domingo, março 31, 2019

(DIM) «O mistério da Mona Lisa» de Ian Reese (2015)


Andrew Graham-Dixon é um conhecido historiador de arte britânico, que costuma ser presença assídua nos ecrãs televisivos do seu país. Neste documentário de 2015 leva-nos para uma viagem que parte de Florença e desemboca em Paris, com escalas intermédias em Singapura ou na antiga Leninegrado. O objetivo: responder-nos a algumas pertinentes dúvidas sobre o mais famoso quadro de Leonardo da Vinci, que suscita o interesse das multidões de visitantes do Louvre.

Será que a figura feminina nele representada era, efetivamente, a esposa do comerciante Francesco del Giocondo? A ser assim, o que justificava a escusa de Leonardo da Vinci em aceitar encomendas para retratos de aristocratas ou importantes membros do clero, e ter acedido à do bem menos importante burguês florentino? Uma resposta possível pode ser encontrada no arquivo municipal onde se confirma a coincidência de Giocondo e o pai de Leonardo morarem na mesma rua, e deste, enquanto notário, ter o vizinho como cliente regular.
O problema dessa possível incoerência reside nos relatos da época, que se revelam incoerentes, mormente quando Giorgio Vasari escreve sobre o quadro e lhe enfatiza as sobrancelhas vincadas da retratada. Ora esse adorno supraciliar não existe na obra que chegou até nós. Há, igualmente, o testemunho de Antonio de Beatis, que esclarece ter sido a obra o resultado de uma encomenda de influente membro da família Médicis.
Às tantas multiplicam-se as «Mona Lisas um pouco por todo o mundo, mormente a chamada «Gioconda de Isleworth», existente na coleção de um oligarca russo, que revela ser afinal uma cópia competente datada do século XVII.
A revelação mais interessante decorre do recurso a uma câmara multiespectral inventada pelo francês Pascal Cotte, que dá-nos a conhecer as várias versões do quadro na mesma tela, umas sobrepostas nas demais. Descascando o quadro, como se se tratasse de uma cebola, vê-se em alta definição um outro retrato, provavelmente o original da verdadeira Lisa del Giocondo. Ou tratar-se-ia da defunta amante de Julião de Médicis?
Ao concluir-se a viagem olha-se para o célebre quadro com um olhar mais informado, embora dele se não tenham resolvido todos os potenciais mistérios.

sexta-feira, março 29, 2019

(DL) David Grann tem novo livro para nos assombrar


Há dez anos passei a acompanhar o percurso literário de David Grann, jornalista de investigação do «New Yorker», em cujas páginas surgem regularmente os seus textos. Na altura entusiasmou-me a extensa abordagem da viagem fatal de Sir Percy Fawcett à Amazónia em 1925 para, com a ajuda do filho e de um amigo deste, encontrar a lendária cidade de Z, mais conhecida como El Dorado. Denotando aturada consulta de toda a documentação disponível sobre o então sucedido, e incluindo uma viagem até à região onde os britânicos haviam sido vistos pela última vez, Grann conseguiu criar uma intriga assaz envolvente, que viria a ser adaptada ao cinema.
Oito anos depois pudemos apreciar a tradução portuguesa do livro por ele dedicado à chacina dos índios Osage: «Assassinos da Lua das Flores». Em 1920 a riqueza multiplicou-se-lhes nos bolsos, porque houve quem encontrasse petróleo dentro da reserva do Oklahoma, que lhes fora atribuída no final do século anterior, quando as chacinas contra os ameríndios tinham culminado em tratados de paz com os sobreviventes. 
Nos anos seguintes os dois mil osages puderam usufruir os benefícios da percentagem dos lucros obtidos com a extração de petróleo, permitindo-lhes a compra de mansões faustosas, de reluzentes cadillacs e os estudos dos filhos em universidades inglesas. Subitamente, porém, começaram a ser assassinados a um ritmo avassalador, nunca se tendo descoberto quem comanditara o morticínio, embora não seja difícil adivinhar quem mais lucrou com o seu total desaparecimento. E nem o FBI, acabado de criar, mostrou grande interesse em encontrar e punir os culpados.
Esta semana David Grann é o nome maior de um Festival de Livros Policiais em Lyon, onde apresenta a tradução francesa do seu livro mais recente: «Le Diable et Sherlock».  Nele reúne doze contos já publicados no «New Yorker», baseados em casos reais, e todos alicerçados no mal, no gosto pelo poder e pelas obsessões doentias. Os lados mais sombrios da condição humana veem-se filtrados pela lógica dos fait divers. E o que subjaz é um retrato da sociedade norte-americana no que tem de mais infame.

