse”, essa peste justifica a primazia índia sobre aquela vasta região amazónica.
Temos assim que, perante a crueza de uma realidade inquietante, vi-me a dela me ausentar com histórias de terroristas simpáticos, escoceses místicos e índios felizes.

quinta-feira, novembro 12, 2015

PALCOS: «Non so piú cosa son, cosa faccio», ária do 1º ato das «Bodas de Fígaro»

No texto anterior sobre as sucessivas árias da ópera «As Bodas de Fígaro» tínhamos visto que se prepara o casamento de Susanna com Figaro, mas que existe a intenção do Conde em aceder-lhe aos encantos. Razão porque lhes facultou o quarto entre o seu e o da condessa, justificando estarem mais à mão, quando necessitasse dos seus serviços.
Há também Marcellina, que planeia frustrar os intentos dos jovens noivos por ser ela própria candidata ao lugar de Susanna.
Quando se cruzam, uma para sair de cena, e a outra para a ela regressar, ambas decidem disputar quem passará primeiro, cada uma querendo dar o lugar á outra. Até Marcellina sair despenteada perante o “encosto” de Susanna.
Ficam, então em cena, a noiva e Cherubino, que lhe vem pedir ajuda para se tornar pajem da condessa. Mas consideram-no demasiado jovem para presenciar as libertinagens dos patrões, e demasiado velho para ficar imune quanto à possibilidade de tirar proveito desse conhecimento. E, de facto, ele reconhece-se muito sensível aos encantos de cada mulher com quem se cruza. É esse o tema da ária «Non so piú cosa son, cosa faccio», ou seja, “já não sei quem sou, nem o que faço”.
Neste clipe vemo-la interpretada por Joyce DiDonato no Festival de Baden Baden de 2009. 

quarta-feira, novembro 11, 2015

DIÁRIO DE LEITURA: Viver em Lisboa com a cabeça em Paris

Janine é a personagem mais empática do triunvirato, que encontramos em «O que não pode ser salvo», o romance mais recente de Pedro Vieira.
Nascida em Paris ela vive as dificuldades de aculturação inerentes à segunda geração dos que se fixaram em França. Mas, por outro lado, não encontra qualquer identificação com o ambiente rural onde a mãe a pretenderia fixar ao consumar-se a morte do progenitor. Por isso a escapadela para Lisboa, para casa de uma tia complacente, constitui a alternativa, obrigando-a a enfrentar os desafios da autossuficiência.
Para a sua geração o mais comum é vegetar no desemprego e essa é a condição de Tiago, o amigo que conhecera episodicamente na festa da aldeia e reencontrara na capital depois de firmarem amizade no facebook. Mas há quem encontre solução medíocre nos empregos precários dos call centers. E isso é o que sucede com Janine, condenada à permanente insatisfação pela entediante ocupação em que não se realiza. O seu sonho é ganhar o bastante para regressar a Paris e, quiçá, retomar as correrias sem fim entre Montmartre e Saint-Germain, com a amiga Sarah, evitando a pobreza de Saint Denis na medida do possível.
Pedro Vieira vai alternando diálogos com reflexões das personagens passando pelas mensagens de facebook com que garante a justaposição dos artifícios do presente com os recursos estilísticos investidos na história de educação sentimental.
Quase a concluir a leitura, já posso considerar «O que não pode ser salvo» como um dos títulos mais interessantes da literatura de língua portuguesa conhecida neste ano de 2015. E a justa admiração por um dos mais polifacetados talentos da nossa vida cultural só encontrou nele acrescidos motivos de fundamentação.

Extrato: 
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Corremos sem conhecer o cansaço em redor da Place des Vosges, rodopiando, fazendo por entontecer a cabeça, os pensamentos, os miolos ainda frescos, contornando as fontes que nunca se cansam de oferecer água delicadeza tudo a quem atravessa a praça, que nunca cessam de recordar a quem passa o esplendor desta cidade, o spleen de Paris, como escreveu o poeta, ao contrário do que se passa na casa de família onde não cessam os anseios «tens a certeza de que queres continuar a estudar Letras, filha?», «o que é que vai ser do teu futuro, Janine?», mas por agora corremos e saltamos, fazemos troça dos turistas que se passeiam de queixo caído e com as invejas à mostra, no Oregon não há nada que se pareça com isto e eles mal contêm o espanto, can you believe th is?,
e mesmo já sendo adultas, mulheres crescidas, cabriolamos e fazemos negaças à estátua do rei, como vai monsieur Louis, ça va bien, mon petit, o décimo terceiro da lista dos luíses montado a cavalo mas inseguro, rezam as crónicas, em pose de bronze para a posteridade mas fraco de vontades e carácter, dizem que a mãe lhe rezava tudo ao ouvido, eis um monarca sem paciência para a lida da casa e dos palácios, e para os jogos de poder, e para as armas terçadas entre católicos e huguenotes, o senhor esteja convosco (connosco?), tão diferente do seu filho que viria a reinar com o mesmo nome mas armado de toda uma outra auto-estima, Rei-Sol, l’état c’est moi e não só, cuidado Sarah, mais devagar, olha que ainda atropelas alguém, apanha-me se conseguires, ou delega a perseguição em alguém, foi o que fez o décimo terceiro dos luíses, entregou a gestão ao conhecido Cardeal Richelieu, homem de carne e osso e fé no deus da intriga, personagem de ficção e de desenho animado, de Dumas ao Dartacão, estás a ver, papá, as Letras são tudo nesta terra, tanta memória, camadas de esplendor sangue e morte, charme e traição, glória e romance, tantas histórias contadas e por escrever, razão pela qual os americanos se repetem, can you believe?
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