«Cópia Mortal» de Jon Amiel (1995)


Depois de amplamente utilizado na época em que Hannibal Lester e os seus sucedâneos invadiam os ecrãs dos cinemas e das televisões, o tema dos assassinos em série, ruins como as cobras, deixou de estar na moda. A facilidade com que se pode aceder a armas de fogo nalguns países dá maior oportunidade aos que pegam nelas e decidem matar indiscriminadamente o maior número possível de azarados, ignorantes da possibilidade de estarem situados no lugar errado à pior das horas possíveis.
Realizado há duas dúzias de anos, «Copycat», só tem a seu favor a presença de duas atrizes muito estimáveis: Holly Hunter e Sigourney Weaver. O resto resume-se a uma história em que uma diabólica criatura recebe ordens de um criminoso encarcerado para utilizar a liberdade de movimentos para matar um conjunto de vítimas, imitando rigorosamente os homicídios perpetrados no passado por outros antecessores. Eles sucedem-se e, para travarem-nos, gera-se a cumplicidade de uma inspetora da polícia com uma antiga especialista em comportamentos homicidas, mas entretanto remetida a domiciliária clausura desde que se livrara à justa a um desses criminosos.
Há erros e inverosimilhanças, que é melhor ignorar para que a lógica do argumento flua sem grandes percalços e o final ocorre suficientemente em aberto para não o caracterizarmos de happy ending. Pelo menos Amiel procurou deixar pontas soltas destinadas a uma sequela, que julgo nunca ter existido.
Não é que «Copycat» seja desagradável de ver, desde que se aceite a inevitabilidade de dele nada nos lembrarmos algumas semanas depois de lhe dedicarmos duas horas da nossa cada vez mais curta existência.

quinta-feira, março 28, 2019

(P) «A Boda» no CCB ou a oportunidade de ver uma outra Cornucópia


Incorrendo no risco de causar escândalo junto de muitos amigos, que prezam Luís Miguel Cintra como encenador e ator, encarei sem pinga de emoção a notícia do fecho da Cornucópia. A tentativa de Marcelo Rebelo de Sousa para convencê-lo a desistir da almejada reforma, soou a empáfia característica do poltrão, que suportamos em Belém. Que em nada resultaria estava-se bem de ver, sobretudo, porque os anos mais recentes tinham-nos colocado perante espetáculos chatos de morrer, que poderiam satisfazer Cintra na busca mística por um Deus, que lhe deve continuar a fazer orelhas moucas, mas de nenhum significado para quem tais questões não se põem. Ateu impenitente, esconjurei o tempo e o dinheiro investido em muitos dos títulos, que me levaram então até ao Teatro do Bairro Alto.
Ainda assim foi com grande interesse, que aguardei pelo regresso ao palco de um conjunto de atores e atrizes cornucopianos por muito que, entretanto, tivesse visto muitos deles em desempenhos com outras companhias, nas salas de cinema ou nas televisões. E que regalo foi ver a forma como Ricardo Aibéo os libertou dos espartilhos impostos por Cintra. Se em todos eles reconhecia a excelência  dos talentos, vê-los numa comédia inteligente, ademais assinada por Bertolt Brecht, constituiu um enorme prazer. Que deu para perceber quão diferente, para melhor, teria sido a Cornucópia se, a páginas tantas, Cintra e Jorge Silva Melo não se tivessem zangado e só o primeiro permanecesse no seu comando. É que a soturnidade beata de um poderia ter sido compensada pelo hedonismo solar do outro, que aqui assina  a tradução da peça.
Ademais é urgente devolver Brecht aos palcos nacionais, e felizmente, além desta «Boda», também António Pires está atualmente em cena com o «Terror e Miséria do III Reich» no seu Teatro do Bairro. Faz falta um teatro de intervenção, que questione os lugares comuns de uma burguesia incapaz de compreender como o impasse das suas contradições atrasa uma evolução política e social, que rompa com o quanto falta para acedermos a uma sociedade mais justa e capaz de melhorar a qualidade de vida da maioria dos que a compõem.
Em «A Boda», uma das peças do período inicial de Brecht, evoluímos de uma aparente alegria coletiva para uma sucessão de desequilíbrios, que acabam por revelar as verdadeiras naturezas dos que participam na festa. Sofia Marques e Duarte Guimarães fazem de noivos, com os convidados a corresponderem a um conjunto de eficientes estereótipos dos que costumam animar esses acontecimentos sociais. Os valores e preconceitos vão-se beliscando à medida que as garrafas se esvaziam, dando oportunidade a grandes momentos de excelente teatro sucessivamente interpretados por cada um dos demais convidados. Relevo, sobretudo, para Rita Loureiro, incumbida de ir destruindo paulatinamente um cenário, que, desde início, estava suportado em (má) cola.
Ao sair da sala ficou o desejo de ver estes atores e encenador prosseguirem com um projeto próprio, que nos devolva a oportunidade de os vermos em novos e vibrantes desafios.

quarta-feira, março 27, 2019

(DIM) «Estou Vivo e Escrevo Sol» de Diana Andringa (1997)


Realizado em 1997, o filme de Diana Andringa é excelente para recordar a personalidade e a obra de António Ramos Rosa, cujos versos solares tanto nos entusiasmaram em anos idos, nomeadamente, nos inícios dos anos 70, quando «O Boi da Paciência» ou «O Funcionário Cansado» exprimiam essa vontade de descomprometimento com o que nos afigurava como desperdício da vida em empregos anestesiantes. Ele próprio explicitava essa opção, porque só conheceu um patrão, de quem desertou num dia em que não lhe apeteceu voltar onde se sentia infeliz. Doravante viveria (mal) de traduções e de explicações.
Na política o poeta ainda menos tergiversava: pelo contrário estava sempre na primeira linha da luta política, mesmo tendo como custo algumas prisões e a contínua vigilância da PIDE. Se no início do período marcelista o regime o quis amansar com o prémio do SNI, ele recusou-o liminarmente, mesmo que o valor financeiro da honraria muito lhe desse jeito aliviar as dificuldades por que passava.
O casamento haveria de lhe alterar o registo poético, levando-o para uma fase em que o jogo formado pelas palavras ganharia ênfase em relação aos conteúdos nelas encerrados. Mas, até ao fim, seria um homem coerente, apostado em dar à poesia o contributo de todo o seu percurso singular.


terça-feira, março 26, 2019

(DIM) «The Unforgiven» de Lars Feldballe-Petersen (2017)


Pode-se perdoar o que considerámos imperdoável? Será que a idade torna mais humano quem, na juventude, se revelou horrível torturador e assassino? No final deste documentário as respostas ficam suficientemente ambíguas para não darem satisfação plena das dúvidas, que suscitam.
Esad Landzo foi guarda na prisão de Celebici, na Bósnia, quando a guerra civil ali grassou entre 1992 e 1995. Na altura tinha dezoito anos e ele, que sempre fora um jovem frágil, viu-se subitamente ditado de tal poder que os prisioneiros sérvios, recordam-no como um sádico torturador. Se lhes dissessem que se lhe detetara na infância o talento para as artes, sem sequência por serem os pais demasiado pobres para lhe financiarem os estudos correspondentes, não acreditariam. Porque se entretanto alimentara emoções fortes, haviam sido as mais negativas, as que o incitavam a humilhar e agredir quem tomava por inimigos.
A antiga Jugoslávia estava, então, a converter-se num barril de pólvora: bastara a eficiente sabotagem da CIA e outras agências para, em conluio com o Vaticano do sinistro João Paulo II, propiciar as sucessivas manifestações nos países do leste europeu, que culminariam com a queda do Muro de Berlim. Quantas tragédias, quantas mortes resultariam dessa ilusória democratização de países hoje a contas com tiranetes da dimensão de um Viktor Orban ou do sobrevivente dos Kaczynski? Em 1990 um jogo de futebol no Estádio de Zagreb, opondo croatas e sérvios acabou no prenúncio do que ocorreria dois anos depois. Demonstração inequívoca dos riscos de contemporizar com a barbárie das claques clubísticas...
Ao sair da prisão, em Helsínquia, dez anos depois da sua condenação no Tribunal de Haia, Esad não tem emprego, nem visto para nenhum país, que o aceite ter por hóspede. E muito esperará para voltar finalmente à Bósnia natal para procurar as suas vítimas e pedir-lhes desculpa. Sem quase nunca ter sucesso, porque elas mantém vivo o ódio pelo sofrimento, que lhes infligira.
Ao chegarmos ao final do filme podemos admirar-lhe a coragem de voltar a enfrentar quem tanto fizera padecer, mas desconfiamos que não voltará a recuperar da morte abrigada dentro de si sob a forma de um complexo de culpa sem remissão...

(DL) Orhan Pamuk tem mais um romance para conhecermos


Nascido em 1952, o escritor turco Orhan Pamuk é uma das mais ativas vozes contra a ditadura de Erdogan, salvaguardado na relativa proteção que a condição de Nobel da Literatura lhe confere. Mesmo que regularmente ameaçado de morte pelos islamitas, as suas palavras desassombradas não se tornam mais prudentes, quando condena a negação das liberdades fundamentais a quem não se conforma com um regime tirânico e obscurantista. Nem tão pouco se priva de passear-se lentamente pelas ruas da cidade, que muito ama - Istambul.
Nestes últimos dias ele  tem repetido essa veemente condenação da ditadura nas televisões francesas, por onde anda a fazer o périplo do seu romance mais recente - «La Femme aux cheveux roux» - espécie de conto iniciático sobre personagens que, a exemplo das conhecidas nas tragédias gregas, tudo fazem para alterarem o rumo dos seus destinos. Só que ao conhecido mito de Édipo, ele contrapõe o seu correspondente oriental, o de Sohab e Rostam.
Se em ambos os casos, pais e filhos reencontram-se sem saberem quem, efetivamente, são, no de origem grega o filho matava o pai, enquanto no oriental, sucede o exato contrário.
Fica a perspetiva de mais um grande romance, ainda que curto em páginas, a ser urgentemente visitado.

segunda-feira, março 25, 2019

(DL) Para que serve um livro, uma peça de teatro ou um filme?


Para que serve um livro, uma peça de teatro ou um filme? Apenas para entreterem ou para nos fazerem pensar, remetendo-nos para abordagens, que nos incitem a uma análise mais profunda dos tempos em que nos movemos? A resposta que defendo é, obviamente, a segunda, muito embora os suspeitos do costume - aqueles que querem que as coisas continuem a ser como são! - tudo façam para que as mentes se alienem, se enferrujem o bastante para que deixem de pensar e só sigam as orientações dos que querem-nos escravos em vez de seres livres.

Numa altura em que a tragédia de Moçambique a todos nos impressiona, José Eduardo Agualusa afirma ao «Público», que “a política é tudo. E o que é a Literatura? Os livros são território de debate. Se um livro não servir para fazer pensar na sociedade em que se vive, serve para quê?”
Na mesma linha de pensamento segue António Pires, o encenador de um notável texto de Bertolt Brecht—«Terror e Miséria do III Reich» - atualmente em cena no Teatro do Bairro e que considera o “teatro enquanto algo que interfere na sociedade e que tem a capacidade de, com frequência, ver coisas onde mais ninguém vê, de espelhar a humanidade e de chamar a atenção para factos sociais.”
Conclua-se com a reiteração da mesma perspetiva por Afonso Cruz, de quem acabei de ler «O Princípio de Karenina»: “todos temos uma espécie de vivência mítica, arquetípica. E as histórias são um pouco o reflexo disso em determinado contexto, em determinada situação, mas o seu sumo e o seu caroço continuam a ser verdade noutras circunstâncias, noutro ambiente, noutro contexto.”
No fundo dediquemo-nos a ver, a ouvir e a ler, nunca nos dando ao luxo de ignorarmos o essencial. O que nos deverá indignar. O que nos incitará a mudar estas nossas circunstâncias, ainda tão distantes das mais que justificadas Utopias.